Brasil nas relações internacionais: a força do argumento e o argumento da força. Por José Alvaro Cardoso.

Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil

Por José Alvaro Cardoso, em Desacato.info. 

O presidente Lula, em entrevista coletiva à imprensa em Madri, no último dia 26, observou que a China tende a ser nos próximos anos a maior economia do mundo, superando a economia dos Estados Unidos.  Lula destacou ainda que os resultados econômicos da China foram obtidos sem o país provocar guerras no mundo, o que, para ele, significa uma demonstração de que somente com paz é possível aproveitar a riqueza produzida pelo povo para poder gerar emprego e bem-estar social. Do alto de sua conhecida influência política – e de forma pensada – o presidente vem assumindo posições e fazendo afirmações que entram em franca colisão com os interesses do imperialismo, especialmente com do império americano. 

Na posse da ex-presidente Dilma Roussef, da presidência do Banco dos Brics (em Xangai, no dia 13 de abril), Lula declarou que é preciso escapar da “ditadura do dólar”, que os países não podem ficar à mercê dos bancos internacionais, que asfixiam as economias nacionais. Declaração extremamente forte, por si mesma, e que vem sendo repetida nos eventos públicos em geral, no país ou em solo estrangeiro. Como se sabe, a supremacia do dólar ao nível mundial, para as principais transações econômicas, é vital para a própria dominação imperialista no mundo. Esta condição financeira e geopolítica dos EUA fornece uma vantagem econômica ao país, de caráter decisivo. A posição do governo brasileiro sobre o assunto, além do mais, tende a influenciar outros países, tanto na América Latina, quanto em outras regiões do mundo, o que explica a reação do governo americano em relação às declarações de Lula. 

As falas do presidente não são vazias de conteúdo: pelo se tem noticiado, nas últimas semanas os governos do Brasil e da China avançaram na negociação para que o comércio e os investimentos entre ambos sejam feitos, utilizando diretamente o real e o yuan (RMB). Essa medida, que deverá ser adotada gradativamente, excluiria o dólar americano como moeda de referência nas transações comerciais entre China e Brasil. Posteriormente às declarações feitas em Xangai, Lula fez uma defesa categórica da unidade territorial chinesa, ou seja, assinalando que Taiwan é território chinês.  Afirmou isso justamente em um momento em que a crise entre o imperialismo e a China cresceu muito, em torno desse tema. Um dado diplomático que deve ser levado em conta: apenas 12 países, entre os 193 existentes no mundo, reconhecem Taiwan como país independente. Como é amplamente conhecido, os EUA têm utilizado as complexas relações da China com Taiwan para jogar este país contra o primeiro, fomentando discórdia e visando promover uma “guerra por procuração”. 

No geral, as declarações do presidente brasileiro sobre política internacional entram em colisão com a política norte-americana, especialmente nos temas mais delicados como guerra na Ucrânia (Lula defende a paz, que absolutamente não interessa aos EUA), China, Taiwan etc.  As declarações feitas na China em relação em relação ao Brics, hegemonia do dólar, à própria China e ao mundo, tiveram uma enorme repercussão na imprensa do Brasil e do mundo. Abundaram matérias e editoriais, criticando o governo por “se meter a criar um clube da paz” e “ignorar a hegemonia do dólar”.  A posição desses setores em geral foi a de menosprezar a iniciativa, aproveitando a deixa para caracterizar o Brasil, como um país “sem relevância”, “subalterno”, sem influência nem mesmo na América do Sul. Porém, o fato é que a é que a reação desmedida desses segmentos revela exatamente o contrário, ou seja, a importância das manifestações anti-imperialistas do primeiro mandatário do Brasil. 

É difícil ignorar as manifestações do governo brasileiro, sobre temas tão cruciais, pela própria importância do país. O Brasil é um dos mais relevantes países do Brics, bloco econômico estratégico, e que está em franco processo de expansão, com a negociação de várias adesões de países, em todos os continentes. Sem risco de ser irrelevante, o Brasil é o grande mercado consumidor da América Latina e gerador de uma imensa variedade de produtos, sejam industriais ou agrícolas (é o terceiro produtor agrícola do mundo e primeiro em proteína animal). O esforço enérgico que o governo Lula está fazendo, de firmar uma política soberana e independente para o Brasil, é um fato histórico muito relevante nesse lado do mundo. Talvez o maior entrave do desenvolvimento do Brasil esteja na postura política, ou seja, na forma como o país se relaciona, geopolítica e economicamente, com os países imperialistas. 

Essa redefinição da postura internacional do governo, terá que andar em paralelo com ações concretas essenciais: reconstrução das ferramentas de política econômica (por exemplo, o novo marco fiscal), tentativa de recuperar estatais entregues na bacia das almas, anulação de processos de privatização totalmente ilegais (como no caso escandaloso da Eletrobrás); ampliação do mercado consumidor interno;, redefinição da regulamentação do trabalho (desmontada ainda em 2016 por Michel Temer); valorização do Brics, todas ações fundamentais para retomada do crescimento do país. 

O governo Lula – que não tem o apoio de nenhum setor importante do capital – está procurando progredir em um tabuleiro extremamente complicado, em um quadro de extrema polarização política, e economia semidestruída pelos golpistas de 2016. Essa aproximação com a China abre possibilidades imediatas e de prazo mais longo. Pode, por exemplo, facilitar que o Brasil retome o crescimento econômico e melhore a vida de amplos setores da população, que sofreram um processo drástico de empobrecimento nos últimos anos. Os números básicos do Bolsa Família são autoexplicativos: 50 milhões de brasileiros, quase um quarto da população brasileira, dependem diretamente do Estado brasileiro para conseguir se alimentar minimamente. Ao mesmo tempo em que cerca de uma minoria ínfima de rentistas se apropria de quase um 1 trilhão de reais todo ano, em função da trapaça da dívida pública. 

Conforme já verificamos em outros períodos da história, inclusive recente, uma economia brasileira mais prospera tende a irradiar os benefícios do crescimento para os vizinhos sul-americanos. Para o Brasil, obviamente, não seria interessante um crescimento da economia nacional, descolado de um contexto também de crescimento, pelo menos sul-americano. Interessa ao Brasil um crescimento integrado com a América do Sul (quiçá com a América Latina) do ponto de vista econômico, político e social. Argentina, por exemplo, é o 3º maior destino das exportações brasileiras e ocupa a 3ª posição dentre os países dos quais o Brasil mais importa bens e serviços.

Esse é exatamente o “perigo” que os norte-americanos temem nessa aproximação entre o Brasil e os países dos Brics. É tudo que não querem. Para o império é fundamental manter o Brasil sob seu domínio, porque isso representa um maior acesso a recursos naturais em geral, metais imprescindíveis, imensas reservas de água, biodiversidade da Amazônia, petróleo etc. 

A postura que tem assumido o governo brasileiro para as questões internacionais é muito complicada para a dominação norte-americana no subcontinente e no mundo. A posição do Brasil pode, por exemplo, inclinar para uma posição mais independente, toda a América Latina, porque o Brasil é o país mais influente da região, pelo tamanho de sua economia, população e território. 

A China não é um país imperialista, ela não tem condições de fazer, por exemplo, o que os EUA fazem no mundo todo, isto é, dar golpes de Estado, invadir, destruir economias. A postura da China na relação com outros países, é a de benefício bilateral. O país defende seus interesses econômicos e políticos com muita determinação, mas sem uma ação de tipo predatória, como fazem as nações imperialistas.  Neste momento, mesmo que desejasse, a China não teria nem força militar para uma postura desse tipo.    

As empresas chinesas são as grandes concorrentes das companhias norte-americanas no mundo todo. Por isso os EUA têm realizado uma campanha permanente para tirar mercados mundiais das empresas chinesas, usando os argumentos mais variados. Por exemplo, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, em 2020. moveu uma ação judicial acusando a empresa chinesa Huawei, que trabalha com rede móvel de quinta geração (5G) de roubar segredos comerciais de concorrentes, reduzindo gastos com pesquisa e desenvolvimento. Pode ser verdade, porque espionagem industrial é comum entre grandes companhias. Mas o curioso é que os EUA acusem uma empresa de outro país de algo que, sabidamente, praticam em larguíssima escala, desde sempre.

Em 2013, a então presidenta Dilma Roussef cancelou uma visita aos EUA por conta da descoberta de espionagem norte americana no Brasil, naquele ano. Segundo dados divulgados por Eduard Snowden, a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) dos EUA monitorou conversas da própria presidenta da República, além de dados super sigilosos da Petrobrás. Estavam em plena ação do golpe de Estado. 

O domínio imperialista na economia mundial não é uma questão de competência, mas essencialmente um fenômeno ligado ao exercício da força: são o dinheiro e as ogivas nucleares que, basicamente, garantem a “competividade” das empresas transnacionais norte-americanas e dos demais países imperialistas. Esse fato geopolítico, explica por que o orçamento militar dos EUA para 2023, de US$ 858 bilhões, é superior à soma dos dez orçamentos dos países seguintes no ranking. O Brasil não tem saída, enquanto continuar sob o jugo político e econômico dos EUA.  A aproximação econômica com a China e com os Brics é estratégica sob todos os pontos de vista. 


José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

 

 


Obs.: a opinião do autor não necessariamente representa a opinião de Desacato.info. 

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