De Menem a Milei: analistas apontam que novo governo argentino pode repetir medidas que fracassaram

Foto: Alejandro Querol/AP Photo

Por Davi Carlos Acácio, Rádio Sputnik.

Eleito novo presidente da Argentina no último domingo (19), Javier Milei traz consigo uma série de dúvidas e expectativas em relação ao seu governo. Será o futuro líder capaz de colocar todas as suas promessas em prática? Seus planos serão suficientes para guiar o país no caminho da prosperidade?

Na edição da última terça-feira (21) do Mundioka, podcast diário da Sputnik Brasil, os jornalistas Marcelo Castilho e Melina Saad conversaram com especialistas sobre o que é possível esperar do “amanhã argentino” com a mudança, em tese, radical de governo e uma grave crise econômica que parece não ter fim.

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Um dos principais pontos debatidos durante o período eleitoral — e de forma exaustiva — foi a economia. A Argentina atualmente enfrenta uma inflação de mais de 140%. Privatizações e a dolarização da economia estiveram na ordem do dia de Javier Milei durante toda a campanha quando o assunto era a resolução do problema econômico do país. A postura, no entanto, não é uma grande novidade para os argentinos, conforme explica o professor de economia e relações internacionais do Ibmec Alexandre Pires.
A Argentina já viveu isso, quando ela teve a caixa de conversão, que era um peso para um dólar, durante o governo [do ex-presidente Carlos] Menem“, comenta o especialista sobre o processo que ele chama de homogeneização da economia, o grande desafio argentino sob a perspectiva da dolarização.
Pedro Costa Júnior, professor de relações internacionais e economia das Faculdades de Campinas (Facamp), relembra que essa tentativa desencadeou a financeirização brutal da economia, que resultou no “corralito”, em 2001.
Dolarizar a economia agora significa, conforme explica Pires, que a Argentina precisa ter uma quantidade de dólares suficiente em sua economia, ou seja, “tem que ter uma moeda circulando para a economia conseguir fazer as transações do dia a dia. E, claro, não é o que acontece na Argentina, que tem falta de dólar”.
Por conta dessa dificuldade incipiente, Pires considera esse movimento imediato uma “aposta muito arriscada”. Além disso, o professor explica que os argentinos têm pesos nas mãos e o Banco Central do país, responsável pela política monetária, é hoje uma instituição doente, mas que precisa de cuidados, “não tacar uma bomba nele”.
As privatizações, assunto que fez parte da campanha do presidente eleito, também foram aplicadas pelo governo Menem em um passado não tão longínquo, conforme recorda Júnior.
“Os anos 90 foram o período em que os argentinos passaram por uma abertura financeira e comercial visceral, de privatizações muito fortes. Entre elas, a da petrolífera YPF, que depois viria a ser ‘reestatizada’ pelos governos Kirchner e que agora o Milei disse na sua posse que vai voltar a privatizar. Então eu estou pegando a YPF como um símbolo, um signo dessas ondas de privatização, mas a verdade é que no governo Menem a Argentina privatizou tudo, não ficou um poste na Argentina”, comenta.
A própria ditadura militar no país, entre as décadas de 1970 e 1980, já teve um caráter de promover privatizações, destacou o analista. A financeirização do capital, um dos fatores que, segundo ele, contribuem para a crise financeira argentina, promovida a rigor no governo Menem, se repetiu com mais afinco no governo de Mauricio Macri.

Milei vai ‘dizer não’ ao BRICS?

Sobre a possível desistência da adesão ao BRICS, do ponto de vista prático, Pires explica que isso seria “muito mais fácil” do que a onda de privatizações, que faria Milei passar por questões constitucionais e enfrentar o Congresso.
O aceno negativo, no entanto, pode ser mais prejudicial para a Argentina do que para os membros do grupo.
Para mencionar a proporção da importância e contextualizar o cenário, o analista das Facamp ressalta alguns pontos, entre eles: os membros do BRICS estendido têm uma economia maior que a do G7; com a entrada de Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes, o grupo passa a ser o maior produtor de petróleo do mundo; e há hoje uma verdadeira fila de países interessados em integrar o BRICS.

“A Argentina tem um movimento privilegiado hoje, que é essa possibilidade de entrar no BRICS, receber investimentos chineses, investimentos indianos. A Índia hoje é a economia que mais cresce no mundo, a China é a segunda maior economia do mundo, vai se tornar a maior economia do mundo, já é a maior em paridade, per capita, em poder de compra, e vai se tornar a maior economia do mundo, mais ou menos, em 2030”, argumenta o especialista, citando exemplos do que os argentinos podem perder caso o novo governo vire as costas para o BRICS.

Se a postura de recusa parece irredutível por parte do presidente eleito e o discurso inclusive foi endossado pela potencial ministra das Relações Exteriores do governo Milei, Diana Mondino, por outro lado Pires relembra que figuras “que têm ideias muito fortes” costumam aproveitar esses espaços internacionais como palcos para propagarem suas ideias.
“Eu não sei se ele abriria mão de participar de um fórum desse e dizer o que ele veio dizendo ao longo da campanha ou ao longo da sua recente carreira política. Ou seja, é capaz de se tornar um afã terrível, uma figura endiabrada dentro desses eventos e dizer o que tem que dizer, causar, criar um incômodo e aparecer como o leão que ele se coloca para a Argentina.”

O futuro das relações entre a Argentina e outros países

Em entrevistas, o escolhido para assumir o assento na Casa Rosada no dia 10 de dezembro chegou a dizer que só faria negócios com os Estados Unidos, Israel e a Europa, mas capitulou, afirmando que quem mandaria seria o mercado.
“O Milei modulou um pouco essa fala durante a campanha, dizendo que os negócios privados poderiam fazer transações com qualquer país, mas do ponto de vista do Estado, o Estado não procuraria estreitar laços com a China e mesmo com o Brasil sob o atual governo. Essa proposta não é viável porque os negócios privados, as empresas, como em quaisquer países com que elas negociam, elas dependem de portarias, de acordos, de autorizações, de regimes de cooperação, de acordos de padrões, enfim, várias normas públicas que passam por tratados“, explicou Pires sobre a funcionalidade dos acordos comerciais e até qual ponto a interferência pode ir.
Caso opte por não aderir ao BRICS, o professor comenta que o presidente pode considerar rever a discussão e sinalizar ainda a manutenção ou até mesmo a aproximação de China, Brasil e Rússia. “Nós temos que lembrar que o caixa está baixo e não pode virar as costas para ninguém.”
Júnior salienta, por sua vez, que China e Brasil, dois membros do BRICS, são os principais parceiros comerciais da Argentina. Além disso, ainda em relação ao grupo, ele sublinha que caso o movimento de não adesão, que ele considera contraintuitivo, aconteça, o país “faz um movimento contrário aos interesses nacionais e àquilo que pode ser uma tábua de salvação para sua economia”.
Além dos impactos a nível comercial e econômico, “politicamente e diplomaticamente os custos também podem ser altos”, opina o analista.

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