Elisa Loncón, constituinte mapuche: “É possível refundar o Chile”

A eleição de Elisa Loncón expressa transformações profundas na sensibilidade da sociedade chilena em relação ao povo mapuche que ficaram visíveis sobretudo nos últimos anos por conta de revelações de operações e montagens policiais destinadas a criminalizar sua luta

Elisa Loncón. Foto: Captura de tela do Twitter

No dia 4 de julho, Santiago do Chile foi palco de um dos atos democráticos mais transcendentais produzidos durante os dois séculos da história republicana do país: a instauração da primeira assembleia de representantes eleitos pela votação popular com mandato para redigir uma nova Constituição. Este fato histórico é resultado da revolta social de outubro de 2019, cuja envergadura inédita conseguiu romper as sólidas barreiras antidemocráticas que durante décadas impediram a representação dos interesses populares na política. Por isso, em reconhecimento a sua origem, a primeira jornada da Convenção começou nas ruas, nas diferentes concentrações convocadas para ir marchando até a sede onde se realizaria a reunião.

As imagens do dia foram expressivas do ciclo aberto: as ruas sobre as quais aconteceria a revolta popular, ocupadas novamente por milhares de pessoas e pelos representantes dos movimentos sociais, feministas, ambientalistas e nações indígenas que estavam a ponto de inaugurar esse espaço conquistado pelo povo que irá pôr fim à constituição de Pinochet e expressará uma nova relação de forças sociais e de classe no ordenamento jurídico.

A transcendência histórica da jornada, além de estar em seu caráter inédito e em seu vínculo com a revolta, se deu por uma série de momentos nos quais se juntou eloquentemente a característica popular e democrática do processo em curso anunciando novas formas de entender a política, a democracia e a soberania dos povos.

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“Mari mari pu lamgen. Mari mari kom pu che. Mari mari Chile Mapu”

Uma imagem deu a volta ao mundo: Elisa Loncón, mulher mapuche, assumindo como presidenta da Convenção Constitucional sendo acompanhada, ao seu lado, da xamã Francisca Linconao, ex-presa política e respeitada autoridade espiritual. Ambas à frente da assembleia de todos os povos do Chile, levantando a bandeira mapuche. Essa imagem condensa, como nenhuma outra, a profundidade do processo que estamos vivendo. Há poucos anos, era impensável que uma mulher mapuche – um povo perseguido pelo Estado do Chile e desprezado pelas classes dominantes – estivesse encabeçando o órgão representativo mais importante do país. Hoje, no entanto, não só é uma realidade como também um marco que orgulha e alegra muitos setores da sociedade chilena que veem aí uma mostra de que é possível escrever uma nova história, desta vez protagonizada pelos setores historicamente alijados, bem representados pelo povo mapuche.

Elisa Loncón na inscrição de sua candidatura ao processo da nova Constituição, em janeiro de 2021. Foto: Mediabanco Agencia/Flickr

A eleição de Elisa Loncón expressa, portanto, transformações profundas na sensibilidade da sociedade chilena em relação ao povo mapuche que ficaram visíveis sobretudo nos últimos anos por conta de revelações de operações e montagens policiais destinadas a criminalizar sua luta, também por casos como o do assassinato do jovem “comunero” Camilo Catrillanca, que comoveu o país gerando amplo rechaço e solidariedade de diversos setores. Atualmente, o povo mapuche é reconhecido pelo país como ícone de resistência e dignidade, convertendo-se num referencial de luta para os outros povos que habitam o Chile, especialmente para a juventude popular que durante a revolta de outubro de 2019 tremulou a bandeira mapuche por todos os rincões do território. Essa nova sensibilidade ficou plasmada no amplo apoio que obteve a candidatura de Elisa Loncón, anunciada em 21 de junho deste ano, na festa de Wüñoy Tripantu, como um gesto político. A recepção favorável da proposta foi imediata entre os representantes dos movimentos sociais e da Frente Ampla, que manifestaram seu apoio abertamente e votaram ordenadamente pela candidata mapuche na primeira consulta da Convenção. Posteriormente, no segundo turno, Loncón recebeu o apoio dos membros da Lista do Povo, do Partido Comunista, do Partido Socialista e da maioria dos independentes, obtendo uma retumbante vitória.

A eleição desta mulher de 58 anos, ativista pelos direitos dos povos indígenas e acadêmica da Universidade de Santiago, foi um bom começo para as primeiras nações, pois mostrou a adesão da maioria da Convenção a uma representante que tem sido clara em plantear a necessidade de se proclamar o Chile como um Estado Plurinacional, uma das principais demandas dos povos originários que, para se tornar realidade, deverá ser apoiada por dois terços dos membros da Convenção.

“¡No a la represión!” O ocaso da política feita de costas para o povo

Se a eleição de Elisa Loncón foi o episódio que transcendeu as fronteiras, é preciso reparar no incidente que, no início da cerimônia, deu lugar à primeira demonstração de forças dos setores do campo popular que ingressaram na Convenção, anunciando imediatamente uma nova forma de exercer o papel de representante do povo em um espaço institucional. A tensão começou enquanto se entoava o hino nacional, o que foi rechaçado pelos constituintes indígenas e por outros grupos que se negaram a participar deste ato ofensivo às nações originárias. Então, entre vaias e gritos de ordem, a cerimônia, que havia começado às 10h da manhã, teve de ser suspensa porque um conjunto numeroso de membros da Convenção começou a protestar contra a repressão policial que ocorria no lado de fora do edifício onde estavam reunidos.

Membros representantes de movimentos sociais, feministas, da Lista do Povo, das nações originárias, que também receberam apoio dos que integravam a Frente Ampla e o Partido Comunista, começaram a lançar palavras de ordem e a impedir a continuidade do ato. “No más represión! No más represión!”, bradavam em coro ao mesmo tempo em que a encarregada por levar adiante os trabalhos era obrigada a suspender a atividade até cessar a repressão policial. De um momento para outro, a reunião tomava a forma de uma assembleia popular, ante a indignação da direita e a estupefação dos grupos progressistas apegados às boas maneiras. Enquanto isso, grupos de constituintes abandonaram o ato e regressaram às ruas para se somar às manifestações exigindo o fim da repressão. Depois do meio-dia, após a retirada das forças policiais ordenada pelo governo, retomaram-se as atividades.

Esta foi a primeira demonstração de força de uma parcela significativa dos membros da Convenção, provenientes das lutas populares. Mostraram nesta ação uma forma de fazer política que não vai aceitar as normas de boa convivência e cumplicidade com a repressão policial própria das elites. O gesto desses membros e a capacidade para mobilizar a maioria da assembleia contra a repressão policial foi um ato político da maior relevância e cumpriu o objetivo de expressar a disposição disruptiva de uma boa parte dos representantes do campo popular presentes na assembleia.

Memória, justiça e feminismo

A jornada, que já havia sido longa e intensa, culminou com três gestos chaves. Elisa Loncón, presidenta da Convenção, dirigindo-se a toda assembleia, convida a um minuto de silêncio pelos mortos nas lutas pela justiça. Em sua fala, evoca os mortos do genocídio perpetrado contra os povos indígenas pela imposição do Estado nacional, aos assassinados e desaparecidos pela ditadura militar e aos mortos da revolta popular de 2019.

O convite de Loncón foi um gesto político cuja transcendência é difícil de mensurar. Se a fundação do Estado chileno no final do século XIX se fundamentou pela opressão ao povo mapuche e se o Chile neoliberal foi erguido sobre a derrota do movimento popular, o novo Chile, que abriu a revolta social, e cujo custo de vidas, feridos e prisioneiros foi enorme, será construído sobre a memória destas lutas, sobre a justiça e sobre a reparação. Depois do minuto de silêncio respeitado solenemente, Elisa Loncón e Jaime Bassa anunciaram como primeiro ponto de pauta da seguinte jornada a elaboração de uma declaração para exigir a liberdade dos presos políticas da revolta popular que ainda se encontravam encarcerados, em outro sinal claro da vontade de não se repetir a impunidade que dominou as etapas anteriores comandadas pelas elites. Finalmente, o dia culminou com a entrega à presidenta da Convenção de uma proposta-regramento feminista elaborada por ativistas e militantes de diversos setores e agrupações. Um coro de mulheres constituintes, entre danças e aplausos efusivos, fecharam a jornada cantando: “Abaixo o patriarcado que vai cair! Abaixo o feminismo que vai vencer!”.

Sabemos que este processo acaba de começar e que resta muito caminho a percorrer, mas as imagens que deixou a primeira jornada da Convenção Constitucional alimentam a confiança, como disse Elisa Loncón em seu discurso de que é possível mudar o Chile: “Este sonho – para recuperar suas palavras – é um sonho de nossos antepassados. Este sonho se faz realidade. É possível, irmãs e irmãos, companheiras e companheiros, refundar este Chile.”

Pierina Ferretti é pesquisadora da Fundación Nodo XXI.

*Texto publicado originalmente na série Chilenisches Tagebuch de Medico International

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