Neste momento, defender Lula é defender a justiça e a democracia

Por Luis Felipe Miguel.

O que caracteriza o cerco judicial contra o Lula, desde o início, é seu caráter arbitrário. O ex-presidente começou a ser perseguido antes que existissem sequer pretextos contra ele. O aparelho repressivo (polícia, procuradoria, judiciário) foi mobilizado para encontrar qualquer coisa que o incriminasse, o que já demonstra uma grave ruptura com o Estado de direito. Pedalinho, barco de lata, depósito de tralhas, era um barata-voa em busca de algo que pudesse ser mobilizado contra Lula.

Acharam o tal apartamento em Guarujá. Não conseguiram jamais provar que foi de Lula e outro dia uma juíza desavisada chegou a comprometer a farsa indicando, em autos, que a proprietária é mesmo a OAS. Muito menos indicaram a contrapartida do ex-presidente à construtora, para estabelecer o vínculo de corrupção.

O caso foi julgado por Sérgio Moro, embora o imóvel fique em outra comarca, sob a alegação de que tratava-se de fruto de desvio de dinheiro da Petrobrás – e, portanto, ele seria “juiz natural” do caso. O próprio Moro reconheceu em seguida que isso não tinha fundamento, mas nada mudou.

A sentença é escorada em denúncias de delatores – mas, ao longo da Lava Jato, ficou muito claro que o acesso aos benefícios da delação premiada dependiam muitas vezes de implicar o ex-presidente. Prisões provisórias foram amplamente usadas como forma de pressão ilegal para alcançar as confissões pretendidas. Os presos negociavam amplamente os termos de suas delações, até chegar ao que desejavam os agentes da lei, de forma escandalosa. As evidências de comprometimento da Lava Jato, por seus procedimentos viciados, são inúmeras, mas desprezadas pela imprensa e pelo judiciário (como demonstra o silêncio que cercou o depoimento de Tacla Durán no Congresso).

Fora as delações induzidas, Moro lista argumentos bizarros, estendendo quase ao infinito a já insustentável interpretação da teoria do “domínio do fato” que Joaquim Barbosa pôs em curso no caso do mensalão. Aliás, Moro chega a listar o fato de Lula não ter apresentado reprimenda pública aos condenados naquele julgamento entre os indícios de culpa que recomendariam sua prisão…

É de se perguntar por que a condução de um caso tão importante foi entregue a gente do nível de Moro ou Dallagnol. Por um lado, a maioria dos nossos operadores de justiça é mesmo muito mal formada. Por outro, pessoas mais qualificadas e competentes provavelmente se sentiriam constrangidas de operar farsa tão primária.

Thompson Flores e seus colegas já demonstraram que não sofrem tal constrangimento. Amanhã, devem cumprir seu papel e condenar Lula. Não pelo recebimento de um triplex que nunca foi dele. Vão condenar Lula porque, a despeito de todo seu esforço de acomodação e de seu cuidado para não ultrapassar os limites da ordem estabelecida, ele é um mau exemplo, um exemplo de que um líder popular pode triunfar na política, de que é possível implantar algumas políticas em benefício das maiorias, de que a desigualdade aberrante do Brasil não é imutável. Vão condenar Lula porque, como escreveu Wanderley Guilherme dos Santos, o que se implanta no Brasil é “uma ordem de dominação [completamente] nua de propósitos conciliatórios com os segmentos dominados”.

É por isso que a defesa de Lula, neste momento, não se confunde com a defesa do voto em sua candidatura, nem com a defesa de seu governo ou de seu partido. É a defesa da justiça e da democracia.

O que se condena em Porto Alegre não é o ex-presidente e seu direito de concorrer às eleições deste ano. O que se condena é o que resta do império da lei e da democracia formal no Brasil. Se não ocorrer algum inesperado e o TRF-4 seguir o script, amanhã o golpe terá dado um novo e importante passo e estaremos ainda mais próximos da instauração de uma ordem abertamente autoritária.

Nesta altura do campeonato, está claro que não há como confiar nas instituições, nem depositar a esperança nas eleições. Se queremos restaurar os procedimentos mínimos da democracia e de um campo de luta pela justiça social, a resistência tem que vir das ruas.

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A Boitempo prepara-se para lançar, em 2018, o novo livro de Luis Felipe Miguel: Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. A obra apresenta uma discussão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade. A ordem democrática liberal não pode ser entendida como a efetiva realização dos valores que promete, pois a igualdade entre os cidadãos, a possibilidade de influenciar as decisões coletivas e a capacidade de desfrutar de direitos são sensíveis às múltiplas assimetrias que vigoram na sociedade. Porém, tampouco pode ser lida segundo a crítica convencional às “liberdades formais” e à “democracia burguesa”, que a apresenta como mera fachada desprovida de qualquer sentido real. Assim, a democracia não é um ponto de chegada, e sim um momento de um conflito que se manifesta como sendo entre aqueles que desejam domá-la, tornando-a compatível com uma reprodução incontestada das assimetrias sociais, e quem, ao contrário, pretende usá-la para aprofundar contradições e avançar no combate às desigualdades. Portanto, o conflito na democracia é um conflito também sobre o sentido da democracia, isto é, sobre quanto ela pode se realizar no mundo real como projeto emancipatório e quanto as instituições vigentes contribuem para promovê-la ou para refreá-la.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Seu próximo livro, Dominação e resistência, será publicado pela Boitempo em 2018. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

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