Fazenda Annoni: ocupação que marca história do MST desafia ‘berço da soja’ com cooperativismo e produção diversificada de alimentos

Área de latifúndio desapropriado ainda na ditadura militar hoje abriga sete assentamentos e 423 famílias

Na região conhecida como “berço da soja no Rio Grande do Sul”, cooperativa do MST produz variedade de gêneros alimentícios para consumo próprio e comercialização – Por Pedro Stropasolas/Brasil de Fato

Por Rodrigo Chagas e Pedro Stropasolas
Edição Vivian Virissimo

A luz da lua cheia permite ver no breu sem uso de lanterna ou qualquer iluminação artificial. Era do que precisavam as 1,5 mil famílias sem-terra na madrugada de 29 de outubro de 1985 para se agrupar silenciosamente na estrada, despistando a polícia, cortar as cercas, derrubar a porteira e ocupar a disputada fazenda Annoni, em Sarandi, no norte do Rio Grande do Sul (RS).

Dentro do terreno, tudo era capim, algumas cabeças de gado e equipamentos abandonados. Os planos de ocupação haviam iniciado dois anos antes e possibilitaram reunir sete mil pessoas de 33 municípios vizinhos. Cerca de 150 ônibus e caminhões foram mobilizados.

Não houve repressão policial que pudesse com tamanha massa de gente. As autoridades foram forçadas a negociar. Um longo período de resistência se seguiu até que todas as famílias fossem assentadas, em 1993. Na fazenda Annoni, permaneceram 423, organizadas em sete assentamentos equipados com escolas, ginásios, igrejas, espaços de lazer, energia elétrica, água encanada e saneamento básico.

Após décadas de luta e aposta no trabalho coletivo, a área de 9,3 mil hectares destoa de seu entorno no noroeste gaúcho, região de campos infinitos de soja, ao produzir diversidade de alimentos e iniciar experimentos para produzir soja não-transgênica e orgânica.

Naquela que é considerada a primeira ocupação de terra na história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a vida mudou radicalmente, é confortável. As famílias sem-terra de outrora hoje se orgulham de serem produtores respeitados na região. Se é possível apontar alguma frustração, é que o socialismo sonhado, a transformação não só da própria vida, mas da sociedade, ainda não chegou.

Do “não tinha nada” ao “temos de tudo”

“Tudo que tem aqui foi construído, plantado, produzido. Aqui só tinha capim. Não tinha nada nessa área aqui, absolutamente nada. Se você tem um pé de árvore aqui é por que foi plantado pelas famílias que vieram para cá”, resume Irene Lill, integrante do Assentamento 16 de Março e moradora da agrovila da Cooptar, onde convivem 17 famílias em torno de uma praça central arborizada e plantando a própria comida.

Ela é representante de um grupo de famílias que, mesmo após a conquista da terra, resolveu seguir o caminho da coletividade, da cooperação agrícola.

A Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata (Cooptar) foi criada em 1990 e mostrou ser possível diversificar a produção, mesmo inserida na região conhecida como “o berço da soja no Rio Grande do Sul”. As famílias cooperadas também plantam a soja e o milho, mas sua principal fonte de renda vem da criação de gado, porcos e da produção de leite.

Atualmente, investem em um experimento com 17 hectares de soja não-transgênica, com uso de bioinsumos e da semente convencional da soja.

“Nossa plantação só não é orgânica porque ainda precisamos usar herbicidas para controle de ervas daninhas, mas pretendemos fazer isso de forma mecanizada, usando máquinas apropriadas”, explica Isaias Verdovatto, um dos responsáveis pela produção do assentamento, que explica que a viabilidade de um cultivo totalmente orgânico depende da disponibilidade de maquinário acessível à agricultura familiar.

“Naquele período histórico nós não discutíamos o modelo de produção. Precisávamos mostrar que nós pobres camponeses éramos capazes de produzir e, por isso, acabamos reproduzindo a estrutura produtiva do grande latifúndio”, explica o agricultor Mario Lill, referindo-se ao sistema de monocultivo de soja adotado por grande parte das famílias assentadas.

“O segundo passo nós fomos aprendendo com a história”, continua Lill. Segundo ele, com a modernização do capitalismo no campo, o latifúndio passou a produzir em monoculturas de grande escala, o que obrigou as famílias a uma reorientação.

“Nós hoje aqui produzimos leite, nós produzimos comida, carne, toda a produção para alimentação, para sair da monocultura, para enfrentar a monocultura e dar uma resposta para a sociedade, para melhorar o padrão alimentar da sociedade com a nossa produção, com o nosso trabalho”, explica.

“A reforma agrária do futuro é uma reforma agrária com diversificação. Hoje, não basta distribuir terra para criar pequenos produtores de soja, não é mais isso.”

Do analfabetismo ao ensino superior

Quando Paulo Freire visitou assentamentos do MST no Rio Grande do Sul, no início dos anos 1990, seu método de alfabetização já era utilizado por educadoras como Maria Salete Campigotto, moradora de um dos assentamentos da região e diretora do Instituto Educar, criado em 2005 dentro da Annoni, para oferecer ensino técnico em agropecuária com foco em agroecologia.

Salete iniciou a trajetória como educadora no movimento ainda como acampada, no início dos anos 1980, trabalhando junto de outras professoras na escolarização de crianças e alfabetização de adultos.

“Hoje estamos no magistério, na agricultura, na saúde, no direito, em várias áreas nós temos o nosso exército sem-terra formando e formando”, comemora referindo-se às oportunidades de formação ofertadas pelo movimento por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e dos 49 centros de ensino do MST em todas as regiões do país.

Além do curso técnico, o Educar oferece o curso de graduação em Agronomia e vai formar sua terceira turma de engenheiros agrônomos do movimento em março de 2025, no marco de 20 anos do instituto.

“No começo, eu pensava na educação das crianças e dos adultos daquele assentamento, mas não imaginava que hoje seríamos um movimento que está no país inteiro, que pensa na importância da luta pela terra, de viver bem e com saúde, dos nossos filhos estudarem”, analisa a educadora.

Organização meticulosa

O agricultor Isaias Vedovatto, hoje aos 60 anos, foi um dos quatro sem-terra de um grupo seleto responsável por mapear previamente a fazenda Annoni. Dessa forma, no dia da ocupação, já saberiam onde montar o acampamento, construindo com agilidade os barracos.

No sábado que antecedeu a entrada na área, lideranças se reuniram no tradicional Baile de Chopp, de Ronda Alta.

“Compramos aqueles barris de chope, reunimos 40 pessoas como se estivéssemos de festa no baile. E ali combinamos detalhes da ocupação”, relembra.

“Quem estava ali tinha que voltar para os seus lugares e tinha esses dias para organizar os caminhões. Combinamos também como é que a gente fazia para mais ou menos chegar ao mesmo tempo”, completa.

Planejaram de reunir-se na primeira hora do dia 29, terça-feira. As encruzilhadas foram marcadas com ramos verdes para que ninguém se perdesse, sinais de luz foram combinados como códigos de identificação. Muitos caminhões, especialmente os vindos de longe, tardaram mais que o previsto para chegar, mas, quando uma patrulha da polícia passou – sem parar – pelos agricultores escondidos à beira da estrada, o sinal para avançar foi dado.

“Na primeira noite, tinha barracos que tinha seis, sete famílias. Depois, aos poucos cada família foi fazendo o seu barraco”, rememora Mario Lill, hoje aos 58 anos.

“O mais importante era estarmos prontos para a peleia, porque antes de amanhecer o dia a Brigada estava ali já querendo tirar, querendo fazer despejo. Só não fomos despejados da Annoni na época porque era muita gente. Era muita gente e a Brigada Militar não tinha efetivo suficiente”, conta o agricultor, que relata que o local permaneceu dias cercado pelas forças de segurança.

Efervescência da luta pela terra

A luta organizada pela reforma agrária e a adesão de governantes – como Leonel Brizola e o próprio presidente João Goulart – foram fatores chave para o golpe militar de 1964. Anos mais tarde, já quando a ditadura perdia força e trabalhadores do campo e da cidade se organizavam por direitos, as sementes do que viria ser o MST começaram a ser plantadas.

Foi nesse contexto que, em 1979, a poucos quilômetros da fazenda Annoni, famílias sem-terra ocuparam as fazendas Macali e Brilhante. Esses camponeses haviam sido despejados de ocupação irregular em território indígena de Nonoai, outro município da região. De um dia para o outro, cerca de mil famílias sem-terra passaram a vagar pelos municípios do norte do RS e se organizaram para obter novamente um pedaço de terra.

A memória dos assentamentos realizados por Leonel Brizola na mesma área, em 1962, trazia inspiração. Com apoio determinante das pastorais da Igreja Católica, de sindicatos da região, cerca de 200 famílias foram rapidamente assentadas. A vitória de Macali e Brilhante fez crescer a motivação dos sem-terra.

“A igreja, as comunidades eclesiais de base, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), elas tiveram papel fundamental no sentido de organizar o povo”, relata Irene Lill, assentada na fazenda Annoni que se aproximou da luta acompanhando ocupações pela Pastoral da Terra.

“A gente fazia reuniões nas comunidades e trabalhava tudo a partir da leitura da Bíblia, a questão da consciência, da importância das pessoas se organizarem para buscarem a sua terra prometida, que não precisava tu morrer para tu conquistar o reino do céu”, explica, enfatizando o processo de formação de lideranças que ocorreu à época.

Em 1981, mais um capítulo importante dessa história. Surge um novo acampamento reunindo cerca de 500 famílias na Encruzilhada Natalino, na mesma região de Annoni, Macalli e Brilhante, deu continuidade à luta. Com o crescimento da luta pela terra na região, a ditadura encarregou um de seus mais destacados repressores, o Major Curió, para desmobilizar as famílias. Curió foi derrotado após um mês de intervenção federal.

“A mística religiosa foi sem dúvida o que sustentou toda luta para enfrentar o Curió”, diz ao Brasil de Fato um dos personagens mais reconhecidos por sua atuação na organização da luta pela terra na região, o padre Arnildo Fritzen, hoje com 81 anos.

“Foi muito sofrido, ainda mais na beira de uma estrada. Ele passava com os cavalos militares na água que usávamos para beber e passava patrola na estrada para levantar mais poeira”, relata o religioso sobre as táticas usadas pelo militar para reprimir o acampamento. “E aí no meio começou a morrer criança.”

Ocupações de terra continuaram desafiando a ditadura, também em outros estados do Brasil. A efervescência daqueles anos resultou na criação do MST, em janeiro de 1984. É também resultado dela a grande mobilização que permitiu a ocupação da cobiçada fazenda Annoni.

“O coletivo foi o que formou a cabeça das pessoas, o conjunto, e foi conquistando todas as coisas. E continuou depois do assentamento. Eu acho que o caminho que o MST fez depois de assentado na terra é enormemente grande”, reflete padre Arnildo.

“Nunca parou, sempre questionou. Uma coisa é a luta pela terra, mas e na terra o que nós temos que fazer para nós e para toda a sociedade?”, pondera, destacando as escolhas do movimento por modelos de produção coletivos, pela agroecologia e a prática da solidariedade.

“Essa bandeira foi abraçada desde o começo da luta e até hoje sempre é um dos pontos mais altos do movimento.”

A coletividade que ocupou a fazenda Annoni dobrou a aposta ao conseguir permanecer, especialmente no período entre 1985 e 1987, sob constante ameaça de despejo, encarando a exclusão de parte da sociedade, mas organizando marchas, procissões, romarias e greves de fome para visibilizar sua luta.

A mais marcante delas partiu do território ocupado para percorrer um caminho de mais de 300 quilômetros a pé até Poro Alegre. Um grupo inicial de 300 acampados caminhou por 28 dias até a capital, ganhando adesões pelo caminho. Padre Arnildo calcula que eram 40 mil andando pelas ruas da capital em direção ao Palácio Piratini.

“Passamos por tudo para mostrar a nossa opinião pública, né? Mostrar para as pessoas que nós não somos o que eles dizem na imprensa, na televisão. Nós somos gente séria e queremos trabalhar, mas não queremos ocupar o lugar dos que estão na cidade, o lugar dos operários”, relata Arnildo Fritzen.

O período prolongado de resistência até os assentamentos definitivos, a vida necessariamente comunitária enquanto cada família não podia acessar seu sonhado lote de terra, as violências e perdas enfrentadas no caminho, tudo isso foi transformando a mentalidade dos ocupantes. É a visão de Isaias Vedovatto.

“No fundo, nós camponeses tínhamos a visão de resolver o nosso problema, que era a luta pela terra. Depois tu vais compreendendo a sociedade, tendo noção das coisas e tendo essa visão maior do que é o mundo”, destaca Vedovatto, que conta que ele e diversos companheiros e companheiras puderam estudar e conhecer outras experiências de luta no Brasil e fora dele por meio da militância no MST.

Annoni: minha terra improdutiva

Muito antes de o MST existir, já temendo ver o latifúndio da família desapropriado, Ernesto Annoni, o patriarca, resolveu dividir a propriedade da terra entre 11 familiares. Não foi o suficiente.

A fazenda foi desapropriada pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) em 1972 para assentar famílias despejadas de suas terras pela construção da barragem do Passo Real, pela empresa Eletrosul.

Os Annoni, então, vão brigar na Justiça para defender seu latifúndio. O litígio se arrasta e faz com que a terra fique “congelada” por mais de uma década. Até ser ocupada pelas 1,5 mil famílias em 1985.

Enquanto isso, no mundo dos negócios, o fazendeiro Annoni, buscava lucro com a venda de uma espécie de capim trazida da África do Sul. A fazenda homônima era tomada desse tipo de pasto exótico – na verdade, não havia nada além dele.

Após a ocupação, foi preciso um grande mutirão que reuniu dezenas de tratores emprestados por outros agricultores da região para lavrar a terra e começar os primeiros cultivos.

“Usamos 50 tratores, e na época era muita coisa. Tratores vindo em solidariedade, não eram nossos, eram de amigos da reforma agrária, amigos do MST, amigos da luta pela terra que vieram ajudar”, conta Mario Lill.

“Esse campo era só barba de bode e capim-annoni, que é uma praga que hoje tomou conta aqui do estado.”

De fato, capim-annoni adorou o solo brasileiro, mas o gado não gostou desse capim. Se hoje a fazenda Annoni está transformada em um grande celeiro de grãos, animais e hortaliças, o capim que tomava conta daquela terra tornou-se a principal praga dos campos do Rio Grande do Sul – infestando 20% da área com vegetação nativa no estado.

Quase 40 anos depois, o cenário da fazenda Annoni está totalmente transformado. A vida daqueles agricultores sem-terra que resolveram lutar, também. Para Isaias, é difícil resumir em poucas palavras. Ele e seus companheiros têm casas confortáveis, luz elétrica, água encanada, internet, a grande maioria tem carro. Todos dispõem de escolas e postos de saúde.

“Todos estudam. A grande maioria dos filhos da minha geração fez faculdade, podem se formar aqui dentro do assentamento mesmo”, orgulha-se.

Para Isaias, hoje a Annoni representa uma força política e econômica da região, por conta da organização e das cooperativas: “Diferente do que foi lá no início”.

“No início nós éramos discriminados por sermos acampados, porque viemos do acampamento. Hoje as empresas da região nos procuram aqui, porque nossa condição é melhor do que a de outros produtores da região, inclusive mais antigos do que nós.”

40 anos atrás, 40 anos adiante

O primeiro congresso do MST ocorreu em janeiro de 1985, em Cascavel, no Paraná. Desde então, ocupações de terra – como a da fazenda Annoni – organizadas pelo movimento pipocaram por todo o país. São 400 mil famílias assentadas, outras 70 mil estão acampadas em busca da conquista da terra.

Passados 40 anos, o MST é o movimento camponês mais longevo da história do Brasil, organizado em 24 estados, com uma estrutura produtiva diversa. São 185 cooperativas, 1,9 mil associações e 120 agroindústrias.

“A principal coisa que o MST fez nesse período foi resgatar a dignidade das pessoas, as pessoas voltarem a ser gente, a serem vistos, a terem identidade”, avalia Irene Lill.

“Quando a gente começou nos nossos acampamentos, aquela miséria toda. E era uma miséria que não era só de bens de bens materiais. Então eu penso que o maior patrimônio do MST nesses 40 anos é ter resgatado a dignidade das pessoas.”

“Ao mesmo tempo em que você mudou a realidade objetiva, você foi aumentando a dignidade subjetiva, as pessoas foram podendo erguer o nariz e dizer ‘opa, eu sou gente’”, complementa Mario Lill.

Isaias Vedovatto se sente realizado como um dos pioneiros e após 40 anos de militância no MST, mas confessa que também carrega frustração. “Naquele período a ideia da mudança, da revolução, parecia algo muito mais próximo. O debate do socialismo e da revolução era muito mais vivo, muito mais presente”, rememora o agricultor.

“Minha frustração é porque eu acho que a gente podia ter sido um pouco mais radical, podia ter avançado mais no processo de mudança da sociedade”, conclui.

A educadora Salete, usa da sua experiência para lançar um olhar ao futuro. “Enquanto houver gente sem terra, nós não podemos parar, esse é o nosso foco. Enquanto tiver terra acumulada, nós não podemos parar.”

“Se são 30, 40 ou 50 anos eu não sei, não vou estar lá, mas precisamos continuar, por que nossa luta vai além da luta pela terra, é a luta da justiça social, é a luta para que se elimine a fome deste país, a luta para que tenhamos igualdade. É por isso que eu acho que o movimento tem muitos e muitos anos pela frente”, esperança.

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