Quem lucra com as cinzas em Gaza e na Amazônia

As mesmas corporações que produzem a catástrofes, climáticas ou militares, ganham com os pacotes “comestíveis” destinados ao socorro de quem ficou sem alimentos, numa pirueta contábil em que vale a pena destruir para lucrar

Foto: Mohammed Abed / AFP

Por

Texto dedicado ao professor Adilson Paschoal,
mestre querido da Agroecologia
e criador do termo agrotóxico,
falecido no último dia 16

Em solidariedade a todas as vítimas
do poder corporativo mundial

.

A imagem é chocante: a terra está nua e esturricada em uma paisagem do bioma brasileiro que é mundialmente conhecido pelos seus rios caudalosos. O Rio Negro parece irreconhecível, com parte de seu leito exposto ao sol, morte de peixes e botos, e a consequente fragilização das comunidades que dependem do transporte fluvial para sobreviver. O bioma amazônico agoniza em uma seca que já dura semanas, enquanto a fumaça das queimadas (que ocorrem em volume recorde desde 2008) cobre o ar de cidades como Santarém, no Pará, e Manaus, no Amazonas.

Em outro canto do planeta, também vemos o céu virar noite em pleno dia, devido às bombas despejadas sobre uma pequena faixa de terra onde mais de 2 milhões de seres humanos vivem confinados, o que constitui uma parcela expressiva do povo palestino. Gaza esteve mais de um mês sob ataque contínuo de um dos exércitos mais potentes do mundo, o do Estado de Israel. Protestos no mundo todo, inclusive dentro das comunidades judaicas e mesmo entre judeus sionistas, não parecem suficientes para impedir o massacre em curso, que já matou milhares de crianças e tem impedido o acesso ao que é mais básico para a sobrevivência de quem teima em seguir existindo.

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Na Amazônia ou na Palestina, a água, sempre imprescindível à vida, falta. Com ela, falta o alimento. E, quando chegam as cestas de comida, trazidas como ajuda humanitária, elas também são, invariavelmente, secas. O mesmo complexo financeiro industrial internacional que submete populações a catástrofes, sejam elas climáticas ou militares, é responsável pela produção dos pacotes de itens comestíveis processados que são destinados ao socorro de quem ficou sem ter o que comer, em uma pirueta contábil em que vale a pena destruir para lucrar.

Assim como as empresas de armas aceleram suas máquinas em tempos de guerra, as empresas de “comida” empacotada também vêm a reboque da fome das vítimas dos conflitos. Quem está em situação de emergência não costuma ter nenhum direito a escolher o que comer, e, quando consegue algo comestível, dá graças ao deus que inspira as suas crenças. É assim que, quanto mais temos desequilíbrios sociais e ambientais, menos teremos alimentos in natura na barriga das pessoas, intensificando um processo que já vem em curso há décadas, em que os produtos industrializados tomam o lugar de frutas, legumes, verduras, raízes, grãos e castanhas no dia a dia da população.

Sim, já faz tempo que estamos deixando de comer comida e passando a engolir mercadorias fabricadas em mega empresas, especialmente criadas para permitir uma produção em grande escala, a partir de poucos tipos de ingredientes de origem vegetal ou animal – aos quais acrescenta-se um conjunto de aditivos artificiais que, por sua vez, foram desenvolvidos em laboratórios especialmente para viciar nosso paladar.

Até mesmo no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), uma referência internacional no setor de Segurança Alimentar e Nutricional, os biscoitos industrializados consomem uma parte considerável da verba disponível. E isso em locais que não estão submetidos a nenhum desastre natural, onde o que chamamos de cesta verde – ou cesta viva, composta por alimentos cultivados pela agricultura familiar – poderia suprir as necessidades dos estudantes e comunidades escolares.

Mas o lobby da indústria alimentícia é poderoso e a dificuldade imensa que encontramos em tributar produtos tão sem nutrientes, como refrigerantes e outras bebidas adoçadas, já revela a força que nossos movimentos agroecológicos têm que fazer para que a comida de verdade não suma da mesa do povo de vez.

De um lado, o lobby, de outro, a publicidade

Além de seus anúncios sedutores, muitas vezes direcionados às crianças, mostrando produtos comestíveis que possuem os mais diferentes formatos e cores, simulando uma variedade que estão muito longe de ter – já que sua base costuma ser composta por farinhas refinadas, açúcar, sal e gordura vegetal, como o óleo de soja –, os departamentos de marketing das organizações da indústria alimentícia empenham-se em tocar o terror para manipular a opinião pública.

Peças publicitárias inundaram plataformas de grande alcance midiático com a mensagem de que a Reforma Tributária – que finalmente está em curso no país, em um processo que se arrasta há três décadas – não poderia taxar os produtos comestíveis, sob o risco de aumentar a fome, misturando os conceitos do que é minimamente processado com o que é ultraprocessado ou até tentando convencer as pessoas de que ultraprocessados são “do bem”. Uma campanha com o sugestivo nome de Carrinho Livre foi criada e traz uma petição para que “os consumidores tenham o direito de decidir” o que querem comprar, sem pagar mais por itens alimentícios industrializados. A batalha não terminou e ainda temos uma etapa junto à Câmara dos Deputados, onde a proposta aprovada no Senado, ainda longe de ser a necessária para corrigir as distorções fiscais existentes, será novamente analisada.

Vale lembrar que indústrias como a de bebidas artificiais, sobretudo a de refrigerantes, não apenas vêm nos sugando financeiramente, através da isenção de impostos em nosso território, como também nos sugam literalmente, se apropriando de nossas águas. Cada meio litro de um refrigerante como a coca-cola exige 35 litros de água e deixa como resíduo, além de sua garrafa plástica, um conteúdo químico que vai contaminar não apenas o corpo de quem toma a bebida, mas, também, os corpos hídricos e, portanto, os corpos de todos nós.

A mesma lógica vale para outros produtos, sejam alimentos com agrotóxicos, sejam remédios ou produtos de cuidado diário. As consequências da produção e do consumo sempre são coletivas e é por isso que não adianta olhar só para o próprio prato – ou só para o próprio copo. Mesmo para quem não estiver no grupo dos 33 milhões de brasileiros/as que não têm acesso à água potável, a situação não é nada tranquila e tende a ficar pior, se não houver uma forte mobilização popular.

As privatizações de empresas públicas essenciais, como as de fornecimento de água (lembrando que a da Sabesp está em pleno vapor), comprovam o caráter comunitário das ações necessárias para que cada um e cada uma de nós assegure o direito de ter o que beber e o que comer. E isso fica ainda mais urgente se quisermos ter comida e bebida não contaminadas pelos resíduos das substâncias tóxicas que têm sido lançadas sobre territórios de países como o nosso, em um processo muito bem definido pela pesquisadora Larissa Bombardi como Colonialismo Químico, termo que está no título de seu novo livro.

Armas de fogo e a água como arma

Os conflitos bélicos sempre nos mostraram que há vidas que valem mais do que outras na geopolítica internacional, mas não é só nas guerras declaradas que isso pode ser constatado. Vidas europeias valem mais do que vidas brasileiras no mundo corporativo globalizado. Essa é a constatação inequívoca trazida pelo livro, ao apresentar, entre muitos outros exemplos de abusos, que o nível residual permitido do glifosato, agrotóxico mais usado no mundo, é 5 mil vezes maior em nossas águas do que nas águas da União Europeia. Isso fica ainda mais dramático por sabermos que o que é fornecido a uma parcela expressiva dos municípios brasileiros contém um mix de resíduos de substâncias tóxicas e que mesmo o acesso a esse líquido de má qualidade tem sido difícil.

De fato, a luta pela água (seja qual for a qualidade que ela tenha) vem se acirrando conforme o planeta ferve e as grandes empresas tentam abocanhar o que ainda resta dos nossos bens naturais. Aqui, os conflitos por ela cresceram quase 500% nas últimas duas décadas, de acordo com o levantamento feito pela Pastoral da Terra. Considerando que o Brasil é um dos países com alto índice de assassinatos de ativistas, já podemos supor as consequências desses embates, caso esse ritmo de crescimento se mantenha.

Sabemos que os maiores consumidores de água (e os que proporcionalmente menos pagam por ela) são os grandes conglomerados. Produzir comida seca, como salgadinhos e doces industrializados, consome muita água. Basta pensar no quanto se usa para cultivar imensas monoculturas de milho, soja e cana-de-açúcar, que são a base dessas guloseimas. Sem falar na cadeia da carne, com seus animais alimentados com uma massa gigantesca de grãos transgênicos, para, afinal, virarem hambúrgueres, nuggets e embutidos cancerígenos, afunilando os recursos hídricos, ao ponto de podermos dizer que somos exportadores de água, ao fornecer bois e frangos em massa para o mercado internacional. Só as emissões de gases de efeito estufa da pecuária bovina brasileira já representam um volume maior do que tudo o que é emitido pelo Japão.

O ovo ou a galinha

Mas, voltando às situações trágicas a que assistimos, acabamos entrando naquele famoso circuito vicioso (que uma propaganda de biscoito soube tão bem explorar), em que causas e consequências se confundem. O fato é que, quanto mais desequilíbrio ambiental existe, mais as cestas secas prosperam, já que são o auxílio que as comunidades afetadas pelos desastres costumam receber. E quanto mais cestas secas forem consumidas, mais desequilíbrio ambiental teremos, já que o modelo agroalimentar que produz commodities para abastecer essa indústria é diretamente responsável por boa parte da destruição dos nossos ecossistemas e demais fatores que geram a crise climática.

É basicamente essa soma de caos ambiental com caos sanitário – sendo este último caracterizado pelo adoecimento em massa da população mundial devido à má alimentação – que define o que chamamos de Sindemia Planetária: um sistema produtivo globalizado que, para se perpetuar, destrói a natureza e entope a população com quantidades exorbitantes de sal, açúcar, gordura e substâncias tóxicas. Obesidade, hipertensão, diabetes e outras DCNTs (Doenças Crônicas Não Transmissíveis) tornaram-se comuns até mesmo em crianças. A tendência é que aumentem consideravelmente nos próximos anos, com o excesso de peso afetando mais da metade da população mundial até 2035, como revela o Atlas Mundial da Obesidade 2023.

Os custos com a (falta de) saúde de uma população mundial ainda em crescimento geram uma sobrecarga financeira para a sociedade que, engrossada pelos custos decorrentes do que é (e será cada vez mais) gasto com as catástrofes causadas pela emergência climática, pode levar ao colapso das contas públicas até mesmo de países que sempre foram conhecidos como exemplos de bem-estar social. O impacto em economias “emergentes” pode fazer com que elas retrocedam décadas em conquistas obtidas com o suor (e o sangue) de várias gerações. Aqui no Brasil, calcula-se que até 3 milhões de pessoas passarão a compor os índices de pobreza extrema até 2030 devido a esse impacto.

Enquanto puderem, as grandes corporações vão lucrar nas duas pontas, vendendo tanto o que causa os problemas – sejam produtos ultraprocessados que destroem individualmente as pessoas por dentro, sejam armas que destroem massivamente povoados por fora – quanto o que amenizaria tais desgraças – remédios, cestas secas, materiais de (re)construção civil, sempre oriundos de processos que alijam a população quanto ao poder de escolha.

E, caso não ocorra uma forte mobilização popular, o quadro seguirá assim até a hora que esse sistema político-produtivo chegar a um limite e não tiver mais como se perpetuar devido aos níveis de esgotamento do planeta e das sociedades humanas. Poderemos fazer uma escolha e mudar por livre vontade enquanto há tempo, ou seremos obrigados/as a apagar incêndios, nadar em meio às correntezas das enchentes e rastejar entre os escombros da guerra que estamos travando contra nós mesmos.

Porque a ala desta guerra suicida que envolve investidas militares, como na Ucrânia, em Gaza e em vários outros locais menos noticiados pela mídia comercial, tem enchido os bolsos das corporações da indústria bélica, ao mesmo tempo que desarmoniza ambientalmente ainda mais o planeta, com suas intensas emissões de gases, sua destruição das paisagens naturais, seus gastos estratosféricos de dinheiro – que deveria ser destinado à transição ecológica, mas é usado na extração nada cuidadosa de materiais para a produção das armas e dos demais elementos de uso militar.

Genocídios, como o que está ocorrendo com a população de Gaza e como os que ocorrem há séculos com os povos originários ao redor do mundo, são combustível para um ecocídio em escala global e esse futuro catastrófico há tempos tem enviado seus cumprimentos a uma humanidade que parece já parcialmente anestesiada, tanto em relação ao sofrimento de populações inteiras quanto aos alertas planetários dados por nossa Gaia.

Como afirma Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência e pesquisador que é referência no tema da transição ecológica, “as guerras de nossos dias não são (se jamais o foram) uma continuação da política. Elas são uma continuação dos negócios.” E os negócios podem dar muito errado no atual andar da carruagem – até mesmo para quem se julga detentor de sangue azul! Os prognósticos feitos pela comunidade científica quanto ao futuro próximo seguem cada vez mais pessimistas, com o tempo que temos para realizar as mudanças necessárias para garantir o mínimo de segurança ambiental se tornando cada vez mais ínfimo.

Virada Agroecológica já!

Quando iremos perceber que estamos guerreando contra nós mesmos e cavando as covas em que seremos enterrados, ao seguir a lógica do capital, belicista por natureza? A verdadeira luta deveria ser para dar um basta na manipulação e na exploração que nós, povos de todas as etnias, credos e territórios, sofremos por parte da elite financeira mundial, que tem na destruição e na morte uma fonte generosa de seus lucros – e cujos líderes preferem perder os dedos (e até suas próprias vidas, no caso de um conflito nuclear) do que entregar alguns de seus anéis.

Corpos amazônicos ardem. Corpos palestinos ardem. Crianças daqui e de outros lugares do mundo estão sendo mortas. As bombas lançadas pelas mãos dos detentores do poder econômico, sejam visíveis e imediatas – como as que despencam em Gaza –, sejam invisíveis e de destruição mais lenta – como as que assolam nossos ecossistemas – seguem explodindo. Se, conduzidos pela minoria sedenta de poder e dinheiro, continuarmos guerreando uns contra os outros e, portanto, contra a natureza, vamos todos nos condenar a um verdadeiro inferno, instalado a nível planetário e sem qualquer julgamento possível de quem mereceria ou não arder em suas chamas.

O fato de 2023 já estar sendo considerado o ano mais quente dos últimos 125 mil anos, com séries seguidas de recordes de calor, fazendo com que muitas cidades brasileiras atinjam temperaturas acima de 40 graus, deveria desencadear uma mobilização massiva para nos prepararmos para o que vem aí, tentando reduzir os efeitos dramáticos das mudanças climáticas. A fervura já está em curso: fechar o vidro fumê do carro e ligar o ar-condicionado para fugir do calor e não ver o drama dos mais vulneráveis é um gesto que pode dar um alívio momentâneo para quem tem acesso a esse luxo, mas que só vai piorar o cenário. A conta vai acabar chegando, mesmo para quem julga que sua vida vale mais do que a do outro.

Nós, movimentos sociais brasileiros comprometidos com a transformação do atual sistema alimentar predador da natureza, sabemos que é necessário agir já e que, ao contrário do que a propaganda agrofascista diz, há um outro caminho a seguir. É por isso que defendemos uma Reforma Tributária 3S – Saudável, Solidária e Sustentável – e uma Reforma Agrária Popular Agroecológica – que dê aos povos campesinos as condições de cultivar comida de verdade para o povo e ponha um fim na atual concentração pornográfica de terras no país.

E este mês de novembro está sendo um período bem especial em nossa rede ativista, já que dois encontros nacionais aqueceram a temporada. A 20ª edição da Jornada de Agroecologia, entre os dias 22 e 26, na Universidade Federal de Curitiba (UFPR), e o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), entre os dias 20 e 23, no Rio de Janeiro, reuniram agricultore/as, estudantes, pesquisadores/as, políticos, integrantes de movimentos sociais e pessoas apaixonadas pela filosofia e pelas práticas agroecológicas, para uma intensa troca de saberes, em busca de caminhos para que, como bem coloca o lema dessa edição do CBA, a Agroecologia esteja na boca do povo!

Mesmo para quem não participou das atividades, é possível descobrir, através dos sites dos dois encontros, muito do universo vivenciado pelas pessoas enlaçadas nessa grande rede. São centenas de organizações envolvidas, milhares de participantes presenciais, feiras, oficinas, apresentação de trabalhos acadêmicos e experiências comunitárias, revelando uma vitalidade que contrasta com a monotonia propagada pelo Agro que se diz pop, mas que é fome, que é fogo, que é tóxico e que é morte, com suas falsas respostas aos problemas que ele mesmo causa. E o percurso segue com cada vez mais força, inundando de esperança quem se aventura por ele e fazendo a diferença em comunidades dos quatro cantos do país, como revela o filme Antes do Prato, documentário recém lançado que está disponível em várias plataformas online.

Convidamos vocês a virem conosco, seja no plantio de árvores nativas, seja na organização de um grupo de consumo solidário, seja em audiências públicas no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Somente ocupando os espaços físicos, nos campos, nas cidades, nas florestas e nas águas, e políticos, em todas as instâncias do poder público, é que poderemos dar uma virada nessa mesa indigesta e abrir caminho para que pessoas e natureza possam ser bem alimentados e ter a resiliência necessária para enfrentar o que virá. Como disse Ailton Krenak no encerramento do CBA, “a Agroecologia tinha que acontecer agora numa escala planetária”.

Que nossas cestas vivas – suculentas, saborosas e nutritivas – possam chegar em todos os lares, freando o ritmo de produção enlouquecedor das megaempresas, com seus produtos comestíveis ressecados, tóxicos e sem vida. Que os povos do mundo consigam se livrar da opressão corporativo-militar e possamos espalhar sementes nativas ao invés de bombas estrangeiras. Gaia nos conclama a cuidar de nossa Casa Comum, único corpo celeste conhecido até hoje que possui uma teia altamente complexa e biodiversa de seres vivos, em todo o vasto universo que nos rodeia.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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