O desafio de retomada da indústria e do desenvolvimento nacional. Por José Álvaro Cardoso.

Foto: Janno Nivergall emPixabay

Por José Álvaro Cardoso.

Na semana passada o governo anunciou que irá investir, nos quatro anos de governo, R$ 106,16 bilhões para alavancar a indústria nacional. Segundo o que foi comunicado, essa política contará com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que financiará R$ 65,1 bilhões do total, sendo que a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), aportarão o restante dos recursos. O processo de reindustrialização do Brasil consta do programa do atual governo, o tema teve destaque durante a campanha eleitoral de 2022.

O esforço anunciado pelo governo é fundamental, por algumas razões conhecidas:

1º) Não há registro na história, de país que tenha chegado ao desenvolvimento econômico e social, sem uma generalizada industrialização e um forte e ativo Estado nacional. Mesmo economias que utilizaram mais as exportações de produtos primários para elevar a sua renda per capita (como Austrália e Canadá), antes atravessaram períodos de elevada diversificação industrial, elemento essencial das suas estratégias de desenvolvimento;

2º) Existe uma relação empírica e conceitual entre o grau de industrialização e a renda per capita, tanto nos países ricos, quanto nos subdesenvolvidos;

3º) Há uma associação estreita entre o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e o crescimento da indústria manufatureira. A dinâmica da economia brasileira nos últimos anos, mostra o fenômeno: o PIB apresentou queda, em boa parte, porque a indústria de transformação recuou drasticamente, criando um círculo vicioso;

4º) A produtividade é mais dinâmica na indústria do que nos demais setores. É a indústria que puxa o crescimento de produtividade da economia;

5º) O avanço tecnológico que se concentra no setor manufatureiro tende a se difundir para outros setores econômicos, como o de serviços ou mesmo a agricultura. Os bens com maior valor adicionado produzidos pela indústria incorporam e disseminam maior progresso técnico para o restante da economia.

O esforço pela retomada da indústria no Brasil, ou reindustrialização como tem sido chamada, não é medida trivial, que possa ser feita sem um grande esforço nacional. Como qualquer grande problema nacional vai requerer uma forte mobilização dos trabalhadores, pois depende de correlação de forças. A razão é conhecida: os países centrais não querem indústria forte na periferia do sistema. Para esses países, as nações subdesenvolvidas devem se concentrar em enviar matérias primas e commodities para o centro industrial imperialista.

Tive oportunidade de abordar em artigo anterior que o problema atual do Brasil não é uma mera dificuldade no ciclo de crescimento, de redução normal da atividade econômica. Na realidade, o país enfrenta uma verdadeira guerra econômica, que se origina dos países imperialistas. É uma política deliberada de liquidação da economia de alguns países, visando inclusive, reduzir parte das forças produtivas e o “excesso” de mercadorias ao nível internacional. Excesso, bem entendido, em relação àquilo que as pessoas podem comprar, que é o que interessa ao funcionamento da engrenagem capitalista. É o conhecido problema de sobre produção de mercadorias. É uma sobre produção relativa, decorrente do fato de que uma parte da produção não é absorvida, porque a população não tem dinheiro para comprar.

Essa política de guerra não é exclusivamente contra o Brasil, mas contra todos os países subdesenvolvidos, com aspirações de soberania nacional. Neste momento de grande crise internacional e de disputa acirrada por mercados, os EUA estão dizendo claramente: não aceitaremos políticas nacionalistas, especialmente em aliança com nossos principais rivais no mundo, China e Rússia. Por isso, os Brics (bloco que reúne Brasil, Rússia, Índia e África do Sul), está no meio desse entrevero histórico. A determinação dos EUA em afrontar a Rússia, via guerra da Ucrânia, despreza, inclusive, o risco de o conflito escalar, passando a envolver ainda mais fortemente os principais países da Europa (que já estão envolvidos, através do fornecimento de armas e suprimentos). É sabido que os EUA estão ganhando dinheiro com a guerra na Ucrânia, com venda de armas e gás à Europa, que, com o conflito, perdeu o fornecimento de petróleo e gás baratos, da Rússia, insumos fundamentais para a economia do continente.

Nos países desenvolvidos, que em alguns casos se desindustrializaram, a indústria nacional já cumpriu o seu papel no desenvolvimento econômico, colocando a renda per capita da população em patamar mais elevado. Ao se desindustrializar, o Brasil está perdendo, gradativamente, a sua maior conquista econômica do século XX. Entre 1930 e 1980, a economia brasileira cresceu a elevadas taxas (6,8%, entre 1932-1980) baseado no chamado “processo de substituição de importações”, com fortes incentivos estatais à industrialização através das políticas cambial, tarifária e fiscal (não há indústria sem políticas públicas articuladas).

A crise da indústria, que já vinha ocorrendo de forma estrutural, desde a década de 1980, foi colocada em um patamar mais profundo com o golpe, que foi também desferido contra o desenvolvimento industrial (a entrega da Eletrobrás está também ligada a isso). A indústria brasileira é uma das que mais apresentaram recuo no mundo em quase 50 anos, segundo levantamento do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), revela que o setor no Brasil teve a terceira maior retração entre 30 países, desde o ano de 1970, ficando atrás apenas de Austrália e Reino Unido. Os dados da pesquisa levam em conta o resultado da produção industrial até 2017, de lá para cá o setor recuou mais ainda. Nos dois países que apresentaram declínio na produção industrial mais forte que a do Brasil (Austrália e Reino Unido) a renda da população estava subindo quando a queda do desempenho da indústria começou a recuar em relação ao PIB.

Quando o peso da indústria em relação ao PIB cai porque as famílias estão consumindo mais serviços, essa pode ser considerada uma trajetória “natural”, verificada nos países ricos. Mas no Brasil ocorreu uma desindustrialização prematura. A indústria começou a perder peso na estrutura produtiva antes da renda da população subir (segundo o Dieese, 60 milhões de brasileiros tem sua renda referenciada no salário-mínimo). Nos últimos anos, inclusive, a redução do peso da indústria no PIB ocorre simultaneamente à queda da renda per capita.

O desenvolvimento dos países imperialistas e dos países pobres é de fato desigual e combinado. Isso significa que, para reindustrializar o país e melhorar a renda da população, é fundamental enfrentar a atual divisão internacional do trabalho, completamente dominada pelos países ricos. Por essa razão, a implementação de política que reverta e redução da indústria no PIB nacional está intimamente ligada à questão da soberania. Temos um exemplo atual dessa dimensão do problema, com a postura subserviente dos países europeus em relação à guerra na Ucrânia. A Europa não ganhou nada com a guerra, a não ser uma recessão, que já se instalou na Alemanha, principal economia do Continente.

Nos países ricos nos quais a indústria perdeu participação na produção de riqueza o capital industrial se deslocou para setores dinâmicos dos serviços. São esses países que investem pesadas somas na indústria 4.0, que integra diversas tecnologias. Nos EUA, por exemplo, a indústria perde participação, mas os segmentos que conseguem se manter são os de elevado desenvolvimento tecnológico, que surfam nas inovações da indústria 4.0. As empresas que produziam computadores, por exemplo, agregaram mais tecnologia e migraram para a área de softwares. Tem também a indústria da guerra, cujo investimento do governo americano é metade de tudo que se gasta com armas no mundo (o orçamento militar da Rússia corresponde a cerca de 8% do orçamento norte-americano).

No Brasil a desindustrialização vem ocorrendo de forma anárquica, com grande perda tecnológica. Cerca de dois terços da produção industrial do país é de baixa ou média tecnologia, tem baixo dinamismo. Boa parte da indústria “aperta ainda muito parafuso”. Os capitais que migram para serviços o fazem em serviços de menor qualidade, muitas vezes na economia informal. É comum empresários abandonarem a fabricação de determinado produto e passarem a importá-lo da Ásia, especialmente China.

Em 1980, o parque industrial brasileiro correspondia a 4,11% da indústria mundial. A China, atual gigante industrial, na época tinha uma participação de 1,65% e ultrapassou o Brasil ainda nos anos 1990. O caso da China é único e foi precedido de uma revolução popular, em 1949, portanto, bastante diferente, do caso brasileiro. No Brasil, há quase uma década, de forma consecutiva, cai o número de indústrias no território nacional. Segundo um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), entre 2015 e 2020 foram extintas 36,6 mil empresas industriais. O número equivale a quase 17 estabelecimentos industriais liquidados todo dia. Essa tendência, claro, se manteve de 2021 para cá.

A fatia da indústria da transformação no PIB, de menos de 10%, é o patamar mais baixo da série histórica iniciada em 1946 (77 anos atrás). O problema conjuntural, ligado à crise, e o estrutural (desindustrialização), coincidem com um período no qual o mundo atravessa a chamada 4ª Revolução Industrial. O Brasil precisaria investir bilhões em pesquisa e inovação industrial neste momento, procurando pelo menos, congelar a histórica defasagem científico-técnica que tem o país em relação aos países imperialistas.

A indústria é também fundamental na geração de emprego e renda, inclusive de melhor qualidade. A alavancagem de valor na indústria significa a movimentação da cadeia como um todo: comércio, setor de pesquisa, serviços em gerais, transporte, logística, infraestrutura, e assim por diante. A cadeia estruturada pela indústria, pode ser exemplificada pelo ramo petroquímico, área da química encarregada dos derivados de petróleo e sua utilização na indústria. A indústria petroquímica transforma petróleo bruto em uma gama enorme de produtos como gás natural, gasolina, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene, óleo diesel, nafta petroquímica, solventes, asfalto, dentre outros. O petróleo, além de fonte de energia essencial, é utilizado como matéria prima para mais de 3.000 bens industriais. É fácil constatar que a cadeia de produção de derivados do petróleo gera emprego e renda em todo o processo produtivo. Essa característica, com especificidades, vale para todos os ramos industriais.

Indústria significa também desenvolvimento da tecnologia. A política de venda de refinarias e exportação de óleo cru é também prejudicial ao país porque restringe as possibilidades de desenvolvimento da pesquisa e tecnologia. Se a Petrobrás é hoje uma gigante na exploração de petróleo em águas profundas e ultra profundas, e referência mundial na área, é fruto do desenvolvimento de tecnologia regular e de alto nível. A descoberta do pré-sal é resultado de esforços contínuos em pesquisas, em um padrão extremamente elevado, situação rara em países subdesenvolvidos. O Brasil hoje despontar no conhecimento e na exploração de petróleo originário da camada de pré-sal é fruto de décadas de muita luta dos setores nacionais.

A crise da indústria de transformação no Brasil é muito grande e deveria ser enfrentada como prioridade pelo governo Lula. Em tabela elaborada pelo Dieese, com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), se constata que desde 1947, a participação da indústria para a formação do PIB no país foi a menor da história em 2021, apenas 11,3%. Em 1985, ápice da industrialização no Brasil, a participação da indústria no PIB era de 35,9%, segundo a tabela mencionada.

Há uma relação direta entre desenvolvimento da indústria e renda per capita, que é um indicador fundamental de potencial de um país, para a distribuição de renda. Dada a importância da indústria para o desenvolvimento nacional e a complexidade do tema, o país deveria ter estratégias de longo prazo, envolvendo todos os segmentos importantes da sociedade, para que a indústria recuperasse dinamismo e importância na produção de riqueza. Isso não será feito sem muito trabalho e determinação.

 

José Álvaro Cardoso é coordenador técnico do DIEESE/SC e colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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