Governo Bolsonaro certificou 239 mil hectares de fazendas dentro de áreas indígenas

Desde de 2020, mais de 400 fazendas foram certificadas dentro de territórios indígenas graças a normativa da Funai. Medida foi apoiada por Nabhan Garcia

Desmatamento tem crescido no território do povo Canela, colocando a região entre as mais conflituosas do estado

Por Bruno Fonseca, Caio de Freitas Paes, Rafael Oliveira, para Agência Pública

Em 24 de abril de 2020, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, e o secretário especial de Assuntos Fundiários do governo, Nabhan Garcia, fizeram um anúncio com ares de promessa. Ruralistas dos mais influentes na gestão de Jair Bolsonaro (PL), os dois comemoravam a Instrução Normativa nº 9 (IN 09) da Funai, que permitiu certificações e registros de fazendas no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) federal, dentro de terras indígenas (TIs) ainda não homologadas.

Na prática, era o fim da “chamada lista suja do Sigef” — termo usado por Nabhan Garcia na ocasião — e um passe livre para que fazendeiros ocupem territórios indígenas em todo o país. Passados mais de dois anos desde a publicação da normativa, a Agência Pública apurou que o governo Bolsonaro certificou 239 mil hectares de fazendas dentro dessas áreas — o equivalente a duas vezes o município do Rio de Janeiro, para se ter ideia.

As TIs não homologadas são aquelas que não tiveram decreto presidencial publicado — a última fase do processo de demarcação antes do registro definitivo —, e incluem territórios em estudo, declarados ou delimitados. Em mais de três anos de governo, Bolsonaro não homologou nenhum território indígena. Além disso, quando Sergio Moro (União Brasil) estava à frente do Ministério de Justiça e Segurança Pública, no qual se encontra a Funai, o governo travou 17 demarcações praticamente consumadas.

A maioria das certificações aconteceu ainda em 2020: foram 124 mil hectares certificados de mais de 240 fazendas dentro de TIs de abril até dezembro.

Os dados revelam que não se trata apenas de fazendas que cortam trechos de TIs. A maioria das propriedades certificadas — 210 — está 100% dentro desses territórios.

“Nós queremos a demarcação, nós precisamos da terra para viver”

A maior parte das TIs afetadas pela normativa da Funai se encontra no Maranhão: são mais de 138 mil hectares certificados como propriedades privadas no sistema do governo.

Mais de 20 etnias vivem nessas áreas. O povo mais afetado é o Canela, que teve 117 mil hectares de fazendas demarcadas dentro das suas terras. Eles lutam há anos pela homologação dos territórios Kanela/Memortumré e Porquinhos dos Kanela-Apãnjekra, ambas no Maranhão. Em 2020, reportagem da Pública lançada cerca de um mês após o anúncio da IN 09 já listava os Canela como os mais afetados pela normativa.

Tanto o território dos Memortumré quanto dos Apãnjekra estão parcialmente demarcados pelo governo, mas estudos que visam ampliar os limites das TI estão paralisados — é nessas áreas que a normativa da Funai permitiu certificações. Em fevereiro deste ano, decisão liminar do Judiciário maranhense determinou a suspensão da IN 09 no estado. Passados cinco meses, porém, as terras certificadas na esteira da normativa seguem ativas.

O Mapa dos Conflitos mostra que a região onde ficam as TIs está entre as mais conflituosas do estado nos últimos anos, situação vivenciada pelo indígena Paulo Thugran Canela, do povo Apãnjekra. Ele afirma que os ataques pioraram na região nos últimos tempos.

“A fumaça [de incêndios] está entrando cada vez mais na terra indígena, tem muita criança com tosse, bodeação [mal-estar] por causa disso. O desmatamento está crescendo demais, caçadores entrando, madeireiros entrando. Antigamente, a terra era bem protegida e respeitada. Isso preocupa a gente”, afirma Thugran Canela, que atua como professor no território.

Segundo Carloman Koganon Canela, liderança da TI Kanela/Memortumré, as invasões de fazendeiros, caçadores e madeireiros são frequentes. Os indígenas sofrem também com a passagem de uma estrada irregular no meio de aldeia, que já resultou em mortes por atropelamento na área.

“A gente não quer conflito, a gente quer viver tradicionalmente no nosso território. É preocupante para a comunidade o que está ocorrendo. Nós queremos a demarcação, nós precisamos da terra para viver”, afirma Koganon Canela.

No final de junho deste ano, Carloman e outros indígenas de sua aldeia entregaram manifestação ao juízo da 3ª Vara Federal Cível do Maranhão, demandando a sustentação da anulação da instrução normativa da Funai. No documento, eles destacam a grande quantidade de certificações feitas sobre seu território e apontam que a destruição causada pelo uso de agrotóxicos na região tem afugentado caças e prejudicado seu modo de vida tradicional.

Depois dos Canela, os mais impactados pela IN 09 são os Guarani-Kaiowá, que vivem no Mato Grosso do Sul. Mais de 26 mil hectares de seis TIs ocupadas pelo povo no estado foram perdidos para fazendas privadas nos registros do governo.

Certificação a jato

Ao todo, 415 fazendas tiveram trechos certificados dentro de TIs não homologadas. Entre eles, há casos de verdadeiros latifúndios, como a fazenda Boa Esperança II — a terceira maior propriedade beneficiada pela medida.

Graças à normativa da Funai, em 25 de janeiro de 2021 o governo Bolsonaro reconheceu essa fazenda de quase 10,5 mil hectares inteiramente dentro da TI Porquinhos, dos Canela. O reconhecimento se deu quase automaticamente, no mesmo dia da submissão do pedido no Sigef.

O governo arrasta a regularização do território há mais de 20 anos. Já as prefeituras dos municípios de Barra do Corda, Fernando Falcão, Formosa da Serra Negra e Mirador — por onde se espalha a TI Porquinhos — contestam a demarcação na Justiça desde 2010. A TI fica em meio à frente de expansão da soja no país, no chamado Matopiba, uma área de Cerrado maior que França e Inglaterra somadas.

Segundo o Sigef, o ruralista Geraldo Verschoor seria o único responsável pela fazenda Boa Esperança II, situada oficialmente no município de Fernando Falcão (MA). Mas bases de dados mais antigas do Incra consultadas pela Pública apresentam mais proprietários; entre eles, parte dos herdeiros da antiga Batavo, gigante do ramo de laticínios criada há mais de um século no Paraná.

Um processo que corre na Vara Agrária do Tribunal de Justiça do Maranhão fortalece a suspeita em torno da posse da fazenda Boa Esperança II.

Além de Verschoor, outras 17 pessoas surgem como réus nesta ação, todas ligadas à propriedade. Parte delas se reveza nos cargos de comando de uma das “cooperativas agrícolas mais ricas do Paraná”, a Frísia, criada e gerida pelos herdeiros da antiga Batavo.

Um dos réus nesse mesmo processo é Renato João de Castro Greidanus, ex-presidente da Batavo e um dos responsáveis pela cooperativa Frísia junto à Receita Federal atualmente.

A lista completa dos réus inclui ainda o arrozeiro holandês Auke Dijkstra e o deputado estadual Plauto Miró Guimarães Filho (União Brasil-PR), um bolsonarista de primeira hora nas eleições de 2018. Auke Dijkstra, Plauto Miró Guimarães Filho e Renato João de Castro Greidanus não constam como responsáveis pela Boa Esperança II no atual sistema de gestão fundiária do governo, mas estão listados como proprietários do imóvel no Sistema Nacional de Cadastro Rural, antiga base de dados fundiários autodeclarados do governo, gerido pelo Incra.

A Pública buscou os citados acima, perguntando-lhes sobre sua relação com a fazenda em solo Kanela, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem. O texto será atualizado, caso se manifestem.

MPF conseguiu suspender certificações em 13 estados
Logo após a publicação da instrução normativa, membros do Ministério Público Federal (MPF) em várias partes do país começaram a se mobilizar contra a medida.

Para o procurador Ricardo Pael (MPF-MT), o primeiro a mover uma ação civil pública para derrubar a IN 09, esta parte de “uma visão restritiva dos direitos territoriais indígenas no que diz respeito a sua natureza originária”.

“[A medida] é uma claríssima opção da Funai pela defesa, pela priorização dos direitos dos não índios, em detrimento dos indígenas. Se fosse um sindicato rural utilizando as mesmas teses, estaria perfeito, porque é uma defesa do direito de propriedade dos proprietários rurais. Não é algo que se imagine ler ou ouvir de uma entidade de defesa dos direitos dos indígenas”, aponta Pael.

Até a publicação desta reportagem, foram movidas ao menos 29 ações judiciais em 15 estados do Brasil contra a IN 09.

Entre sentenças e decisões liminares, a medida foi derrubada em 13 estados, incluindo sete da Amazônia Legal: Acre, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Roraima.

Além destes, o Judiciário tomou decisões favoráveis ao pleito também no Rio Grande do Sul, Bahia, Santa Catarina, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Em alguns estados, as ações têm efeitos em apenas algumas comarcas — é o caso de decisões em Passo Fundo (RS) e em Janaúba (MG), que afetaram apenas os municípios abarcados pelas comarcas em questão.

A despeito das vitórias judiciais suspendendo a medida, a normativa provocou efeitos práticos nos territórios indígenas, segundo o procurador do MPF.

“Houve um acréscimo significativo das invasões às terras indígenas, e esse foi um dano mais palpável e mais imediato aos povos indígenas. Acabou sendo um grande incentivo para invasões e para o aumento da exploração ilegal, tanto madeireira quanto garimpeira”, explica.

De acordo com Pael, invasores de terra no Mato Grosso chegaram a justificar a ação ilegal em território indígena com base na instrução da Funai.

Para Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a instrução normativa da Funai está dentro de um “conjunto de ações do governo federal que insufla garimpeiros, fazendeiros, madeireiros e outros invasores”.

Entre outras medidas, Modesto cita a IN 01/2021, da Funai e Ibama, que autorizou “parcerias” entre indígenas e não indígenas, e a Resolução 04/2021, que restringia a autodeclaração indígena e foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Outras ações da Funai seguiram na mesma linha, como a substituição de antropólogos em processos demarcatórios e a não realização de atividades de proteção nas TIs não homologadas — essa, igualmente derrubada pelo STF.

 

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