Qual o impacto do coronavírus na cultura em SC (e por que a crise já existia antes da pandemia)

Imagem: Protocolo Elefante, espetáculo do Cena 11 Grupo de Dança. Foto: Cristiano Prim

Por Carol Macário.

Muita gente espera que a arte resolva uma porção de questões durante a pandemia: que a música alegre o dia, que um livro explique a existência, um filme entretenha, uma live ocupe as horas com boas ideias e som ao vivo, uma pintura ou desenho alivie a tensão das notícias ruins. O fato é que o setor cultural foi o primeiro a ser impactado pela Covid-19, com os decretos de isolamento e cancelamento de eventos sociais. Provavelmente será o último a ser retomado e o prejuízo para os trabalhadores da área em Santa Catarina é milionário. Quem pagará a conta da internet para que as transmissões sigam melhorando os dias?

Pesquisa realizada ainda no final de março pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC) de Santa Catarina mostrou que 15 mil atividades culturais foram canceladas ou adiadas entre os meses de fevereiro e maio.  O valor que deixou / deixará de circular neste período, segundo os dados levantados, é de R$ 112.841.879,32 em todo o Estado. Um público estimado de 12 milhões de pessoas deixou de estar na plateia. E o mais alarmante: 75% dos agentes culturais dispunham de recursos para se manter por um mês no momento da realização da pesquisa (entre os dias 20 e 29 de março). O levantamento é inédito, visto que nem o Estado e nem a maioria dos municípios possui dados ou indicadores em relação à produção cultural de SC.

— Gestores ainda não acordaram para a necessidade de geração de indicadores para proposição de políticas públicas — alerta o produtor cultural Marcelo Seixas, conselheiro no CEC e também no Conselho Municipal de Políticas Culturais de Florianópolis.

Ainda em março, o CEC emitiu uma nota com sugestões ao Estado para manter o setor ativo durante a pandemia, como a abertura de um edital emergencial e a manutenção do planejamento da Fundação Catarinense de Cultura (FCC) para 2020, especialmente em relação aos editais de fomento, entre outras.

Em nota, a FCC informou que desde o início da crise está trabalhando na elaboração de editais e iniciativas voltadas para a cadeia produtiva e que ainda aguarda sinalização financeira da Secretaria da Fazenda.  Informou ainda que elaborou a minuta de lançamento de um programa para o credenciamento de artistas, profissionais e realizadores culturais para possível prestação de serviços de apresentações em transmissão em tempo real, além de disponibilização de conteúdos artísticos e/ou culturais no formato digital.

A FCC garantiu que os editais Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura e Prêmio Catarinense de Cinema, previamente aprovados para 2020, permanecem no calendário. Enumerou ainda iniciativas como programação virtual durante o período de isolamento social no Cinema do CIC — o Cineclube da Unisul tem sessões online, sábados e domingos, às 20h, desde o dia 13 de abril —, “produção de vídeos institucionais para acesso a conteúdos online e compartilhamento de iniciativas culturais de artistas catarinenses nas redes sociais da FCC”.

Já a Secretaria de Estado da Fazenda (SEF) informou, via assessoria de imprensa, que “está trabalhando na liberação dos segmentos econômicos, gradualmente. Sobre a retomada do setor cultural, a SEF, junto com os participantes do núcleo econômico, ainda estuda e discute as medidas que serão tomadas.” Informou ainda que “é necessário avaliar a queda de arrecadação para abril. Em março, o Estado registrou perda de R$ 200 milhões e, somente até dia 20 de abril, a perda foi superior a R$ 600 milhões.”

Estado de calamidade muito antes da pandemia

No dia 24 de abril o Cena 11, uma das mais respeitadas companhias de dança do Brasil, estrearia novo trabalho na Alemanha: Matéria Escura. A estreia na Europa e não na cidade natal, Florianópolis, de um grupo de fundamental importância para o Brasil pela pesquisa e desenvolvimento de práticas artísticas contemporâneas há 26 anos não seria novidade, já que as parcerias e fomento já vêm mais de fora de Santa Catarina por meio de parceiros como o Sesc São Paulo.

— A gente ainda tem o privilégio de estar numa coprodução internacional. Sem isso já estaríamos em condições de total extinção no Brasil — lamenta Alejandro Ajmed, diretor artístico do grupo.

Os artistas da companhia mantêm a rotina de encontros diários, agora virtuais, e têm trabalhado e buscado se encontrar nesse novo modo de operação, abrindo-se para possibilidades como  transformar a peça coreográfica Matéria Escura em vídeo.

— Artista no Brasil antes tinha apenas pão com margarina na geladeira. Agora jogaram a geladeira fora — ironiza Ahmed. — Já estávamos em estado de desautorização da existência das artes, como um projeto específico.

O fato é que o isolamento social jogou luz para a arte, justamente porque a subjetividade se faz necessária ao exercício do real em momentos de crise, nas palavras de Alejandro Ahmed. Mas quando se chama atenção para os/as artistas, aparece também a situação de precariedade a que esses profissionais estão submetidos.

— Isso é de muito tempo. O estado é calamitoso justamente porque somos informais. Existe informalidade ancestral na cultura. A gente trabalha com uma cadeia enorme de profissionais, da tecnologia aos marceneiros. E essa cadeia é exterminada quando não tem valor — diz o pesquisador.

Para Marcelo Seixas, produtor cultural e membro dos conselhos de cultura de SC e da Capital, é válido lembrar que atuação do Estado se dá sempre em qualquer setor produtivo — seja o comercial, industrial. A cultura é também um setor produtivo e que, como tal, precisa de atenção.

— É preciso investimento inicial para que a gente, como setor economicamente produtivo, possa se estruturar minimamente. Houve uma interrupção nesse processo, e já muito antes da pandemia. O próprio Estado não dá continuidade em suas políticas públicas — diz Seixas.

O PIB da cadeia produtiva em SC

De acordo com estudos realizados pela Firjan (Federação da Indústria do Rio de Janeiro), Santa Catarina ocupa a quarta posição no índice de participação estimada do PIB Criativo no PIB Estadual, com 2,5%, atrás de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. De todos os trabalhadores formais em Santa Catarina, 2,1% são criativos.

— Parte dessa cadeia está ligada a iniciativas avulsas, autônomas. Muitas pessoas entram nos programas de governo neste momento de crise, mas é só um mínimo de subsistência. Não é como uma empresa, que pode entrar numa linha de crédito — diz a produtora cultural Roselaine Barboza Vinhas, de Chapecó.

Ex-presidente do CEC, ela reforça a urgência do desafio, até porque a cultura é uma área que não tem calço:

— A indústria, o comercio, cada um tem a sua forma de se reabilitar. Mas acredito que a cultura vai ser a bola da vez quando tudo isso passar. Serão as grandes portas para nos reacomodar enquanto humanidade.

Hoje é Dia de Jazz Bebê: projeto realizado ao ar livre em Florianópolis. Foto Volo Filmes e Fotografia

No que diz respeito aos eventos culturais e ao ar livre – um movimento que começou na Capital com projetos como o Hoje é Dia de Jazz Bebê em parques e praças e ganhou força e público nos últimos anos,  produtores lidam com um novo cenário.

— No momento estamos olhando para as pessoas que estão à nossa volta, porque nos eventos que realizamos envolvemos muitas pessoas e  fornecedores que são contratadas por job. O trabalho que planejamos para realizar em 2020 seria parte executado agora no primeiro semestre e a não realização faz com que as ações não tenham visibilidade e, consequentemente, apoio — diz a produtora cultural Marina Tavares, do Studio de Ideias.

Eventos de arte e cultura são, na maioria, viabilizados com o apoio e patrocínio de empresas que acreditam no setor e o/ ou que utilizam os seus impostos para fomentar arte e cultura. Diante desse novo cenário, muitas empresas estão tendo dificuldades de se manter e seguir apoiando os projetos culturais.

— Acreditamos que tudo irá mudar. No momento não sabemos se de fato vamos conseguir executar algum evento que envolva um número significativo de pessoas. Os hábitos terão que mudar, as pessoas não serão mais as mesmas. A realização de um evento será diferente pois teremos cada vez mais que olhar para o outro e passar segurança para todos.

Para Marina, é notório que as pessoas em casa estão buscando um respiro, e que o setor de arte e cultura é ativado diariamente, apesar do distanciamento.

— Para que as atividades possam voltar, precisamos da conscientização para que todos possam voltar e estabelecer aos poucos suas atividades pós-pandemia, finaliza.

Florianópolis não tem dados conforme determina lei do Plano Municipal de Cultura

Na Capital, existem pelo menos 150 profissionais da cultura dependendo de cestas básicas para se alimentar, segundo cadastramento feito pelo Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis até o dia 21 de abril. Não há dados oficiais em relação a prejuízos ou mesmo em relação ao número de trabalhadores na área. Após os decretos para distanciamento social, em março, os 14 fóruns setoriais permanentes ligados à cultura fizeram tentativas de mapeamento por conta. Alguns com mais precisão, como a setorial do Circo, que identificou o perfil e os prejuízos: 40,4% dos artistas circenses da cidade, por exemplo, tiveram de 1 a 8 trabalhos cancelados, enquanto 59,7% de 8 a mais de 20 cancelamentos. Perda estimada em R$ 455.600.

A Revista Gulliver entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Florianópolis para saber se o município chegou a fazer um mapeamento para então definir uma estratégia de fortalecimento do setor. Em nota, a assessoria de imprensa informou que “os dados ainda estão sendo computados. Todos os esforços neste momento estão direcionados para a área da saúde. Entendemos que o prejuízo é muito significativo, pois afeta todos os segmentos que vão muito além da área cultural.”

O IDCult, ferramenta lançada em 2014 para ajudar na gestão de informações culturais, está desatualizado há três anos. Segundo a assessoria de imprensa da Prefeitura, em razão “de custos e por ser uma ferramenta com poucos recursos.” Um sistema de monitoramento das metas, ações e indicadores está na lei do Plano Municipal de Cultura, aprovado em 2015 (Lei nº 9.845, de 20 de julho de 2015). A Prefeitura não respondeu até o dia 22 de abril sobre estratégias no âmbito municipal para retomada do setor.  Informou apenas que o Edital de Apoio às Culturas 2020 foi prorrogado.

— A pandemia nada mais é do que ponta de um iceberg — avalia Adriana Rosa, Mestre em Gestão Cultural e representante da setorial de cultura popular de Florianópolis.

A presidente do Conselho Municipal de Política Cultural e Florianópolis, Cristina Villar de Souza, corrobora:

— O planejamento com o setor cultural é zero. Não mudou muita coisa. A perda foi o edital, que foi adiado — diz Cris.

O Edital de Apoio às Culturas, por exemplo, foi lançado pela primeira vez em 2012, no valor de R$ 1,3 milhão, e deveria ser realizado anualmente, conforme a lei 8.478 de 2010. Teve nova edição somente em 2018, com valor total de R$ 800 mil, e agora em 2020, com orçamento previsto em R$ 990 mil.

— É uma lei que tem que ser cumprida anualmente. Depois de 2018 deveria ter sido lançada em 2019 e, agora em 2020, foi adiado em razão da pandemia — conclui a presidente do Conselho.

Audiovisual pode ser estratégico

Todos os profissionais da cultura entendem que diante de uma pandemia é a saúde que está em jogo. Mas esperam que a visão seja ampliada e que os poderes públicos entendam que ações para fortalecimento de outros setores, como a cultura, não são concorrência e podem inclusive ser estratégicos.

— Muitas cidades estão fazendo editais, inclusive pedindo conteúdos voltados para informar sobre a pandemia. O audiovisual pode servir também para levar informação. É uma área que está subaproveitada — analisa a produtora audiovisual Carolina Borges de Andrade, Presidente do Funcine.

Um estudo feito pelo Funcine (Fundo Municipal de Cinema) em abril sobre os impactos da Covid-19 ao setor audiovisual apresenta, além de dados sobre prejuízos, sugestões de medidas emergenciais. Entre elas a remodelação do edital Armando Carreirão, principal mecanismo de fomento ao audiovisual em Florianópolis e que está parado há cinco anos.

O edital estava garantido pelos recursos aprovados na LOA (Lei Orçamentária Anual) para o lançamento dos editais referentes a 2019 e 2020 no valor total de R$ 2,6 milhões. Em março de 2019 foi anunciado pela Prefeitura no valor de R$ 1,1 milhão. Foi por fim remodelado para R$ 960 mil devido ao contingenciamento do orçamento municipal. Agora, em virtude da pandemia, a deflagração do edital não foi autorizada pelo Conselho Deliberativo do Município em 23 de março.

O estudo do Funcine inclusive recomenda remodelação do edital, com projetos de produção de menor duração, menor valor e em maior quantidade; projetos de produções que possam ser realizados em regime de quarentena, com a equipe colaborando a distância; que abordem as limitações trazidas pelo confinamento e / ou apresentem formas inovadoras de produzir conteúdos em períodos de confinamento; entre outras. Também propõe a criação de um canal de streaming para imediata liberação do seu acervo via plataforma digital e aquisição de novos acervos  por meio de edital específico.

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