Carta de Quito: Entregar Assange é matar o mensageiro e a verdade

Julian Assange, criador e editor do WikiLeaks e refugiado político na embaixada do Equador em Londres há seis anos corre grave perigo, pois deve ser entregue às autoridades britânicas a qualquer momento, segundo denunciou o jornalista Glenn Greenwald, co-fundador do meio digital The Intercept, a partir de informações de fontes próximas ao presidente equatoriano.

Em visita recente a Madrid, Lenín Moreno afirmou que Julian Assange deverá abandonar a sede diplomática em algum momento, e afirmou que esta situação “não se pode prolongar eternamente, é preciso encontrar uma saída”. O mandatário também indicou que mantém comunicação permanente tanto com o governo britânico, quanto com a equipe legal do também jornalista australiano, e acredita que “a vida de Assange “não correrá perigo”.

Bill Van Auken, do portal World Socialiksta Web Site (WSWS), considera que Moreno deixou claro que seu governo está negociando ativamente a entrega de Assange às autoridades britânicas, cuja polícia espera do lado de fora da embaixada equatoriana para capturá-lo no momento em que ponha um pé para fora Londres. “Se ele cair nas garras das autoridades britânicas, seria submetido a um longo período de prisão até a sua extradição aos Estados Unidos, onde poderia ser condenado a prisão perpétua, ou inclusive à pena de morte, por espionagem e conspiração”.

Van Aucken especula que a única condição que o Equador coloca para entregar Assange é que este não seja executado, e agrega que os protestos da Espanha pelo fato do WikiLeaks ter criticado Madrid pela prisão do ex-presidente catalão Carles Puigdemont “levaram o governo de Moreno a cortar o acesso de Assange à Internet e evitar que receba ligações telefônicas ou visitantes, reduzindo-o a um estado de incomunicação, com menos direitos que um prisioneiro”.

Contudo, com a desculpa do Caso Assange, o WSWS generaliza e ataca não só Moreno como todos os governos “pseudo esquerdistas” da região, do Equador à Venezuela, passando por Bolívia, Brasil e Nicarágua, e convoca os trabalhadores latino-americanos a se unirem às filas dos trabalhadores de todo o mundo para defender Assange.

Assange e o Equador

Julian Assange perdeu uma a uma férrea defensora em junho passado, quando a até então chanceler equatoriana María Fernanda Espinosa deixou o posto para ocupar a presidência da Assembleia Geral da ONU. Espinosa tinha uma postura clara em defesa dos direitos humanos e do direito internacional, e uma relação política forte com o presidente Moreno.

Outro fator que incide negativamente é que, nesta conjuntura de negociação de um tratado de comercial com os Estados Unidos, o governo equatoriano poderia ser mais vulnerável às pressões de seu principal sócio comercial.

Se Moreno entregar Assange, as maiores críticas dentro do Equador virão provavelmente das organizações de direitos humanos, de jovens e de defensores do livre acesso à internet, além de alguns setores do que se chamava Aliança País, antes da fratura entre o morenismo e o correísmo. A oposição de direito e a imprensa hegemônica estão alinhados com a demanda estadunidense de “entregar Assange”, o que também é apoiado a nível internacional pelos grandes meios e agências.

Num comunicado oficial emitido em 22 de julho, a Chancelaria equatoriana afirmou que o país “só conversará e propiciará entendimentos sobre o asilo do senhor Assange, dentro dos parâmetros do direito internacional, com os advogados do interessado e com o governo britânico. Por enquanto, devido à complexidade do tema, não há uma solução a curto ou longo prazo”.

A investigadora Silvia Arana indica que entre os dez milhões de documentos revelados por Wikileaks se destacam os registros das guerras do Iraque e do Afeganistão, duas séries de vazamentos conformadas por centenas de milhares de informes militares estadunidenses, detalhando a morte indiscriminada de civis durante a invasão e ocupação desses países. Os documentos foram proporcionados pela denunciante Chelsea Manning – que foi presa e torturada por isso).

O mais impactante desses vazamentos é o vídeo “assassinato colateral”, que mostra o ataque aéreo de dois helicópteros Apache estadunidenses que termina com a morte de 12 civis iraquianos, além de dois empregados da agência informativa Reuters, em Bagdá, no dia 12 de julho de 2007.

O portal WikiLeaks também difundiu as provas reveladas pelo ex-agente de espionagem digital norte-americano Edward Snowden, que revelou a espionagem ilegal e massiva de cidadãos estadunidenses realizada pelo organismo onde trabalhava, a NSA (sigla em inglês da Agência Nacional de Segurança), além do caso de funcionamento fraudulento do Partido Democrata, cujo Comitê Nacional prejudicou Bernie Sanders em benefício de Hillary Clinton nas primárias presidenciais de 2016.

Ao anunciar a decisão de outorgar asilo a Assange, o então chanceler do Equador, Ricardo Patiño, declarou que a represália de Washington pelas exposições de Assange “poderia colocar em perigo sua segurança, integridade e inclusive sua vida”, e que se ele fosse extraditado aos Estados Unidos, não teria direito a um processo justo. “Não é nada improvável a ideia de que ele tenha que enfrentar um tratamento cruel e degradante, podendo até ser condenado a prisão perpétua ou à pena capital”.

Kintto Lucas, que era vice-chanceler do Equador naquele então, revelou que em 2010, o encarregado de negócios dos Estados Unidos no Equador alertou a chancelaria sobre os vazamentos do WikiLeaks, mas pesar de que “mostrava preocupação, nunca desmentiu a veracidade dos cabos, disse somente que não os aceitaria como verdadeiros, e que o Departamento de Estado ainda não sabia bem quais eram os cabos vazados. Entretanto, já estavam se comunicando com os países que poderiam estar mencionados”.

O contato de altos funcionários equatorianos com Assange garantiu que o WikiLeaks publicasse todos os cabos sobre o Equador na web, e começasse um contato direto com ele. Segundo Lucas, ao dar o asilo ao ativista, foram cometidos vários erros por parte da chancelaria, e Assange permaneceu na sede da Embaixada em Londres por um tempo indeterminado. Se a chancelaria tivesse atuado corretamente nas negociações com o governo britânico, talvez conseguiria um salvo-conduto para trazê-lo ao país. Utilizar como carta forte a possibilidade de difundir o asilo em meio às Olimpíadas de Londres (ocorrida naquele mesmo ano de 2012 em que Assange chegou à Embaixada), significaria que o Reino Unido poderia ceder para não manchar a imagem dos Jogos.

“Mas independente do fato concreto do asilo e dos erros cometidos ao lidar com essa situação, a questão é que falta ao governo equatoriano entender a importância estratégica da informação contida nos cabos, o sentido comunicacional do fenômeno e o significado político a nível mundial”, analisa Lucas.

Quase seis anos mais tarde, na véspera da viagem do vice-presidente Mike Pence ao Equador, dez senadores do Partido Democrata, liderados por Robert Menéndez (membro do Comitê de Relações Exteriores do Senado), solicitaram publicamente ao governo que pressione Moreno para que o Equador retire o asilo a Julian Assange.

As intenções dos Estados Unidos são bem explícitas. O ex-diretor da CIA e atual Secretário de Estado Mike Pompeo declarou o WikiLeaks como um “serviço de inteligência hostil, não estatal e instigado por países como a Rússia”, enquanto o promotor-geral Jeff Sessions assegura que “capturar Assange é uma prioridade”.

Temendo ser extraditado aos Estados Unidos, onde seria processado, ou à Suécia, onde é solicitado por uma suposta agressão sexual, Assange pediu asilo político ao Equador, status que foi concedido pelo governo de Rafael Correa, – invocando o Estatuto dos Refugiados, de 1951 – e que, hoje, o governo de Lenín Moreno ameaça cancelar.

“Jamais estive de acordo com a atividade realizada pelo senhor Assange, nunca estive de acordo com as intervenções às mensagens privadas das pessoas para obter informação, por mais valiosas que sejam, para revelar certos atos indesejáveis dos governos ou das pessoas”, manifestou Moreno.

Matar o mensageiro

Em 2010, Assange divulgou informação sobre crimes de guerra cometidos pelo governo estadunidense, e documentos secretos que revelam práticas ilegais – assassinatos, torturas e espionagem – e de intromissão em assuntos internos de outros países.

John Pilger, jornalista de origem australiana e renome internacional, disse que a perseguição a Julian Assange tem que acabar, ou terminará em tragédia e instou o governo australiano e o primeiro-ministro Malcolm Turnbull a aproveitar a oportunidade histórica de decidir qual será o desfecho. “Podem permanecer em silêncio, algo que a história não perdoará, ou podem atuar em prol da justiça e da humanidade, e trazer este destacado cidadão australiano a casa”, afirmou.

O governo australiano tem claras obrigações diplomáticas e morais para proteger os seus cidadãos no exterior diante de situações de injustiça flagrante, que neste caso seria o atropelo à Justiça e o perigo extremo que lhe espera se sai da Embaixada equatoriana em Londres sem proteção. Pilger recordou a tortura sofrida por Chelsea Manning, comprovada por um relatório oficial das Nações Unidas, como mostra do que poderia acontecer com Assange se os Estados Unidos conseguirem uma ordem de extradição.

Em 8 de março de 2008, um documento ultrassecreto do setor de Análises de Contra Inteligência Cibernética do Departamento de Defesa estadunidense, expôs um plano para destruir tanto o portal WikiLeaks como Assange, onde dizia que era importante destruir o “sentimento de confiança” que é o “centro de gravidade” do WikiLeaks, e propôs um plano de ameaças de “exposição e perseguição penal” (o chamado lawfare) e um ataque implacável à sua reputação.

O objetivo era silenciar e criminalizar o WikiLeaks e seus editores. Era como se planificassem uma guerra a um único ser humano e ao próprio princípio da liberdade de expressão. “Sua principal arma seria a difamação pessoal. Suas tropas de choque se recrutariam na imprensa, precisamente entre aqueles que supostamente devem esclarecer os acontecimentos e nos dizer a verdade”, comenta Pilger.

Em outubro de 2017, a jornalista da Australian Broadcasting Corporation, Sarah Ferguson, entrevistou Hillary Clinton, a quem lisonjeou como “ícone da sua geração”, a mesma mulher que ameaço “destruir por completo” o Irã, e que, como Secretaria de Estado, em 2011, foi uma das instigadoras da invasão e destruição da Líbia, que levou à morte de 40 mil vidas. Além de ser continuadora da política de ocupação e agressão do Iraque, que ação que também se baseou em mentiras.

Clinton difamou Assange, sem oferecer prova alguma – dentro do seu estilo imperial – para afirmar que era “muito claramente uma ferramenta da inteligência russa” e “um oportunista niilista que está a serviço de um ditador”. Durante a entrevista, a produtora executiva de Ferguson, Sally Neighbour, fez um retuíte malicioso: “Assange é a puta de Putin. Todos sabemos!”.

A agressão de Clinton tinha uma razão: WikiLeaks publicou mensagens eletrônicas vazadas que revelam que a fundação que Hillary Clinton compartilha com seu esposo recebeu milhões de dólares da Arábia Saudita e do Qatar, os principais patrocinadores dos jihadistas do Estado Islâmico e do terrorismo em todo o Oriente Médio.

O ex-editor do The Guardian, Alan Rusbridger, classificou as revelações do WikiLeaks, que seu periódico publicou em 2010, como “uma das melhores primícias jornalísticas dos últimos 30 anos”. Mas os prêmios do gênero o ignoraram, como se Julian Assange não existisse. As revelações do WikiLeaks se tornaram parte do plano de marketing do The Guardian para aumentar o preço de cobertura do periódico. Ganharam muito dinheiro, enquanto o WikiLeaks e Assange lutavam para sobreviver.

Um libro lançado pelo jornal, altamente promovido no Reino Unido e no mundo, culminou em um negócio para produzir um filme de Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e David Leigh, difamaram gratuitamente a Assange como uma “personalidade conturbada e insensível”. Também revelaram a senha secreta, desenhada para proteger um arquivo digital que contém os cabos da embaixada dos Estados Unidos, que Assange havia confiado ao Guardian.

Logo, o New York Times publicou um extenso ensaio contra Assange, com a assinatura de Jo Becker (chefe de grupo) – com o título “Como a Rússia se beneficia com frequência dos segredos do Ocidente revelados por Julian Assange” – cujo propósito era difundir a ideia de um provável vínculo seu com os serviços de inteligência russos, “o que poderia ser a razão pela qual os interesses do WikiLeaks e do Kremlin encaixam tão perfeitamente”.

Os autores afirmam que Assange, no reduzido espaço em que vive na Embaixada equatoriana em Londres, trabalha para vender uma visão dos Estados Unidos como uma nação que dispõe de poder imperial para reconhecer a lealdade das nações aos princípios dos direitos humanos, mesmo quando isso não seja verdadeiro.

O portal WikiLeaks não tem notícias de que o governo dos Estados Unidos haja afirmado em algum momento que as mensagens hackeadas do Comitê Nacional Democrata foram obtidos pela inteligência russa. Aliás, Washington jamais acusou publicamente o governo russo de estar por trás do fato, embora se utilize, por parte da imprensa hegemônica, o argumento de que muitos especialistas cibernéticos estadunidenses asseguram haver um “alto grado de certeza” de que o governo russo estava por trás do roubo das mensagens eletrônicas.

Assange nunca foi acusado de um crime. O episódio sueco (o caso de estupro pelo qual é acusado) foi falso, uma farsa para incriminá-lo. As ativistas Katrin Axelsson e Lisa Longstaff, da organização Women Against Rape (“Mulheres contra o Estupro”), escreveram a respeito: “as acusações (contra Assange) são uma cortina de fumaça com a qual vários governos estão tentando de reprimir o WikiLeaks por ter revelado audazmente ao público sua planificação secreta de guerras e ocupações, cujas sequelas são estupros, assassinatos e destruição”.

Esta verdade se perdeu, ou foi enterrada em meio à caçada midiática, que incluiu vozes que se descreviam como “de esquerda” e “feministas”, que ignoraram a evidência de perigo extremo se Assange fosse extraditado aos Estados Unidos.

De acordo con um documento publicado por Edward Snowden, Assange está numa “lista de objetivos de perseguição”. Uma nota oficial vazada diz que “Assange será uma bonita noiva na prisão, que o terrorista se foda. Comerá comida para gatos para sempre”.

Há sete anos, a elite belicista estadunidense tentou fabricar um crime pelo qual Assange poderia ser julgado, mas a Constituição dos Estados Unidos protege os editores, jornalistas e denunciantes. Seu crime foi ter quebrado o silêncio.

Em suas revelações de guerras fraudulentas (Afeganistão e Iraque, principalmente) e outras mentiras descaradas dos governos, WikiLeaks permitiu vislumbrar como se desenvolve o jogo imperial no Século XXI. É por isso que Assange corre perigo de morte.

Eloy Osvaldo Proaño é analista político equatoriano, investigador do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

www.estrategia.la

 

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