Registros de estupro aumentam em 50% nos dias de Carnaval

Rio de Janeiro (RJ), 17/02/2023 – O Bloco das Carmelitas desfila nas ruas de Santa Teresa. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Schirlei Alves e Marcella Semente, para Gênero e Número.

Entender a ausência de consentimento como uma violência em atos de conotação sexual ainda é um problema no Brasil e os dados comprovam isso. O período do último Carnaval, que ocorreu oficialmente em 2020, pouco antes do isolamento provocado pela pandemia da Covid-19, registrou 50% mais notificações de ocorrências de estupro de mulheres por dia do que a média diária do ano.

Adesivos corporais com o “não é não” e leques de papelão com frases de alerta para o assédio sexual são alguns dos sinais dados pelas mulheres de que a roupa ou o fato de elas ingerirem algum tipo de entorpecente não dão passe livre aos seus corpos. Mas, apesar dos esforços das campanhas que percorrem os foliões, os registros de violência aumentam nesta época do ano.

Ainda que 2020 tenha sido afetado pelo isolamento social, o que pode ter reduzido o número de casos ao longo do ano, o período de Carnaval do ano anterior também foi marcado pelo aumento de estupros em relação ao resto do ano. Em 2019, os dias de folia tiveram 36% mais notificações do que a média diária do ano.

A análise foi feita pela Gênero e Número a partir dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Os números trazem os registros feitos em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS), motivados pelas violências.

Os registros do Sinan apontam ainda mais ocorrências cujo autor é desconhecido da vítima no período da folia do que nos outros dias do ano (48% no Carnaval de 2020 e 37% no restante do ano).

O sistema de saúde também compila notificações de assédio sexual, o que não configura, necessariamente, o mesmo assédio previsto em lei que tem a prerrogativa da hierarquia entre o agressor e a vítima (chefe e subordinada, por exemplo). Para entrarem no sistema de saúde, essas notificações, normalmente estão atreladas a outro tipo de violência, como agressão física.

A fundadora e presidente da ONG Me Too Brasil, Marina Ganzarolli, lembra que a Lei de Importunação Sexual, criada em 2018, veio para abranger uma lacuna deixada pelo crime de estupro previsto em lei. A configuração do estupro presume que o crime tenha sido cometido com violência ou grave ameaça. Já na classificação do crime de importunação, basta que o ato de cunho sexual tenha sido realizado sem o consentimento da vítima.

A nova lei, na avaliação da especialista em violência de gênero, possibilita que os casos sem emprego de força ou grave ameaça sejam de fato julgados, o que acabava não ocorrendo por conta do machismo estrutural presente nas forças de segurança e justiça.

“Para as questões de Carnaval, de street harassment, que é o assédio no espaço público, a lei de Importunação Sexual facilitou a compreensão da violência quando não há consentimento, tanto para a população quanto para os policiais e os agentes de justiça”, destacou.

Outro indicativo de que o aumento dos estupros nesta época do ano pode estar atrelado às festas de Carnaval é a porcentagem maior de ocorrências diárias em via pública (24% no Carnaval de 2020 e 19% no restante do ano).

Pensando nisso, instituições que atuam pelos direitos das mulheres organizam campanhas de conscientização durante o Carnaval. A Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos, ONG formada por advogadas e cientistas sociais feministas, articulou a campanha “Respeita as gurias na folia” em parceria com a Liga das Escolas de Samba, para tentar desnaturalizar a violência de gênero nas festas de Carnaval em Porto Alegre. Materiais educativos foram distribuídos nos eventos que ocorrem na rua com foco na proteção das mulheres e alerta aos homens, além de informações sobre como denunciar.

“A gente tem apelado para que os jovens desnaturalizem o assédio. A nossa sensibilização é para isso: intervenha, diga não, denuncie. Para que o seu grupo de amigos, os seus pares digam: não, você não pode fazer isso”, disse a diretora executiva da Themis, Márcia Soares.

Álcool é fator de risco, mas não justificativa

Os dados do Sinan indicam que 52% dos crimes de estupro que ocorreram nos dias de Carnaval, em 2020, foram cometidos por indivíduos alcoolizados. No restante do ano, essa proporção foi de 38%. Para Marina Ganzarolli, o álcool não pode ser aceito como uma justificativa para o cometimento de violência, ainda que ele seja um fator de risco.

“As mulheres quando ficam bêbadas não saem por aí estuprando os homens. Então, segue sendo uma questão de gênero, de desigualdade de poder. O que a bebida faz? Ela baixa os limites. O machismo, a ideia de autoridade, de cultura do estupro, aflora, mas já estava lá antes”, explicou Ganzarolli.

“Ele vai cometer a violência na oportunidade que tiver, mas quando estiver sob um fator de risco, ele tem mais chances de cometer essa violência”, completou.

As campanhas de conscientização para o Carnaval 2023 também apostam na redução de danos como medida para frear a violência. Dicas de cuidados ao usar álcool e entorpecentes, especialmente na combinação de substâncias, têm efeitos individuais, de saúde, e coletivos, quando se pensa nas questões comportamentais.

Em Recife, a Escola de Redução de Danos, por exemplo, está oferecendo atendimento aos foliões e distribuindo kits com preservativos, água, protetor solar, sedas e outros itens. “Festa boa mesmo só acontece em espaços livres de violência, racismo e machismo”, define o coletivo em seu site.

 

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