População transexual carcerária tem saúde desrespeitada em SP

Por Mayara Paixão.

O despreparo do sistema penitenciário para acolher a população transexual, submetendo esse grupo a situações de desrespeito, é tema que aparece sem grande esforço ao conversar com uma mulher ou homem transexual que já transitou pelo sistema carcerário.

Há duas semanas, a mais recente denúncia partiu de uma Ação Civil Pública, ajuizada pela Defensoria Pública da União (DPU), constatando ausência do fornecimento de tratamento hormonal à população carcerária transexual pela administração penitenciária do Estado de São Paulo.

Também conhecido como hormonoterapia, o tratamento hormonal busca induzir o desenvolvimento de características sexuais secundárias compatíveis com a identidade de gênero da pessoa. A ausência de acesso aos hormônios — situação à qual essas pessoas estão sendo submetidas — acarreta o retrocesso das características já adquiridas.

De acordo com o texto da ação, a inércia estatal quanto à realização do fornecimento do tratamento à pessoa reclusa “implica em violação de direitos humanos da pessoa transexual, tanto no aspecto de proteção da saúde quanto, sobretudo, da dignidade humana.”

Responsável pelo texto, a defensora regional de direitos humanos Fabiana Severo, que também é integrante do Grupo de Trabalho Identidade de Gênero e Cidadania LGBTI da DPU, explica que o objetivo é fazer com que o Estado de São Paulo cumpra as normativas existentes em âmbito nacional e os tratados internacionais a respeito de um tratamento isonômico garantido à população LGBTI privada de liberdade. “O que nós estamos buscando é efetivar a garantia desse tratamento”, diz Severo.

Além da ausência do tratamento hormonal, há outras queixas no que se refere ao respeito à identidade de gênero das pessoas transexuais. Sandra*, 32, mulher transexual que esteve no sistema prisional por duas vezes — uma em São Paulo e outra em Minas Gerais — relatou, em conversa com o Saúde Popular, a falta de respeito dos agentes penitenciários, que “debocham” e não chamam as pessoas transexuais por seus nomes sociais, escolhidos para representar o gênero com o qual se identificam.

Ela também conta que o maior medo das transexuais e travestis, quando reclusas, é o corte de cabelo ao qual são submetidas. “Foi muito difícil sair dessa forma [sem o cabelo], até mesmo para me reintegrar na sociedade depois”, desabafa Sandra.

Denúncia

Severo conta que a ação civil pública nasceu de uma denúncia recebida pela assistência prestada pela DPU. Na atividade rotineira do órgão, três pessoas transexuais em situação de prisão são assistidas. Uma delas, transexual feminina detida provisoriamente no Centro de Detenção Provisória III de Pinheiros desde 21 de maio de 2016, relatou, durante a audiência criminal de interrogatório, que não teve mais acesso à medicação de natureza hormonal utilizada por ela.

A defensora argumenta que esse episódio é reflexo de um quadro maior: o padrão para o qual os presídios brasileiros foram moldados. “Os estabelecimentos prisionais são espaços bastante masculinos e heteronormativos. Qualquer público que não se encaixe nesse perfil acaba sofrendo os efeitos de não ser um espaço preparado para ele”.

Em relação às pessoas transexuais, Severo, que trabalha diretamente com direitos humanos, caracteriza o tratamento como “absolutamente violento”, tanto física, quanto psicológica. “As pessoas são tratadas de acordo com seu sexo biológico, e não pelo nome social”, afirma.

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Experiência

Um ponto fora da curva é apresentado por Sandra ao comparar as experiências que teve na prisão. Enquanto em São Paulo, onde ficou detida por seis meses, o desrespeito à sua identidade de gênero, a ausência do acesso aos hormônios e o corte dos cabelos foram presentes; em Minas Gerais, primeiro estado brasileiro a ter presídios com alas exclusivas para homossexuais, onde ficou reclusa por quatro anos, o tratamento era completamente distinto. “Tirando a tristeza por estar lá, longe da família, era como se estivesse aqui fora”, diz.

Nesse sentido, Severo também pontua a escassez de pesquisas quantitativas e qualitativas sobre a população transexual carcerária e o quão prejudicial isso é para que ações possam ser desenvolvidas.

“Não temos, no Brasil, dados muito certos em relação à população carcerária. Quando a gente fala de outros grupos que fogem do padrão heteronormativo brasileiro, que envolvem outras interseccionalidades, só piora a questão dos dados”, pontua a defensora.

Direitos assegurados

A ação ajuizada pela Defensoria reúne uma série de normas de direitos humanos e de sua aplicação a questões de orientação sexual e identidade de gênero que demonstram o dever do Estado de fornecer o tratamento hormonal. Entre elas, está a Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014, na qual o próprio Conselho Nacional de Combate à Discriminação da Presidência da República e o Conselho Nacional de Política Carcerária reconheceram expressamente o direito ao fornecimento de tratamento hormonal às pessoas transexuais reclusas.

Em se tratando de normativas internacionais, o texto cita, entre outras, as Regras de Mandela, que apresentam determinações expressas visando o respeito à atribuição de gênero de pessoas reclusas.

Ambas as diretrizes, de acordo com a defensora Fabiana Severo, são violadas ao não se fornecer o tratamento hormonal às pessoas transexuais carcerárias. “Nós entendemos que esse tipo de tratamento, desprezando as condições pessoais e as necessidades específicas dessa população, caracteriza tortura e tratamentos cruéis e degradantes nos termos dos tratados internacionais que nós temos a respeito”, diz. E completa: “a gente precisa ter um olhar para essa população que é mais marginalizada e mais invisibilizada.”

*O nome foi modificado para preservar a fonte.

Fonte: Brasil de Fato

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