Memórias da censura musical na América Latina

Por Elissandro Santana, para Desacato.info.

“Lembrar para não esquecer”, elemento motivador para a escrita do texto em baila. Dito isto, menciono que o artigo de hoje é uma retomada de uma análise que foi publicada na Revista Letrando em 2012, que, de antemão, humildemente, revelo que a refaria, pois minha visão política acerca de Cuba (país que também foi objeto de meu estudo) mudou bastante ao longo dos últimos anos. É importante destacar que este texto foi citado em trabalhos de mestrado no Brasil e na Europa (em Tesi di Laurea do Corso di Laurea Magistrale in Lingue e letterature europee, americane e postcoloniali na Università Ca’ Foscari Venezia, trabalho transformado em livro).

Acho importante retomar esta análise nesse momento no qual estamos perplexos em meio aos golpes políticos, jurídicos e midiáticos, pois em contextos como os que estamos vivendo é importante que lembremos de nossa triste história para que não caiamos nos vazios do esquecimento e, consequentemente, dos apagamentos dos fatos.

São tempos difíceis e a compreensão da ditadura e da censura através da arte musical na Argentina de 1969 a 1982 e em outros países latino-americanos pode servir de ponte para processos que vivemos no Brasil e que ainda poderemos viver, já que estamos em tempos de golpes.

Feita a justificativa para a reflexão em discussão, é importante começar a esclarecer que na Argentina, durante os anos 1969-1982, muitas letras foram tachadas como impróprias ou inadequadas e aqueles que as cantassem seriam penalizados arbitrariamente. Foram muitos os cantores retaliados por suas canções e/ou interpretações, mas não somente cantores locais foram censurados, como também cantores de outras nações.

Nos anos anteriores a 1976, mais precisamente entre os anos de 1966 e 1973, a Argentina foi palco de repressões de todo tipo. A este respeito, Luna (1974) discorre: a repressão policial, a prisão de dirigentes sindicais e estudantis, o fechamento de alguns órgãos de opinião (cuja reabertura, decretada posteriormente pela justiça, foi acatada pelo governo), as habituais tentativas moralizadoras, a proibição de exibir alguns filmes ou o veto ridículo que atingiu uma inofensiva ópera argentina, a apreensão de livros ou o confisco, na alfândega, de obras estrangeiras consideradas subversivas, iam definindo uma escalada da época das cavernas que só conseguia aumentar as tensões ou desprestigiar o governo.

Em Cantables cuyas letras se consideran no aptas para ser difundidas por los Servícios de Radiodifusión, um documento com sete folhas, todas enumeradas, com timbre da Presidencia de La Nación, Comite Federal de Radiodifusión, são listadas algumas canções consideradas impróprias e subversivas e que, portanto, não deveriam ser tocadas nas emissoras de rádios argentinas durante o apogeu e efervescência da ditadura naquele país. O motivo alegado no tal documento foi: No apto, horario protección al menor.

Esse documento dá uma ideia do que foi a ditadura ou ditaduras na América Latina. Assim como mostra que a censura esteve em voga naquele momento como ordem incontestável. Ele é prova cabal de que durante os períodos de ditadura no Continente foi difícil escapar ao olhar dos donos do poder.

Aparecem na lista tanto cantores argentinos, a exemplo da cultuada Maria Elena Walsh, por causa de sua música Gilito del Barrio Norte, como estrangeiros, a exemplo de brasileiros, como Roberto Carlos, Erasmo, e cantores de língua inglesa, como o Grupo Queen.

 

Tudo aquilo que fosse ameaça à ordem estabelecida deveria ser banido, contido, sufocado e com a música não foi diferente. Dessa forma, um dos modos de combate, tido como eficiente, fora a proibição de que certas músicas, consideradas subversivas, fossem tocadas nos meios de comunicação da época.

O documento citado representa o poder do governo em relação aos meios de comunicação e produção musical. Ele atesta que havia um controle em relação ao que podia ou não ser ouvido pelo povo. Assim, várias manobras foram feitas para que os argentinos não tivessem acesso a qualquer tipo de mensagem que os ajudasse a se libertar.

Uma das canções proibidas data de 10 de março de 1977 e tem como título El progreso. É cantada por Roberto e Erasmo e, analisando-se a letra, parece que o tema não tem nada que ver com a ditadura. No entanto, há trechos que soam como metáforas contra aquele sistema de opressão e isso ficou muito claro para o governo argentino. Dessa forma, o governo proibiu-a, por ver em seu texto uma afronta à sua empreitada de controle.

Uma das partes em que fica notória essa noção de posição contrária ao sistema está em: Yo quisiera decir tantas cosas, que pudieran hacerme sentirme bien conmigo. Em outro fragmento da canção, Ballenas desapareciendo e peces desapareciendo, dentre as mensagens implícitas, pode-se dizer que aparece a do povo oprimido indo ao exílio, sumindo, desaparecendo. A verdade é que tudo que pudesse levar as pessoas à razão, à reflexão, não era bem visto, isto é, bem recebido pelo governo.

No Chile, pode ser citado o caso de Victor Jara que, durante o golpe do general Pinochet contra o presidente Allende, em 1973, sofreu duras penas. O documento arquivo da ditadura, divulgado  pelo  COMFER,  traz  uma  letra  desse  artista  que  foi  repudiada também  pelo  governo argentino: Te recuerdo Amanda.

 

No Brasil, após alguns períodos sombrios, começou-se uma democratização, como descreve Aranha (1998): Depois dos sombrios anos da ditadura militar, iniciada pelo golpe de 1964, o Brasil começou a recuperar as liberdades perdidas: eleições livres, liberdade de imprensa sem a abominável censura, liberdade de pensamento, ressurgimento das associações representativas, como sindicatos, diretórios estudantis, possibilidade de fazer reivindicações e greves.

Os tempos de ditadura, contudo, ficaram registrados em músicas marcantes e cheias de metáforas, como a canção de Geraldo Vandré “Pra não dizer que não falei das flores”, ainda que essa não apareça na lista do Comfer. A letra é um convite à luta por uma vida melhor, por um país melhor, pela liberdade, entre outras conotações. É uma conclamação do povo a um novo olhar, ao inconformismo e isso não era bem visto por nenhum governo ditatorial. No fragmento “Ainda fazem da flor seu mais forte refrão”, há uma metáfora grandiosa: como que pode a flor ser o mais forte refrão? Flor pode ter características como beleza, suavidade e perfume, no entanto, força é algo que não lhe é inerente, sobretudo quando oposta aos “canhões”.

Referências para a construção do texto 

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1998.

ARGENTINA. Comité Federal de Radiodifusión. Cantables cuyas letras se consideran no aptas para ser difundidas por los servícios de radiodifusión. Disponível em: <http://www.comfer.gov.ar/web/blog/wp-content/uploads/2009/07/canciones-prohibidas1.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2010.

LUNA, Félix. Argentina: de Perón a Lanusse (1943-1973). Trad. de Glória Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

Imagem: http://susanamourab.tumblr.com/post/55023901671

[avatar user=”Elissandro Santana” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

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