Guerra às drogas: a profecia autorrealizável

Qualquer debate sobre prazer ou prática social com psicoativos é apagado. Mas a repressão a usuários produz exatamente o que diz combater: quando expostos à barbárie, muito jovens são empurrados pelo próprio Estado para as margens do sistema.

SALVADOR, BAHIA / BRASIL – 7 de outubro de 2016: Batalhão do Choque da PM aborda homem durante operação no Vale das Pedrinhas em Salvador – Foto da comunidade local

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Não sei se as pessoas chegaram a ver aquelas cenas da invasão a uma rede de TV no Equador, no ar, ao vivo, que teria ocorrido dentro de uma sublevação nacional do crime organizado. Seja como for, estas cenas foram importantes para criar a comoção social que hoje o Equador ainda está vivendo. Quando eu vi aquilo, imediatamente senti que era uma cena fake e já comecei a antever as medidas que viriam como resposta.

Hoje alguns órgãos da mídia de esquerda já mostram algumas suspeitas com relação à pretensa invasão da TV equatoriana, mas, nos primeiros dias ninguém se atreveu a pôr em dúvida a sua veracidade, nem ninguém questionou a necessidade de medidas repressivas extremas no país. Isso me despertou, mais uma vez, aquela forte impressão de como é fácil enganar a população, em geral, quando o assunto é o tráfico de drogas e me despertou também a reflexão sobre como este tema tem sido sempre utilizado como um instrumento ideológico dentro das políticas de manipulação e opressão sociais.

O fato é que as cenas absurdas da invasão da TV, com toda a cara de uma farsa ridícula, sem qualquer realismo, serviram como um componente a mais dentro do contexto de exacerbação da violência criminal no país, justificando a adoção de medidas excepcionais. E logo vieram as medidas restritivas de direitos, a concentração de poder no governo e militares e, por fim, o recurso à presença militar dos EUA dentro do Equador.

Isto atende às necessidades geopolíticas dos EUA, em um momento de grande acirramento dos conflitos internacionais e de declínio do poder econômico dos EUA no mundo. Isto atende também a interesses da família do presidente do Equador, que é dona da maior exportadora de bananas do país e esta é, justamente, a principal forma tráfico internacional de cocaína a partir do Equador, no meio dos carregamentos de bananas. Além disto, parece mesmo que a imposição da política liberal e de submissão aos EUA já não pode mais ocorrer sem o recurso a alguma forma de poder de exceção, não constitucional, neofacista.

Mas é preciso um motivo para a imposição de medidas de exceção e para se conceder um salvo conduto para o poder discricionário, fascista. É preciso um certo grau de descontrole e terror social para tanto. É preciso algo muito grave, um certo grau de comoção social, que funcione como o gatilho. Agora, recentemente, na Argentina, a espiral inflacionária é que foi este gatilho. No Equador, foi a pretensa “sublevação das facções”. Estes foram os gatilhos, nestes dois países. para a imposição de medidas de exceção, com restrição de direitos, alinhamento completo aos interesses geopolíticos dos EUA e aumento da repressão social.

Por outro lado, de certo modo, as massas empobrecidas de todos países submetidos ao imperialismo estão sempre sob estas condições de descontrole e terror social, reais e manipulados. Sempre suscetíveis a algum nível de poder discricionário, violento e abusivo, legal ou ilegal, sempre submetidas a situações de exceção na sua vida cotidiana e, como país, sempre sob o risco de recaimento no fascismo, na ditadura política. A mentira, a manipulação e a farsa, por um lado, assim como a violência abusiva, ilegal, bárbara, inconstitucional, fascista, por outro, são estruturais para os sistemas de opressão social nas nossas sociedades.

A imposição do medo e do terror à população é parte muito grande destas estruturas de poder e é evidente o papel que a manipulação das informações tem aí. Problemas verdadeiros e realmente importantes, como são os casos graves de dependência e abuso de drogas, as crises econômicas, e a violência criminal, por exemplo, recebem massivas doses de manipulação ideológica midiática, até estes problemas e suas soluções, falseados e distorcidos, se tornarem instrumentos para a opressão social.

A política contra as drogas, a política antidrogas, a guerra às drogas, desde sempre, cumpriu, e continua cumprindo, com alta efetividade, um papel muito importante nestas estruturas. A política antidrogas que prevalece, aqui no Brasil e na América Latina em geral, é, na realidade, uma política de violência e controle social, travestida de defesa da segurança e da saúde pública. A guerra às drogas é realmente uma parte fundamental da ideologia e práticas fascistas que sempre estiveram disseminadas e são fortemente arraigadas nas nossas sociedades.

Poucos são os recursos ideológicos e morais mais adequados do que a questão do envolvimento com drogas para cumprirem este papel. Aí não importa a realidade, nem o conhecimento, pois o drama e a manipulação emocionais imperam neste campo. As mentiras, as farsas, as manipulações grosseiras são uma marca característica, sempre presentes na ideologia antidrogas. Estão presentes na falsificação dos dados e das análises epidemiológicas; estão presentes na justificação do uso de tortura e das operações policiais assassinas e de controle ou limpeza social e étnicas; estão presentes na utilização predominante de recursos religiosos e policiais na abordagem “terapêutica” dos casos e das situações de drogadicção; assim como estão presentes na montagem de verdadeiras farsas cinematográficas e na imposição de medidas de exceção e controle militar sobre as populações. Praticamente qualquer mentira que se contar dentro da ideologia de guerra contra as drogas é facilmente aceita e não pode ser alvo de questionamento. Quem o faz, tende a ser prontamente e agressivamente anatemizado, por ser contrário ao bem comum, às famílias, à dignidade e à saúde das pessoas. Ou seja, é visto como um inimigo da sociedade e da família.

Os riscos e os problemas verdadeiros que podem ocorrer com alguns tipos de usos de drogas e as possíveis soluções para estes problemas são muito distorcidos e, muitas vezes. são completamente invertidos, até resultarem, enfim, em instrumentos ideológicos valiosos para a opressão violenta das pessoas envolvidas e das populações empobrecidas nas periferias do império, em geral.

A ideologia que prevalece nesta política de guerra às drogas é que elas estão sempre associadas à criminalidade, à degradação social e à violência. E que elas devem ser proibidas e banidas da vida social porque sempre levariam à dependência, à degeneração moral e ao banditismo. Infelizmente, esta ideologia contém algo de uma terrível profecia autorrealizável. Se a sociedade segrega as pessoas, se você as discrimina, se você considera aquilo que para elas é prazer ou prática social como algo perverso, doentio, imoral, proibido, ilegal e criminoso, é bastante razoável se esperar que muitas delas se tornem, justamente, aquilo que a sociedade imputa a elas. Não necessariamente em consequência das drogas, mas pela própria criminalização e segregação social.

Existem níveis muito diferentes de risco psíquico e social nas mais diversas formas de uso das mais diversas drogas, mas, também, há aí toda uma imensa zona cinzenta em que conflitos interpessoais são resolvidos pela imputação de crime ou doença a quem se envolve com drogas. Antes mesmo de serem julgados, condenados, ou, presos por isto, mães e pais podem facilmente ser afastados de seus filhos, jovens podem ser retirados do seu convívio social, ter a liberdade restringida, serem submetidos à “contenção química”, pessoas podem perder seus empregos, serem excluídas da família etc., simplesmente pela acusação de envolvimento com drogas. Sejam quais forem os reais motivos e conflitos nestas situações, a acusação de envolvimento com drogas é suficiente para resolver a situação. Esta acusação é, hoje, na nossa sociedade, um dos principais recursos ideológicos de coação pessoal. Um recurso ideológico repressivo com forte consonância moral, religiosa, médica, policial, judicial e penal na nossa sociedade.

De forma paradoxal, mas, nada surpreendente, entre os maiores combatentes contra as drogas, sejam políticos, ou promotores e juízes, delegados e policiais, religiosos e influencers ou pais e mães de família respeitáveis, grande parte é drogada ou traficante; são, produtores, são vendedores e ou são usuários e dependentes das drogas, que eles dizem combater. Esta farsa é uma das faces mais perversas da guerra contra as drogas. Grande parte dos principais combatentes nesta guerra estão jogando nos dois lados, ganham dinheiro e sustentam a cadeia de produção e venda das drogas e, em público, são inflamados guerreiros da causa da proteção da família e da sociedade contra as drogas.

Tudo hipocrisia e mentira. Tudo manipulação ideológica. O sistema é montado de tal modo que a violência contra certos grupos sociais seja sempre justificada, ao passo que, na outra ponta, lucra-se muito com a criminalização das drogas.

Os maiores combatentes contra as drogas estão com as mãos nos microfones que escandalizam, estão com as mãos nas canetas que penalizam e nas armas que matam, mas estão com as mãos, também, na grana que as drogas geram. É simplesmente impossível haver crime organizado, como é o tráfico de drogas, sem a participação, sem o envolvimento direto, de parcelas significativas do aparato repressivo, das polícias, da justiça, dos políticos e do mundo religioso. Todos envolvidos e ganhando muita grana, mesmo, com as drogas proibidas. Aqueles que as combatem são também os que produzem, distribuem, lavam dinheiro e lucram com o tráfico.

O sentido da criminalização e da guerra contra as drogas não pode ser, não é, portanto, a redução ou a eliminação das drogas. As mortes e as prisões de milhares, de milhões de jovens brasileiros, que se repete aqui, sem fim, todos os anos, é um ciclo necropolítico de destruição e autodestruição imposto contra a nossa juventude, um ciclo perverso de destruição de potencialidades, de capacidades, de forças criativas e transformadoras. Feito pelo mesmo sistema que lucra com as drogas.

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