Pró-reitora processa alunos que criticaram ‘intervenção’ em Instituto Federal

    Alunos do Instituto Federal de Santa Catarina também relatam intimidação por militares armados. O reitor 'pro tempore' nega intervenção

    ATO PACÍFICO NO IFSC TEVE PRESENÇA DE POLICIAIS MILITARES. FOTO: ARQUIVO PESSOAL

    Por Victor Ohana. 

    Estudantes do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) se dizem silenciados e intimidados pela administração pro tempore, nomeada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro sem seguir o resultado de eleição. Recentemente, três alunos foram processados e podem ser obrigados pela Justiça a pagar mais de 10 mil reais.

    O IFSC é uma das 17 instituições federais nas quais os reitores mais votados foram impedidos de tomar posse – e onde estudantes se mobilizam contra o que chamam de “intervenção”. Os protestos ocorrem desde que a reitoria do IFSC foi entregue ao 2º colocado na eleição de 2019, André Dala Possa, e não ao 1º, Maurício Gariba Júnior.

    A ação foi movida pela atual pró-reitora de Administração, Fabiana Besen Santos, em outubro deste ano. Segundo a professora, os alunos proferiram “palavras desrespeitosas de ameaças e em tom ofensivo”, durante uma reunião virtual do Conselho de Dirigentes, da qual estudantes participam eventualmente. Besen queixa-se de que um dos alunos citou expressões como “intervenção”, “interventores”, “gestão interventora”, “golpe”, “golpe antidemocrático”, “parafernalha” e “palhaçada”.

    “É possível verificar que o requerido nomeia gestores que fazem parte da alegada ‘intervenção’ e inclui o nome da demandante como partícipe de uma espécie de ‘golpe’ que teria ocorrido dentro da instituição de ensino, demonstrando sua total falta de respeito ao grupo gestor do qual a requerente faz parte”, diz trecho da ação.

    “Importante frisar que toda a fala do requerido leva ao entendimento de que a reitoria do IFSC sofreu um ‘golpe antidemocrático’ pelos ‘interventores’ da gestão pro tempore, a qual só assumiu por determinação do MEC”, afirma a ação.

    A ação também reclama que um dos alunos utilizou o termo “cagão”, que considera “pejorativo”, para se referir ao atual reitor e à gestão pro tempore, o que configuraria “absoluto desrespeito e desacato” com os servidores públicos que integram a administração atual.

    Alunos que falaram a CartaCapital afirmam que o processo reproduz as práticas do que chamam de “regime persecutório” da reitoria. Dizem também que os alvos do processo não teriam como pagar o valor exigido na ação.

    A defesa deve ser apresentada ainda neste mês.

    Era a segunda vez que os estudantes tentavam se manifestar em reunião. Na 1ª, marcada para dias antes, em 7 de outubro, dizem ter sido limitados a falar em 15 minutos, que consideravam insuficiente para expor suas demandas. A reunião de 21 de outubro, portanto, teria sido marcada sob a exigência de que o tema levado por eles – a intervenção – fosse priorizado na agenda de pautas e que pudessem dispor de um tempo maior de fala.

    Os estudantes receberam cinco manifestações de solidariedade, da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Comitê de Direitos Humanos do IFSC, das Coordenadorias Pedagógicas, do Coletivo de Psicólogos e de seis jornalistas da região. A UNE afirma, em nota de 27 de novembro, que há “tentativa de criminalização do movimento estudantil do IFSC”, devido a suas “manifestações democráticas contra a intervenção na instituição”.

    “A má-fé da ação é inegável, uma vez que a pró-reitora Fabiana Besen resolveu pedir uma indenização em dinheiro no valor de 10 mil reais como retratação, para estudantes sem a mínima condição financeira para tal”, diz a UNE.

    Questionada por CartaCapital, Fabiana Besen Santos afirmou que há distorção do objetivo do processo, negou tentativa de criminalizar o movimento estudantil e declarou que o valor da indenização será doado para uma entidade filantrópica. Leia na íntegra:

    “Há uma clara tentativa de deturpar o objeto da ação judicial proposta, pois não se trata do valor pleiteado e sim de uma tentativa de cessar as perseguições que venho sofrendo e uma reparação das ofensas proferidas pelos referidos estudantes contra mim. Afinal, é possível valorar a honra de uma pessoa? É possível reparar os danos que venho sofrendo por todo este período? Estou atuando em defesa do que entendo serem meus direitos, não há o que se falar em má-fé, pois o acesso ao judiciário em busca da reparação aos danos ocasionados é o direito de qualquer cidadão. A observância das normas legais são fundamentais para a garantia do estado democrático de direito. Existe um processo em andamento, onde, oportunamente, todas as partes envolvidas poderão se manifestar e apresentar a defesa, se o Juízo entender que houve ofensa à honra e determinar o pagamento da indenização, o valor será doado para alguma entidade filantrópica que acompanho. Reforço, não existe o interesse de tirar dinheiro de ninguém, tão pouco de estudantes. A ofensa ocorreu, o desrespeito e as provocações ocorrem diariamente e cabe à Justiça decidir. De maneira alguma há a tentativa de criminalização. Me senti muito ofendida, pois como servidora pública de carreira fui lesada, razão pela qual decidi ir em busca dos meus direitos. Importante deixar claro que não pedi nenhum tipo de reparação ao movimento, que pode e deve continuar exercendo sua importante função de maneira ampla e dentro da legalidade, saliento que o processo está sendo movido contra as três pessoas, que são maiores e capazes, as quais me ofenderam de forma explícita em uma reunião pública.

    A liberdade de expressão pressupõe tanto o direito absoluto de se manifestar quanto a ser responsável por aquilo que se expressa. Por isso, é importante atentar que a liberdade de expressão pode atingir, de maneira indireta, outros direitos fundamentais, como a honra. Fato este ocorrido quando os referidos estudantes se manifestaram de forma ofensiva e inadequada contra a minha pessoa e contra a outros colegas, colocaram em risco um bem jurídico protegido, qual seja, a minha honra, a minha carreira, a minha dignidade moral. Portanto, no intuito de me resguardar e me proteger, busquei os meios jurídicos adequados, pois a busca pela responsabilização dos ‘excessos’ e ofensas proferidas, não se trata, de forma alguma, de censura, patrulhamento ideológico do ‘politicamente correto’ ou qualquer outra justificativa que se dê. Trata-se, sim, da proteção de direitos fundamentais tão relevantes quanto a liberdade de expressão e que devem ser respeitados.”

    O reitor pro tempore André Dala Possa, também em nota, rebateu a declaração da UNE e reiterou que houve “falas ofensivas”.

    “O IFSC é uma escola que forma trabalhadores, a educação é nossa referência para toda e qualquer ação. No contexto da educação profissional, temos estudantes maiores de idade que enquanto cidadão são responsáveis pelos seus atos e devem sempre manter consciência de que suas falas e atitudes geram consequências. A ação judicial é privada, cabendo aos advogados constituídos pelas partes apresentarem seus argumentos. Acredito que a UNE possa ter se posicionado sem conhecer a fundo o teor das falas ofensivas proferidas. Qualquer cidadão que se sente ofendido tem o direito de buscar reparação.”

    ‘Intervenção autoritária’

    De acordo com os estudantes, o 1º ato autoritário da administração pro tempore teria tido como alvo a seção no IFSC do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional. Em 16 de junho, a entidade se tornou alvo de inquérito por espalhar outdoors, faixas e imagens na internet que acusam a gestão de interventora.

    O inquérito foi instaurado a pedido do delegado da Polícia Federal Clovis Roldão Machado de Barros, após representação do reitor pro tempore Dala Possa. Segundo comunicado, a investigação foi aberta “em razão dos fatos que podem configurar crime de injúria e de difamação”.

    Como medida cautelar, a PF determinou a retirada de “imagens abusivas” da internet e dos cartazes e outdoors e quaisquer meios de divulgação “até que haja o esclarecimento cabal de todos os fatos em suas circunstâncias e extensão”.

    Em sentença de 11 de agosto, a juíza Sabrina Menegatti Pitsica, da 2ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis, negou pedido de censura prévia a publicações sobre a gestão pro tempore. O sindicato, no entanto,  precisou retirar do ar material que acusa André Dala Possa de intervenção.

    O Sinasefe-SC declara que “defende a mais ampla liberdade de expressão e não vai se calar diante de posturas autoritárias que, ao contrário do que alega o interventor do IFSC, só reforçam ainda mais sua imagem de representante do governo Bolsonaro, o qual dispensa maiores adjetivos e apresentações”.

    Questionado, André Dala Possa limitou-se a dizer que o caso ainda tramita na Justiça.

    “A ação que movi contra o Sinasefe tramita na Justiça e não tenho nada a declarar fora dos autos. Já conquistei antecipação de tutela que obrigou o Sindicato a retirar os conteúdos ofensivos”, disse, em nota.

    ‘Intimidação militar’

    Estudantes ouvidos por CartaCapital relatam um caso de intimidação armada. Em 23 de setembro, a administração pro tempore teria feito “uso tático da Polícia Militar” para “intimidar manifestação pacífica” no IFSC. Cerca de dez agentes armados, relatam, bloquearam o acesso dos manifestantes ao pátio do campus Continente, onde fica localizada a reitoria.

    “Me senti atacado”, conta Nelson Matheus, de 22 anos, estudante de Engenharia Elétrica do IFSC. “A sensação foi de medo. Não apontaram as armas para a gente, que eu me lembre. Mas a Polícia é a representação da força do Estado. Se a Polícia está ali, é porque de alguma maneira eles queriam nos privar de ter o nosso direito de entrar na reitoria e fazer nossa manifestação pacífica.”

    Conforme os relatos, os manifestantes eram cerca de cinquenta. Na ocasião, haveria um ato simbólico de posse do reitor eleito, Gariba Júnior. Com a presença dos policiais, os manifestantes tiveram que ficar na rua.

    Para Rodrigo Alvarenga Cabreira, aluno de Engenharia Mecatrônica, 33 anos, a ação ostensiva foi pensada para “gerar medo”. “Os policiais tinham munição letal. Senti que, a qualquer momento, eles poderiam começar uma agressão, usar de força bruta”, conta o estudante.

    A administração diz que chamou a equipe para “manutenção da ordem” e para a “segurança dos manifestantes”.

    “A Polícia Militar foi informada na oportunidade do ato em frente à reitoria para manutenção da ordem pública e para a segurança dos manifestantes (a reitoria fica em um local com trânsito intenso). Não houve nenhuma abordagem ou qualquer outra ação dos policiais. É dever do gestor zelar pelo bem público. No próprio ofício em que informo a PM, cito que a manifestação seria pacífica”, declarou Dala Possa.

    Reitor diz que preza o diálogo; comunidade discorda

    Em entrevista a CartaCapital no dia 10 de novembro, André Dala Possa rejeitou o título de “interventor” e disse que só aceitou ser nomeado no lugar de Gariba porque, se não fosse isso, o funcionamento do IFSC estaria em risco. Afirmou ainda que preza o diálogo com a comunidade acadêmica.

    “Precisamos aprimorar a nossa capacidade de diálogo. Quando nós colocamos as coisas em lados distintos ou trabalhamos uma eterna disputa política, quem perde é a sociedade”, disse.

    Integrantes da comunidade acadêmica rejeitam essa justificativa. Rodrigo Alvarenga Cabreira afirma que o processo movido pela administração contra os estudantes sinaliza que não há uma disponibilidade para uma resolução pacífica.

    “Que diálogo é esse em que nós falamos e somos rechaçados com um processo? Eu não vejo nenhuma forma de diálogo possível, se cada palavra nossa tem que agradar a eles. Isso não é um diálogo. Se não os agrada, eles vão processar?”, questiona.

    Para Conceição Garcia, professora aposentada de Design de Produto do IFSC, o processo movido pela administração contra o Sinasefe-SC mostra um perfil “bastante autoritário” da gestão.

    “O que era de se esperar de um interventor, né? Porque alguém que aceita um cargo sem ter sido eleito pode até fazer um discurso bonito de que está em prol da instituição, mas nesse momento isso significaria estar em prol da democracia”, diz a professora. “Ele faz de conta que dialoga com a comunidade, mas ele não faz isso efetivamente.”

    O presidente da União Catarinense dos Estudantes, Lucene Magnus, diz que a resposta militar ao ato de setembro “deixa claro que esse diálogo não está acontecendo”. Em sua opinião, a gestão pro tempore do IFSC acompanha o interesse de Bolsonaro em intervir nas instituições federais de ensino para deter a “construção de uma educação crítica”.

    “Quando Bolsonaro coloca os seus interventores, é para reprimir a democracia das instituições, ferir a autonomia universitária e colocar o seu ideal de educação.”

    IFSC encabeça mobilizações nacionais

    Nesta quinta-feira 10, o reitor eleito Gariba Júnior participa de uma manifestação em Brasília contra os impedimentos em diferentes instituições federais. Depois de uma concentração no Palácio do Buriti pela manhã, agendaram uma carreata e, em seguida, um ato.

    Na terça-feira 8, os reitores não empossados se reuniram no ato virtual “Em Defesa da Democracia e Autonomia das IFEs”. Entre os convidados, esteve o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ).

    Na quarta-feira 9, fizeram atividades no Congresso Nacional e no Ministério da Educação (MEC) e se reuniram com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem entregaram um documento sobre nomeações que não respeitaram resultados de eleições.

    “Essa frente mostra à comunidade o autoritarismo, o desrespeito às entidades, aos fóruns dessas instituições, as perseguições que esses interventores estão cometendo”, disse Gariba, em ato virtual. “A defesa da democracia é um princípio que está na Lei de Diretrizes e Bases. A luta pela autonomia das instituições federais é a luta dessa frente de articulação.”

    Também nesta quinta, o ministro do STF Edson Fachin determinou Bolsonaro respeite as listas de consulta feitas pelas universidades federais e demais instituições federais de ensino superior. O voto será avaliado em plenário virtual.

    Questionado por CartaCapital desde outubro sobre o caso, o MEC não se manifestou.

     

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