‘Há uma epidemia de solidão porque não nos atrevemos a passar tempo com pessoas sem fazer nada’

Uma pesquisa realizada pela consultoria Ipsos em 2020 revelou que, no Brasil, 36% dos entrevistados disseram se sentir sozinhos. No Peru, a taxa ficou em 32%.

Imagem de Grae Dickason por Pixabay

Por Ronald Ávila-Claudio, BBC.

Em maio de 2023, o cirurgião-geral dos Estados Unidos divulgou um relatório sobre uma epidemia que cresceu silenciosamente no país durante décadas.

Vivek Murthy declarou que os americanos se sentem solitários, muito mais do que o habitual, e isso representa uma ameaça ao bem-estar físico e emocional, além de ser um enorme problema de saúde pública.

“O impacto na mortalidade de estar socialmente desconectado é semelhante ao de fumar 15 cigarros por dia”, comparou o médico, que tem como função ser o principal porta-voz dos problemas de saúde do país e também dirigir um corpo de médicos do Exército norte-americano.

Vários estudos apoiam as conclusões de Murthy, embora os resultados ainda sofram variações.

O mesmo documento partilhado pelo médico aponta que, de 2003 a 2020, o isolamento social médio entre os cidadãos cresceu de 142 horas mensais para 166, o que representa um aumento de 24 horas na média.

Os mais afetados por esta tendência são os jovens, cujo tempo com os amigos foi reduzido em 70% nas últimas duas décadas.

Já a seguradora Cigna, num levantamento independente publicado em 2020, indica que três em cada cinco americanos “estão sozinhos”.

O problema não diz respeito apenas aos EUA. Outras regiões do mundo, como a América Latina, também são afetadas pela solidão. Uma pesquisa realizada pela consultoria Ipsos em 2020, em que a empresa escolheu aleatoriamente cinco países latino-americanos nos quais entrevistou mais de 15 mil pessoas, revelou que, no Brasil, 36% dos entrevistados disseram se sentir sozinhos. No Peru, a taxa ficou em 32%.

Na sequência do ranking, aparecem Chile (30%), México (25%) e Argentina (25%).

A situação, que pode ser arrasadora, está associada a um “risco aumentado de doenças cardiovasculares, demência, acidente vascular cerebral (AVC), depressão, ansiedade e morte prematura”, afirmou Murthy.

Embora os especialistas afirmem que a pandemia de covid-19 teve um enorme impacto no sentimento de solidão, devido ao isolamento social, o fenômeno começou muito antes e está relacionado ao desenvolvimento da tecnologia. Essa é a visão de Sheila Liming, professora do Champlain College, em Vermont, Estados Unidos.

Liming é especialista em estudos culturais e, com base em suas próprias experiências com a solidão, escreveu o livro Hanging Out: The Radical Power of Killing Time (“Sair Para Se Divertir: O Poder Radical de Passar o Tempo”, em tradução livre), ensaio no qual teoriza que uma das causas desta crise nos EUA é a “incapacidade de sair para se divertir ou de se encontrar com outras pessoas” — ou hanging out, em inglês.

Ao longo da entrevista, essa atitude será descrita pelo verbo “sair”.

As pesquisas que fez sobre o tema, somada às experiências como professora há mais de 10 anos e uma carreira que exigiu viagens e um contato constante com dezenas de jovens, permitem que Liming afirme que o tema é muito mais complexo do que se acredita.

Segundo ela, por trás do não “sair” existe toda uma rede de apoio que corre o risco de se desfazer e não dar respostas a quem sente o abismo da solidão.

Confira os principais trechos da entrevista que a BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) fez com Liming a seguir.

Sheila Liming
Sheila Liming, professora no Champlain College, em Vermont.
BBC – O que está por trás da crise de solidão nos EUA?

Sheila Liming – Ela é causada por múltiplos fatores e acontece em diferentes frentes. Um dos problemas desta crise tem a ver com o tempo.

As pessoas não têm tempo suficiente para se dedicar à interação social. E, por outro lado, também sentem que a interação social em si é uma perda de tempo, por isso não a priorizam. Muitos se sentem culpados por não fazer nada, por passar tempo com alguém ou simplesmente por estar na presença de outras pessoas.

Acho que outro grande fator é a falta de espaços e de acesso a espaços onde as pessoas possam se reunir, sair e existir na presença de outras pessoas.

Lugares onde elas podem estar sem sentir que precisam de um motivo específico para visitar ou que precisam gastar dinheiro para ir.

Tudo isso ficou muito óbvio durante a pandemia de covid-19, mas não creio que tenha desaparecido agora.

BBC – Como você define esse ato de “sair”?

Liming – Defino sair como ousar fazer muito pouco na companhia dos outros.

O poder radical de passar o tempo reside na ousadia. É aí que entra o subtítulo do meu livro, porque acho que é preciso um pouco de coragem e audácia para poder dizer: ‘Não, vou priorizar esse uso do meu tempo, em vez de, digamos, trabalhar mais.’

Acho que existe um tipo de atitude social que despreza esse tipo de comportamento.

BBC – Ouvi você falar sobre como construímos nossas vidas em torno do isolamento. De uma perspectiva ampla, como isso é afetado pela forma como os sistemas de transporte e a arquitetura são projetados?

Liming – A vida nos EUA foi concebida para privilegiar condições de solidão e isolamento.

Mas quando digo que foi concebida dessa forma, não quero dizer que o fizemos de propósito. Acho que aconteceu acidentalmente, como resultado de outros sistemas de valores em jogo.

Nos EUA, por exemplo, a privacidade é vista como um privilégio e também é algo que traz honra e orgulho.

Por isso, cultivamos estas condições de privacidade para mostrar ao mundo que somos bem sucedidos, que conseguimos chegar lá. Para que todos saibam que somos donos da nossa casa, do nosso carro.

Estar longe dos vizinhos nos permite escolher quando temos interações, e estabelecer limites quando não queremos.

Tudo isso é visto como parte do espírito americano de sucesso. Mas esse espírito de sucesso acaba por nos deixar mais solitários quando temos uma crise e precisamos da ajuda de outras pessoas, mesmo que queiramos apenas saber sobre os nossos vizinhos em vez de evitá-los e excluí-los.

BBC – O conceito de privacidade parece estar muito relacionado ao conceito de ser ou não uma pessoa madura. Se você tem 30 anos, como eu, sua família não te verá da mesma forma se você mora sozinho ou com outra pessoa…

Liming – Somos ensinados que a única forma de dar o próximo passo na vida, seja ele qual for — como tornar-se independente, constituir família ou encontrar um parceiro romântico —, é ter o seu próprio espaço. Até que você não tenha isso, você não poderá alcançar nada na vida.

BBC – Viver em espaços compartilhados nos tornaria mais felizes?

Liming – Sim, há esse potencial. O problema é que estamos tão habituados a este sistema de valores que é uma adaptação muito difícil para as pessoas aceitarem a ideia de partilhar um espaço.

BBC – Como você acha que a sociedade mudou desde quando passamos a ter menos tempo para “sair”?

Liming – Existe um equívoco comum de que, à medida que a sociedade cresce e progride, teríamos mais tempo livre do que no passado. Mas na realidade há muitos pesquisadores que, depois de analisarem esta equação, descobriram que não é bem assim.

A realidade pode provavelmente ser o oposto. Antes, tínhamos mais tempo livre do que temos agora.

Mas nem sempre reconhecemos a diferença entre tempo livre e tempo de trabalho.

Agora uma coisa atrapalha a outra muito mais. Antes, você terminava seu trabalho e ia para casa. Você não tinha um e-mail para verificar, nem mensagens de texto do chefe ou de um colega de trabalho. Havia um espaçamento mais definido entre a jornada de trabalho e o tempo livre.

Agora essa separação não está tão clara. Superficialmente, parece que temos tempo de lazer, mas na realidade passamos muito tempo trabalhando ou realizando tarefas em preparação para o trabalho.

BBC – Existe um perfil de quem vivencia a solidão nos EUA?

Liming – Não creio que o problema seja específico de um grupo demográfico. Acho que é algo generalizado.

Fala-se muito sobre o grupo demográfico mais velho nos EUA ser afetado pela solidão. Diz-se que, ao deixarem de ter o núcleo familiar com o qual viviam, acabam em centros de acolhimento onde vivenciam muita solidão. E isso é um grande problema para essa população.

Mas penso que a solidão é igualmente um problema para as populações mais jovens.

Sou professora universitária e trabalho com alunos que têm entre 18 e 24 anos, e isso é um grande problema para eles também. A ironia é que a faculdade deveria ser um dos momentos mais sociais da vida de uma pessoa.

Certa vez, li algo sobre o fato de que a felicidade humana se manifesta aos 26 anos, e a atividade social que leva a isso é supostamente mais vibrante durante esse período

Mas a população em idade universitária com quem trabalho é tão propensa à solidão, ao isolamento e aos problemas de saúde mental associados a isso como a população com mais de 65 anos.

BBC – E o que acontece com essa geração mais jovem?

Liming – Acho que há dois fatores: a pandemia de covid-19 e também a ascensão da tecnologia digital personalizada.

Ambas as coisas fizeram esta geração pensar que basta conhecer outras pessoas pela internet. E isso não é algo negativo, mas certamente não é o suficiente.

Esta é uma geração cujos últimos anos do Ensino Médio foram vividos durante a pandemia de covid-19. As vidas foram interrompidas e eles não vivenciaram marcos importantes relacionados à idade, ou tudo foi vivenciado online.

Quando os vejo em sala de aula, percebo que eles têm hábitos que não necessariamente os ajudam.

Um desses hábitos: quando precisam de ajuda ou companhia recorrem à internet em busca de uma resposta, e não à pessoa que está ao seu lado na sala de aula, aos colegas de quarto, aos amigos ou aos pais.

BBC – Há quem se sinta mais seguro interagindo por meio da tecnologia. Afinal, nas redes sociais você tem amplo controle e pode desaparecer instantaneamente…

Liming – Isso mesmo, é uma questão de controle. Quando você está em um ambiente mediado por uma rede social, conhece as regras e as formas de entrar e sair. Se algo fica estranho, você sabe que pode encontrar uma saída sem muitos problemas.

Nas interações pessoais, se você tentar se comportar da mesma maneira, alguém poderá pensar que você é muito rude e julgá-lo.

Além da falta de controle, tememos o julgamento. As interações sociais presenciais estão sujeitas a regras diferentes daquelas que temos nas redes sociais, e isso pode nos deixar com medo.

BBC – Como as mídias sociais e a internet podem nos ajudar a interagir?

Liming – No meu livro, procuro não tratar as tecnologias digitais como uma força maligna, porque elas não são. Acho que elas fizeram muitas coisas por nós, ou pelo menos têm potencial para fazer muitas coisas por nós.

Há uma década, quando eu tinha 30 anos, comecei meu primeiro emprego como professora e me mudei para Dakota do Norte, um Estado muito rural. Eu nunca tinha visitado lá antes e meus contatos se limitavam à minha vida profissional.

Foi aí que comecei a me envolver com as redes sociais, pois passava muito tempo sozinha. Descobri colegas que trabalhavam em temas muito parecidos com os meus, inclusive de outros departamentos aos quais eu não pertencia.

As redes sociais são boas para “quebrar o gelo” no escritório. Quando cheguei ao novo espaço de trabalho, isso foi extremamente benéfico para mim, porque pude falar sobre o que vi online com as pessoas. Foi muito útil.

Isso não significa que você pode se dar ao luxo de virar as costas à comunidade física onde mora.

BBC – O que você leu em seus estudos sobre o problema da solidão em outros países? Essa é uma questão das sociedades ocidentais?

Liming – A minha perspectiva é mais ou menos limitada aos EUA, simplesmente porque é o lugar que conheço melhor.

Mas quando viajo, vejo o que acontece em outros países e tenho a perspectiva de outras culturas. Isso também acontece quando dou entrevistas à mídia e converso com jornalistas que não são dos EUA.

Repórteres da Alemanha, Noruega e Itália disseram-me que esta é uma questão que afeta também os países deles. É por isso que penso que é algo relacionado com a estrutura cultural dos EUA e do mundo ocidental.

Por exemplo, um jornalista mencionou uma vez que, na Noruega, 50% dos agregados familiares são constituídos por uma única pessoa.

Pode ser que algo que é norma nos EUA seja imposto em outros países como desejável: o isolamento como uma espécie de objetivo final.

BBC – Em Porto Rico tenho familiares que tendem a morar sempre perto uns dos outros. Tenho primos que são vizinhos. É algo normal nas zonas rurais da ilha. Isto reduz a capacidade de encontrar amigos, especialmente devido à nossa tendência cultural de priorizar os laços familiares em detrimento das amizades. Desconstruir nossa ideia de família nos ajudaria a ter uma vida social melhor?

Liming – As famílias podem isolar-se, tanto para o bem como para o mal. Elas podem fornecer estruturas de apoio e proteção. Quando funcionam dessa forma, são consideradas uma coisa boa.

Mas elas também podem isolar em demasia, ao criar uma espécie de recinto do qual é difícil sair. Como nas situações que você falou, onde está rodeado de tantos familiares que se torna mais difícil fazer amigos ou conhecer outras pessoas.

Aí entra em jogo também, pelo menos aqui nos EUA, a expectativa que você sempre tem de deixar a família orgulhosa. Muitas vezes, para que isso ocorra, a tendência é que você precise sair da estrutura familiar, se mudar e descobrir o próprio caminho.

É irônico, porque para deixar a família orgulhosa você tem que se afastar ainda mais dela, sair dessa estrutura.

Sou uma acadêmica, e neste país a tendência é que a minha profissão esteja em constante mudança. E algo que você ouve das pessoas quando se mudam é o problema que elas enfrentam por ficarem longe de suas famílias.

Ao investirem em determinada profissão, com o intuito de orgulhar a família e se tornarem pessoas de sucesso, elas acabam em uma situação que dificulta o convívio com a própria família.

Esse é o final infeliz das expectativas que temos.

BBC – Quando visito Porto Rico, embora seja perto de Miami, onde moro, vou sempre com muito pouco tempo. E me sinto muito mal se não compartilho um tempo com minha família, embora deva aceitar que às vezes me divirto mais com os amigos. Na verdade, é muito difícil para mim aceitar um pensamento como esse…

Liming – Essa também é a minha experiência. Moro em Vermont, na costa oposta de Seattle, onde minha família está e onde cresci. Vou duas vezes por ano para lá.

Mas quando vou, sinto que devo compartilhar o tempo com minha família, porque não posso vê-los constantemente, o que significa que deixo de priorizar todos os amigos que foram muito importantes para mim desde criança.

Tem sido assim a tal ponto que consigo manter muitas dessas amizades, pois não faço com que elas permaneçam na minha vida.

BBC – Quanto tempo as pessoas devem gastar conhecendo outras pessoas?

Liming – Não vou colocar um número preciso aqui. Não criarei regras sobre como “sair” para que as pessoas se avaliem como boas ou ruins nisso.

Não se trata de algo no qual você é bom ou ruim. É algo que você faz ou deixa de fazer. Você reserva tempo para que isso aconteça.

Mas acredito que é algo que deveria acontecer regularmente na vida das pessoas. Algumas pessoas deveriam fazer isso todos os dias, outras uma ou duas vezes por semana. Talvez o que for melhor de acordo com a agenda, porque temos que ser realistas quanto a isso também.

Se o “sair” acontecer regularmente, isso deixará de ser estranho. Então você não enfrenta essas expectativas enormes sobre como deveria acontecer e quão perfeito deveria ser. Essa é a única maneira de o “sair” parecer uma coisa normal, tornando-a uma atividade mais fácil de realizar.

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