Por Slavoj Žižek.
Tradução: Artur Renzo.
Há tempos esperávamos por um filme como Pantera Negra, mas Pantera Negra não parece ser o filme pelo qual esperávamos… ou será que é?
O primeiro sinal de alerta que indica que estamos em terreno ambíguo é o fato de que o filme foi recebido com entusiasmo praticamente de ponta a ponta no espectro político: dos partidários da emancipação negra que viram nele uma importante afirmação hollywoodiana de representatividade e valores de empoderamento negro, passando por liberais de esquerda mais modestos que simpatizaram com a resolução razoável do enredo (educação e ajuda, ao invés de luta), até chegar a adeptos da nova direita alternativa do “alt-right” que logo reconheceram na afirmação da identidade e modo de vida negros outra versão do slogan “America first” [“Os Estados Unidos em primeiro lugar”] entoado por Trump (aliás, não é à toa que Robert Mugabe, antes de ter perdido o poder, também falou algumas palavras elogiosas a respeito do atual presidente dos EUA). Quando todos os lados se reconhecem no mesmo produto, pode se ter certeza de que o produto em questão está operando como ideologia em seu estado mais puro, isto é, como um recipiente vazio contendo elementos antagônicos.
O próprio ponto de partida da trama se instala em uma ambivalência. Parafraseando a boa a velha Wikipédia, recuperemos a premissa do enredo: muitos séculos atrás, cinco tribos africanas guerreiam disputando um meteorito contendo vibranium. Um guerreiro ingere uma “erva em forma de coração” impregnada pelo metal raro e adquire poderes sobre-humanos, tornando-se o primeiro “pantera negra”. Com isso, ele é capaz de unir todas as tribos (exceto a Jabari), para formar o grande reino de Wakanda. Os wakandianos usam o vibranium para desenvolver tecnologia avançada e isolarem-se do mundo, assumindo uma fachada de nação subdesenvolvida de Terceiro Mundo. Pois bem, a história recente nos ensina que ser abençoado por algum precioso recurso natural é na verdade uma maldição disfarçada – pense na situação atual do Congo de hoje, que se encontra nesse estado precisamente por conta da maneira pela qual o país é alvo de uma exploração implacável visando a incrível riqueza de seus recursos naturais.
+ Pantera Negra, uma Breve Análise Sociológica
À medida que a trama do filme começa a se desenvolver, a narrativa logo se desloca para Oakland, que foi um importante reduto do verdadeiro Partido dos Panteras Negras, o movimento radical de libertação negra surgido no final dos anos 1960 que foi impiedosamente reprimido pelo FBI (integrantes foram brutalmente assassinados etc.). No entanto, seguindo a trilha do quadrinho original da Marvel, o filme – que jamais menciona diretamente os verdadeiros Panteras Negras – em um simples mas nem por isso menos magistral toque de manejo ideológico na prática se apropria do nome original de forma a fazer com que ele reverbere menos a histórica organização militante radical e mais o rei-super-herói de um poderoso reino africano fictício.
Mais precisamente, há dois “panteras negras” no filme – o Rei T’Challa e seu primo Erik Killmonger (N’Jadaka) – e cada um deles representa uma visão política diferente. Erik passou sua juventude justamente em Oakland e depois foi agente do comando especial secreto do exército estadunidense – seu universo é o da pobreza, da violência de rua e da brutalidade militar. Já T’Challa foi criado na opulência isolada da corte real de Wakanda. Erik advoga uma solidariedade global militante e defende que Wakanda deveria colocar sua riqueza, seu conhecimento e seu poder à disposição dos oprimidos de todo o mundo para que eles possam derrubar a ordem mundial existente. T’Challa, ao longo do arco narrativo do filme, lentamente passa da uma postura isolacionista tradicional (do tipo “Wakanda em primeiro lugar!”) para um globalismo gradual e pacífico, que operaria no interior das coordenadas da ordem mundial existente e suas instituições, disseminando educação e auxílio tecnológico, e ao mesmo tempo preservando a cultura e o modo de vida singulares de Wakanda.
É por isso que T’Challa é mais um herói indeciso, dividido entre dois caminhos diferentes de ação, do que o habitual super-herói totalmente ativo (diferente de seu oponente, Killimonger, que está sempre pronto para agir e sempre sabe o que fazer). E o fato de que um agente da CIA acaba desempenhando um papel chave na concretização da vitória final de T’Challa será muito revelador… Enquanto muitos críticos elogiaram o papel ativo das mulheres na corte de Wakanda, além da variedade e o estatuto de suas diferentes posições (defesa, sabedoria de idade, ciência e tecnologia…), na economia interna do filme, essa afirmação da feminilidade permanece estritamente subordinada à dominação masculina. Por isso, até mesmo com a abertura de Wakanda para o mundo, tudo que mudaria é que uma dose de sabedoria tradicional trabalhará para conter os excessos do capitalismo selvagem e desenfreado. Com T’Challa conduzindo o leme, os poderosos de hoje podem continuar a dormir em paz…
Um dos sinais de que há algo errado nesse quadro é o estranho papel dos dois personagens brancos: o sul-africano Ulysses Klaue, “do mal”, e o agente da CIA Everett Ross, “do bem”. Klaue não se encaixa muito bem no papel do vilão ao qual é designado – ele é fraco e cômico demais. Já o agente Ross constitui uma figura muito mais enigmática – em certo sentido é ele o sintoma do filme. Trata-se de um agente da CIA (e isso significa que seus superiores, e portanto o governo dos EUA, sabem a verdade sobre Wakanda) que participa dos eventos a uma distância irônica, estranhamente não-envolvido, como se estivesse participando de uma espécie de espetáculo… Por que é que Shuri o escala para pilotar o avião que irá derrubar os aviões portando as armas para os agentes de Killmonger em todo o mundo (o papel comumente reservado para os negros “do bem” nos tradicionais filmes de ficção científica de Armageddon)? Não seria afinal porque ele representa o sistema global existente no universo do filme, representando ao mesmo tempo o “nosso” lugar (a maioria dos telespectadores brancos do filme), como que nos dizendo: “Pode curtir tranquilamente essa fantasia de supremacia negra, nenhum de nós está realmente ameaçado por esse universo alternativo!”
Com isso, sobra Killmonger como o único verdadeiro vilão. Temos então como que um revolucionário pantera negra dos anos 1960 contra o nobre e mítico pantera negra de nosso universo de super-heróis de quadrinhos… O fato de que T’Challa se abre a uma “boa” globalização mas ao mesmo tempo recebe o apoio de sua expressão repressiva, a CIA, revela que não há tensão real entre os dois: o “retorno às raízes” combina perfeitamente com o capitalismo global (que só pode ser verdadeiramente sobrepujado através de um projeto global diferente). Por isso, devemos ter um pé atrás antes de nos deixar fascinar diante do belo espetáculo da capital de Wakanda como cidade moderna alternativa onde a tecnologia está a serviço das necessidades humanas, onde a tradição e a ultramodernidade se fundem perfeitamente.
O que esse belo espetáculo oblitera é o insight que Malcolm X seguiu quando adotou a letra “X” no lugar de seu sobrenome. O gesto de abraçar o “X” como nome de família – recusando assim o “nome de escravo” e assinalando que os traficantes que escravizaram e transportaram africanos de sua terra natal brutalmente os arrancaram de suas famílias, de suas raízes étnicas, de sua cultura e de todo seu mundo da vida –, esse gesto trazia um intuito que não era o de simplesmente mobilizar os negros a lutarem pelo retorno a uma raiz africana primordial, mas precisamente de abraçar a recusa e a abertura proporcionadas pelo “X”: uma nova e desconhecida (ausência de) identidade engendrada pelo próprio processo da escravidão que fez com que as raízes africanas fossem para sempre perdidas. A ideia é que esse “X” que arranca os negros de sua tradição particular fornece uma plataforma singular a partir da qual seria possível redefinir e (reinventar) a si mesmo, de formar livremente uma nova identidade, muito mais universal do que a pretensa falsa universalidade professada pelos brancos. Como se sabe, Malcolm X encontrou essa nova identidade no universalismo do Islã. Nesse sentido, o filme parece passar ao largo dessa preciosa lição de Malcolm X: para atingir uma verdadeira universalidade, um herói deve primeiro passar pela experiência de perder suas raízes.
Visto desse modo, o problema nos aparece em maior evidência, reforçando a insistência de Fredric Jameson do quão difícil é hoje imaginar um mundo verdadeiramente novo, um mundo que não apenas reflita, inverta ou suplemente a ordem mundial vigente. Nesse sentido, fica difícil imaginar o que levou um crítico a escrever que Frantz Fanon, o teórico franco-martiniquense da libertação negra através de rebelião violenta, “teria ficado orgulhoso” se assistisse ao filme.
No entanto, há sinais que perturbam essa leitura simples e mais óbvia de Pantera Negra, sinais que nos estimulam a fazer uma leitura do filme que se assemelha à maneira pela qual Leo Strauss leu as obras de Platão e Spinoza, bem como o clássico Paraíso Perdido, de John Milton. Embora se valesse de termos como “ensinamentos secretos”, Strauss não era nenhum gnóstico dedicado a levar a cabo uma “hermenêutica profunda”, ele não estava à procura de algum suposto Platão esotérico, como quem busca chegar a um saber oculto a ser decodificado a partir do texto público. Ao contrário, tudo está dado e dito, todas as teorias alternativas podem ser claramente apresentadas. Uma leitura straussinana cuidadosa apenas aponta os sinais que indicam que a evidente hierarquia de posições teóricas precisa ser invertida.
Por exemplo: o Livro Primeiro da República de Platão trata do diálogo polêmico entre Sócrates e Trasímaco, que violentamente discorda com o resultado da discussão travada entre Sócrates e Polemarco a respeito da justiça. Trasímaco alega “que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” e que “a injustiça, quando chega a um certo ponto, é mais potente, mais livre e mais despótica do que a justiça” (344c). Sócrates contra argumenta forçando-o a admitir que há um padrão de justiça para além da lei do mais forte. No entanto, uma leitura atenta deixa evidente qual é a verdadeira posição de Platão: no que diz respeito aos fatos, Trasímaco está correto, a justiça é a conveniência do mais forte – mas essa verdade deve ser mantida em segredo na medida que sua disseminação pública feriria e desmoralizaria a maioria de pessoas comuns cuja sensibilidade moral exige que o direito seja mais forte que o poder. O mesmo ocorre com o Paraíso Perdido, de Milton: embora ele siga as diretrizes oficiais da igreja ao condenar a rebelião de Satanás, as simpatias de Milton estão claramente com o diabo. Vale acrescentar que não importa se essa preferência pelo lado ou agente “do mal” é algo consciente ou não por parte do autor do texto, em ambos os casos, o resultado é o mesmo.
E o mesmo não vale também para o filme Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2008), a parte final da trilogia escrita e dirigida por Christopher Nolan? Embora Bane seja o vilão oficial, há indicações de que ele, muito mais do que o próprio Batman, é o autêntico herói do filme, distorcido como seu vilão: ele está pronto para se sacrificar por amor, disposto a arriscar tudo por aquilo que ele entende ser uma injustiça, e esse fato básico é eclipsado pela inclusão de traços superficiais e um tanto ridículos de maldade destrutiva no personagem.
Mas voltemos a Pantera Negra. Quais são os sinais que nos permitem reconhecer na figura de Killmonger o verdadeiro herói do filme? São muitos. Talvez o mais forte esteja na cena de sua morte, em que o gravemente ferido Erik opta por morrer ao invés de ser curado e sobreviver na falsa abundância de Wakanda – o forte impacto ético das últimas palavras de Killmonger imediatamente desmonta a ideia de que ele seria um simples vilão convencional. O que se segue é então um momento extraordinariamente caloroso: pouco antes de morrer, Killmonger senta-se na beira do precipício de uma montanha observando o lindo pôr do sol de Wakanda e seu primo T’Challa, que acaba de derrotá-lo, senta-se ao seu lado. Não há ódio aqui, apenas dois homens bons com visões políticas diferentes compartilhando seus últimos momentos juntos após o desfecho da batalha – uma cena inimaginável em um filme tradicional de ação que geralmente culmina na virulenta destruição do inimigo… Esses momentos finais, por si sós, lançam uma dúvida sobre a leitura mais imediata do filme e nos convidam a uma reflexão muito mais profunda.
Nota: Minha leitura se vale dos artigos “Black Panther as empty container”, de Duane Rouselle (Dingpolitik, 17/02/2018), “Black Panther Is Not the Movie We Deserve”, de Christopher Lebron (Boston Review, 17/02/2018), e de uma troca de e-mails com Todd McGowan.
* Artigo enviado pelo autor diretamente para sua coluna no Blog Da Boitempo.