O caso Neymar, a Arábia Saudita e os possíveis diálogos com os jornalistas

Foto @Alhilal_EN

Por Francirosy Campos Barbosa.

Escrevi na semana passada em um post no meu Instagram: “como o jornalismo é mal resolvido quando se trata de países islâmicos, não? Não há um que critique o fato de um jogador ganhar essa fortuna, e não importa se é na Arábia Saudita, porque afinal vocês (jornalistas) não separam o governo do povo. Um privilegiado como Neymar será privilegiado em qualquer país do mundo. Ele vai viver uma vida de rei, porque de príncipe, já vive há muito tempo, com a ajuda da imprensa. Por outro lado, não se “limpa” imagem nenhuma de um país comprando jogador (ainda sigo com a mesma opinião). Será que a monarquia saudita está preocupada em limpar a sua imagem? Será que consegue?”. Comecei o post assim, porque li muita coisa da imprensa dizendo: “coitado do Neymar e da sua esposa, que vai viver sem beber, sem professar sua religião”, etc.

A crítica da imprensa é: na Arábia Saudita não se pode construir igrejas. Pergunto: no Vaticano pode construir mesquita? Importante dizer que a Península Arábica é considerada sagrada para o Islam, está nos ditos do Profeta (SAAS – Que a Paz de Deus esteja com ele). Na Arábia Saudita fica a cidade de Meca, a Caaba, templo sagrado islâmico da peregrinação, por isso, a restrição de construção de templos religiosos, o que não acontece em outros países islâmicos como Egito, Turquia, Marrocos etc. Estrangeiros no país vivem em seus condomínios, onde realizam missas, batismos, bebem etc. No entanto, o Islam tem regras de convivência com outras religiões, é só ler a constituição de Medina, os acordos que o Profeta Muhammad SAAS fez quando migraram para essa cidade ainda no século 7.

Ao assinar um contrato, certamente foi dada a Neymar a liberdade religiosa. Isso não significa que ele terá um templo religioso para frequentar, mas que poderá praticar sua religião em seu “castelo”, sua residência luxuosa. Quem ficou atento à chegada do jogador na recepção feita pelo clube percebeu que ele usava um crucifixo ostensivo para fora da camisa (informo que Neymar continua vivo na Arábia Saudita). Alguns perguntavam sobre bebidas alcoólicas; logo percebo que nunca estiveram na Arábia Saudita. Sim, as pessoas conseguem álcool com facilidade, na verdade, tudo que foge à regra islâmica é possível conseguir em hotéis e nesses condomínios de estrangeiros.

Li, atentamente, no último final de semana, a carta de Jamil Chade ao Neymar e concordo quando o jornalista diz que a Arábia Saudita não garante os direitos humanos; penso que nem sabem o que significa isso. Mas discordo quando diz que Neymar esteja favorecendo ainda mais o processo dessa ditadura, talvez não (quero crer nisso), porque a compra de um jogador não esconde nada de um país. Talvez a cortina de fumaça do governo saudita vire contra eles, ao passo que podem estar empoderando ainda mais homens e mulheres contra aquilo que eles não concordam. Se promover a “modernidade” é apenas fictício, pelo menos na ficção ela passa a existir, pois nem isso tem sido possível, e, convenhamos, pode sim, desencadear reflexões desse povo em relação aos seus direitos como cidadãos. O Islam tem uma declaração sobre direitos humanos fácil de se encontrar na internet, mas vale lembrar uma passagem do Alcorão (5:32):

“[…] quem mata uma pessoa, […] será como se matasse todos os homens. E quem lhe dá a vida será como se desse a vida a todos os homens […]”.

Compreendo quando Chade se preocupa com as mulheres, realmente, é um absurdo terem demorado tantos anos para permitirem que as mulheres dirigissem e/ou que pudessem frequentar um estádio de futebol, mas é preciso ter sempre cuidado para balizar o que para nós chamamos de “direitos iguais”, para eles/as, podem ter outra conotação. Encontraríamos, certamente, pouquíssimas mulheres que aceitariam, por exemplo, prover a casa, porque isso é obrigação do homem, é regra religiosa, uma regra da qual muitas não abrem mão, mesmo quando trabalham e têm seus salários. Aliás, pela religião, o dinheiro ganho pelo fruto do trabalho das mulheres, de uma herança etc., não pode ser usado pelos homens, a não ser que seja com a sua autorização. É preciso ouvir o que dizem as mulheres sauditas sobre suas agendas e demandas.

Quando se refere à autorização de um homem para viajar, isso acontece em determinadas situações, principalmente, quando se é muito jovem, mas em geral atribuem sempre proteção a uma pessoa quando está em viagem, isso é costume dos povos do deserto – não se viajava sozinho/a, e as mulheres no deserto eram consideradas as mais vulneráveis. Gosto sempre de lembrar o caso de uma antropóloga palestino-americana – Lila Abu Lughod – quando foi fazer campo no Egito. Seu pai fez questão de acompanhá-la, porque ele deveria apresentá-la ao grupo com o qual ela faria pesquisa. Ir com a filha é dizer que ela tem uma família, um sobrenome, nesse sentido é um costume para além da religião. É bom recordar a tutela à qual mulheres brasileiras estavam submetidas há bem pouco tempo aos seus maridos – pátrio poder. Mudanças recentes no Código Civil dão autonomia às mulheres, mas elas seguem morrendo, não há cortina de fumaça que consiga esconder as mortes de mulheres no nosso País.

Quando Chade se refere a “obedecer” ao marido, é preciso refletir sobre o que as mulheres pensam a respeito de trabalho, educação, cuidado, casamento etc. Acompanho algumas mulheres que moram na Arábia Saudita e, toda vez que converso com elas, percebo o quanto estamos distantes da realidade que elas vivem. Há diferenças, sem dúvida, é uma sociedade homossocial, mas isso não implica que as mulheres vivam sob opressão, não mais, pelo menos, que nós mulheres no Ocidente, onde a taxa de feminicídio é altíssima. Talvez fosse mais útil fazer uma gramática das violências que nós mulheres vivemos em qualquer lugar do mundo.

A questão da tutela dos filhos hoje é muito variada nos países islâmicos, não dá para dizer que todos aceitam dessa forma. Em geral, a tutela dada ao homem desobrigava a mulher do cuidado constante e facilitaria que ela pudesse se casar novamente, o que para os homens segue sendo muito mais fácil em qualquer sociedade após o divórcio, pois em geral não ficam com a guarda dos filhos, mais recentemente, se fala de guarda compartilhada.

Talvez a questão mais problemática seja a questão LGBTQIAP+, porque na verdade muitos acreditam ser algo que se desvia do comportamento adequado. O interdito da homossexualidade “fere” a “constituição” da família heteronormativa. O fato de ser considerado pecado do ponto de vista religioso (para religiões monoteístas) não deveria ser motivo para saírem desrespeitando os direitos humanos e gerando violências etc.

A Arábia Saudita é uma monarquia regida por preceitos religiosos (baseada em uma leitura literalista da Sharia), não se trata de uma democracia. Isso poderia explicar alguns comportamentos, mas não todos, pois a Sharia não tira direitos de mulheres, não as trata como cidadãs de segunda classe. Isto posto, não deveriam ter proibido jamais uma mulher de dirigir ou de participar de um jogo de futebol. Concordo que agem como ditadores quando assassinam jornalistas, intelectuais e pessoas que possam discordar do seu pensamento, inclusive sheiks e pessoas religiosas, mas uma crítica ao governo não invalida o respeito que devemos ter pelo povo saudita, seus costumes e valores religiosos. É preciso tomar cuidado para que determinadas críticas não virem islamofobia e desencaminhem o diálogo tão importante e muito diverso.

Chade escreve: “A estratégia é simples: usando o futebol, um regime dos mais autoritários vende ao mundo uma ideia de modernidade, de abertura, de tolerância, de saúde e de entretenimento”. Mesmo com todos esses problemas e questões que se cruzam, ainda considero que o efeito do futebol para essa sociedade seja positivo. Aliás, não foi Pelé quem parou uma guerra na África em 1969? Por que esses jogadores não podem trazer um efeito de reflexão contra essa ditadura monárquica? Atenção, não é sobre os jogadores, aliás, não é Neymar que fará nada a respeito disso, mas me refiro ao “efeito Neymar” entre outros jogadores presentes na sociedade saudita.

É preciso lembrar que países que prezam a democracia podem ser tão violadores de direitos humanos quanto qualquer país islâmico, exemplos não nos faltam. Os EUA invadiram o Iraque, o Afeganistão, estupraram mulheres, violaram leis, tudo em nome de uma democracia e do combate ao terrorismo. Terrorismo esse que mata mais muçulmanos que qualquer outro grupo. As violências propagadas pelo colonialismo deixam marcas em todos os lugares, basta ver a Nakba Palestina até os dias de hoje, as sociedades indígenas no Brasil, a morte de negros cotidianamente, as taxas de feminicídio, entre outras violências marcadas pelo Ocidente democrático.

Neymar é uma “versão milionária e contemporânea de um antigo jogo: o de usar o papel picado das arquibancadas para criar uma cortina de fumaça e camuflar a repressão”. Sim, Chade, mas quem sabe, hoje, com tantos meios de comunicação disponíveis, outros modos de luta e sobrevivência possam renascer entre aqueles que alguns consideram oprimidos ou subalternizados. Eu sigo confiante na luta e na resistência do povo saudita para preservação do que há de bom em sua cultura e valores, e para dissipar o que há de ruim no que se refere a não considerar os direitos humanos.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

Francirosy Campos Barbosa é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.

1 COMENTÁRIO

  1. Sem beber? Sem professar religião? O nível de desinformação dos “jornalistas ” da mídia hereditária é impressionante. MBS o novo rei, o que mandou MATAR o kashogi na embaixada de Ancara. Está liberando geral. As mulheres podem dirigir suas suv’s. Pode beber na balada, tirar o veo. Ele quer transformar A Arábia Saudita em uma espécie de Dubai. Logo o verme Nei mar está em casa.

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