Por que a cadeia produtiva da cana-de-açúcar é a que mais escraviza pessoas no Brasil?

Em 2022, foram encontradas 362 pessoas em situação análoga a escravidão no cultivo de cana, setor campeão em resgates

Trabalho escravo, invasão de terras indígenas, contaminação ambiental, grilagem de terras, desmatamento são alguns dos exemplos das denúncias feitas no livro O Sabor do Açúcar – Foto: Tatiana Cardeal

Por Pedro Stropasolas, para Brasil de Fato.

O Brasil encontrou 2.575 pessoas em situação análoga à de escravo em 2022, maior número desde 2013, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego. E a atividade com maior número de trabalhadores resgatados foi um dos motores da economia nacional no Brasil Colônia, séculos atrás, o cultivo da cana-de-açúcar.

Para especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a cadeia produtiva sucroalcooleira é uma atividade historicamente precarizada no Brasil, desde o período colonial (1500 a 1815), mas há fatores hoje que ajudam a compreender o aumento das condições degradantes de trabalho no setor desde 2018, como a terceirização irrestrita e a crise socioeconômica ocasionada pela pandemia da covid-19.

Atualmente, as violações trabalhistas na cadeia produtiva da cana-de-açúcar não se dão exclusivamente na colheita da cana, como era a realidade dos “bóias frias” décadas atrás. São encontradas também na capina e no plantio manual de mudas nos canaviais, como foi o caso da 32 pessoas resgatadas de uma fazenda que fornece cana para o açúcar Caravelas, da Colombo Agroindústria S/A, conforme revelou o Brasil de Fato.

“Assim como a colheita envolvia um esforço repetitivo, jornadas exaustivas, em razão da natureza e também do gasto energético que se tinha nessa atividade do corte da cana, o plantio também envolve outros riscos, como por exemplo o risco de queda em altura, de ter o trabalhador que ficar em cima de um caminhão para poder pegar as mudas e ter o caminhão em movimento. Então assim, ambas as fases têm riscos elevados, que acabam recaindo sobre o trabalhador”, explica Maurício Krepsky Fagundes, auditor fiscal e chefe da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae).

Trabalhadores de empresa terceirizada contratada pela Colombo Agroindústria S/A foram encontrados em situação de servidão por dívida, elemento que tipifica a escravidão contemporânea / Divulgação/Detrae

Terceirização

O resgate em Pirangi (SP) elucidou outra realidade comum dentro do setor: os vínculos empregatícios que predominam são contratos temporários realizados por empresas terceirizadas.

“A gente está falando de uma indústria altamente lucrativa. De fazendas onde haja o plantio e o corte da cana pra abastecê-las. E a gente sabe que a gente vivencia, né? No mundo hoje já há algumas décadas um fenômeno de terceirização e quarteirização das atividades”, pontua Lívia Miraglia, professora de Direito ao Trabalho da UFMG e presidente da Comissão de Combate ao Trabalho Escravo – OAB-MG.

Nos canaviais dos estados do sudeste, que produz o equivalente a 63,7% da safra nacional, tem sido recorrente que grandes usinas coloquem a responsabilidade por eventuais violações trabalhistas nas empresas prestadoras de serviço.

“Algumas fazendas, usinas, acabam terceirizando esse trabalho, seja no plantio, seja na colheita, para empresas que não têm a menor idoneidade econômica. Somente terceirizar o serviço de safra para alguém que não tem esse conhecimento (das normas trabalhistas), não vai afastar a responsabilidade do produtor”, diz o auditor fiscal.

“Na verdade, ele vai estar sendo cúmplice dessa situação e poderá ser responsabilizado por esses trabalhadores caso eles estejam em condições análogas à escravidão”, alerta Krepsky.

Pandemia

Lívia Miraglia considera que no período de crise, encadeada principalmente pela pandemia do covid-19, foi observado um aumento da precarização no setor.

“Os auditores fiscais de trabalho relatam que é um retorno a essas condições mais precárias no porte da cana, algo que eles achavam que estivessem superado”, pontua.

Mauricio Krepsky reitera a preocupação da coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG.

“Enquanto em outros anos a gente via situações do tipo: o aliciador dizia que ia ter carteira assinada, que ia ter um um alojamento adequado, um trabalho por produção que ia pagar X por quilo de de cana colhida. Nesses últimos anos, de extrema vulnerabilidade e de crise, basta o aliciador dizer que vai ter um emprego, ter uma oportunidade. Ficou muito mais fácil esse trabalho de aliciamento”, acrescenta.

273 cortadores de cana encontrados pelos fiscais do Ministério do Trabalho na usina da WD Agroindustrial receberam verbas de rescisão e danos morais / Ministério Público do Trabalho

A professora da UFMG destaca a importância de se mapear o perfil dos trabalhadores e seus locais de origem para a formulação de políticas públicas no pós resgate.  Dos resgatados em 2022, 83% se autodeclararam negros, 15% brancos e 2% indígenas. 92% eram homens.

“Qual é o perfil dos resgatados? Homens em sua maioria negros, provenientes de municípios com índice de pobreza muito alto, baixa escolaridade, em locais de completa carência de saneamento básico. Às vezes a pessoa sequer tem energia elétrica na sua casa”, aponta Miraglia.

Mecanização

Publicado em 2022, pela Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO) o artigo Condições de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e repercussões sobre a saúde dos canavieiros evidenciou no setor “o sistemático descumprimento das normas trabalhistas, previdenciárias e de saúde”.

A mecanização no setor na região sudeste começou a se expandir em 2007, com o interesse do Governo Federal em aumentar a produção de etanol como matriz energética.

Em 2008, 47,6% de toda a colheita na região Centro-Sul do país era mecanizada. Em 2015, essa porcentagem saltou para 97%, de acordo com o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC).

No mesmo período, o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou um conjunto de regras relacionadas a segurança do trabalho nos canaviais, denominadas de Notificações Recomendatórias, a NR 31.


Entre 2004 e 2008, 21 mortes de cortadores de cana-de-açúcar foram registradas somente na região de Ribeirão Preto (SP), a maioria delas atribuídas a paradas cardiorrespiratórias

A mecanização impôs mudanças no trabalho dos cortadores: apesar de alguns avanços, os trabalhadores passam a despender maior esforço para acompanhar a produtividade atingida pelas máquinas. Além disso, eles são encarregados de executar o corte manual em áreas de difícil acesso para as colheitadeiras, ficando com os terrenos mais irregulares e suscetíveis a acidentes.

Em estados como Paraíba, Pernambuco e Alagoas, o baixo grau de mecanização na lavoura ainda evidencia o predomínio da colheita manual e a prática da queima da cana-de-açúcar para facilitar o corte – o que acaba expondo os trabalhadores a doenças de pele e dos aparelhos respiratório e circulatório.

Em 2021, apenas 23,4% da colheita de cana-de-açúcar no Norte/Nordeste ocorreu de forma mecanizada.

Vida útil dos trabalhadores

Em 2007, um estudo da Unesp constatou que os trabalhadores rurais na cana-de-açucar conseguem exercer a atividade por cerca de 12 anos, que é a mesma média de vida útil das pessoas escravizadas na atividade até 1850 no Brasil. A pesquisa também mostrou que os cortadores de cana chegavam a colher até 15 toneladas por dia no início dos anos 2000.

A professora Lívia Miraglia cita um pensamento de Lilia Schwarcz, autora de O Espetáculo das Raças e Racismo no Brasil, que pontua que o 13 de maio de 1988 foi “o dia mais longo” da história brasileira, pois ainda não terminou.

“Se a gente não pensar em uma política pública que seja capaz de resgatar esses trabalhadores e reinseri-los na sociedade a gente vai continuar fazendo o que a gente faz desde 1888. Libertam-se pessoas escravizadas, mas sem pensar no pós resgate, em uma inserção efetiva dessas pessoas”, finaliza Miraglia.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

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