Sequestro Orçamentário: a relação das forças armadas com os recursos públicos no Brasil

Exército gastou mais de R$ 60 bilhões em 2023 com pessoal da ativa, da reserva e reformados

Líder do governo no Senado demonstrou apoio a projeto para estabelecer gasto mínimo de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) com a área da Defesa – Ricardo Stuckert/PR

Por Jorge Oliveira Rodrigues

No dia 22 de novembro de 2023, reportagem da CNN dava conta de que o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, e o líder do governo no Senado, Jacques Wagner (PT-BA), teriam sinalizado apoio à proposta apresentada pelo senador Carlos Portinho (PL-RJ) que elevaria o orçamento da Defesa. Apresentada por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de número 55, a proposição tem por efeito direto a consagração, via texto constitucional, do mínimo de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) para a área da Defesa. Na prática, pelo menos 2% de toda a riqueza produzida no Brasil passaria para o controle das forças armadas.

Demanda antiga das forças armadas, o valor de 2% do PIB emula recomendações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o gasto em defesa de seus países membros. É importante dizer, todavia que não existe nenhum caráter essencialmente positivo no aumento, uma vez que, como veremos, a questão do orçamento da área não é de caráter quantitativo, mas qualitativo. Ademais, a PEC 55 é apoiada, majoritariamente, por membros da oposição ao governo Lula. O próprio titular da proposta, o senador Portinho, é do partido do ex-presidente Jair Bolsonaro. Assim, carecem justificativas – políticas ou técnicas – para o apoio de um ministro e do líder do governo Lula no Senado à proposta.

O aparente consenso em torno da PEC, todavia, reflete um problema profundo na realidade brasileira, longe de ter nascido ou estar restrito ao período atual. Falo aqui do sequestro orçamentário empregado pelas forças armadas, que na disputa orçamentária mantêm uma autonomia inexplicável para uma burocracia de Estado. À revelia de qualquer controle social ou até mesmo de escrutínio do Poder Legislativo, que se limita a outorgar as demandas das forças, o orçamento de defesa no Brasil carece de transparência e é órfão de controle social.

A configuração do orçamento como um eixo de autonomia das forças armadas fica evidente a partir de uma breve análise dos gastos militares. Em 2023, segundo reportagem da Folha de S. Paulo baseada em dados do Portal da Transparência, as forças gastaram R$ 32,4 bilhões com pagamento de pessoal da ativa de R$ 31,2 bilhões com o pessoal da reserva e reformado. O Exército, força de maior contingente, é o grande responsável por esse gasto.

No mesmo sentido, dados do Ministério da Defesa (MD) apontam que em 2022 cerca de 84,3% do orçamento da pasta foi destinado a pagamentos de despesa com pessoal, totalizando 101,6 bilhões de reais. Como justificativa, o ministério afirma que “pelas funções que exerce, é inerente à Defesa Nacional ter grande quantitativo de pessoal”. A afirmação, todavia, esbarra no crescente emprego de tecnologia na guerra. No âmbito cibernético, por exemplo, pouco sentido faz a estruturação de uma força intensiva em pessoal. Nesse sentido, é alarmante que em 2022 apenas 8,2% do orçamento do Ministério da Defesa tenha sido destinado a investimentos – rubrica que, em última instância, engloba não só a aquisição de novos sistemas de armas, mas investimentos em novas tecnologias para a Defesa Nacional. Os dados distanciam os militares brasileiros do padrão OTAN, tão alardeado para justificar o aumento do orçamento de defesa para 2% do PIB.

Mas o problema não se limita aos gastos militares no âmbito do MD. O sequestro orçamentário se expressa em diferentes dimensões, resultado e ao mesmo tempo elemento da histórica autonomia política das forças armadas brasileiras.

Pensemos, por exemplo, no emprego das forças armadas na segurança pública. Uma vez constituídas e formadas para a guerra, as forças armadas são ineptas para atuar na segurança pública, como evidenciado pelo assassinato brutal de Evaldo Rosa e de Luciano Macedo por militares do Exército em 2019. Seu emprego em operações de garantia de lei e ordem na segurança pública resulta, por um lado, no aprofundamento da militarização e emprego de respostas violentas a problema complexos, bem como no gasto robusto com um instrumento ineficaz. O exemplo mais gritante, nesse sentido, é a intervenção federal do Rio de Janeiro. Com um custo de R$1,2 bilhão aos cofres públicos, a operação não resolveu o problema estrutural da segurança pública no estado, como evidenciado pela crise atual.

Não obstante, a incursão dos militares em esferas de atuação alheias às suas funções precípuas é mais ampla. Durante sua gestão, Bolsonaro autorizou o emprego dos militares em operações de garantia da lei e da ordem voltada ao combate a delitos ambientais na Amazônia. Os resultados foram pífios, mas os valores vultuosos. Em 2019, foram gastos R$140 milhões em tais operações, valor que subiu para R$389 milhões em 2020, sem que o desmatamento da floresta fosse reduzido. Da mesma forma, as forças armadas se mostraram incapazes de garantir a segurança dos Yanomami, atuando, no mínimo, com complacência face a invasão por garimpeiros ilegais de áreas de atuação do Comando Militar da Amazônia. O resultado foi catastrófico, com pelo menos 692 crianças Yanomami mortas em 2019 e 2022. Em que pese os avanços no governo Lula, a situação ainda demanda atenção, com persistência de áreas de atuação de garimpeiros, da fome e da malária.

Estes são apenas exemplos da ineficiência do emprego das forças armadas em atividades alheias à Defesa Nacional. Distribuição de água, pintura de meio-fio, construção de estradas, formação de esportistas de alto rendimento, controle do tráfico aéreo. Tudo isso configura o mau uso deste instrumento de Estado cuja única função deveria ser a defesa do país contra ameaças externas. O que se vê, todavia, é o emprego – e preparo – das forças armadas para atuação interna, seja na perspectiva do inimigo interno ou ainda cumprindo funções de estruturas estatais – Funai, Ibama, Ministério do Desenvolvimento Social, polícia civil, Ministério do Meio Ambiente, etc. – já existentes e que, não raro, se veem desprovidas dos recursos necessários para levar a cabo seu trabalho.

O sequestro orçamentário, portanto, configura uma situação não apenas de ausência de controle político sobre os gastos militares, mas também a partir do fato de que, na disputa orçamentária, as forças armadas consolidaram sua prevalência face a outras instituições de Estado, não apenas mais aptas como que constituídas para áreas específicas – meio ambiente, segurança pública, assistência social – que se vem eivadas pela atuação das forças armadas.

O resultado é um Estado caduco, refém do militarismo que, dado o desvio de função de suas forças armadas, faz dele vulnerável a ameaças externas e, pela via do sequestro orçamentário, o impede de superar as variadas e complexas vulnerabilidades que enfrentamos enquanto sociedade, processo tão necessário para o pleno desenvolvimento social e econômico do país.

Jorge Oliveira Rodrigues é Pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e doutorando em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Edição: Matheus Alves de Almeida

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