Cinema e testemunho das ocupações de 2015

Por Silvia Beatriz Adoue.

Dois anos após a ocupação de mais de duzentas escolas de ensino médio contra a então chamada “reorganização escolar” em São Paulo, que teria como consequência imediata o fechamento de 94 escolas, a militarização das escolas em Goiás e a precarização do ensino médio em vários estados, Lente Viva, Encouraçado e Complô lançam o documentário Escolas em luta, sobre as ocupações em São Paulo. O foco acompanha mais de perto a experiência da E.E. Maria José, cujos estudantes chamam carinhosamente “Mazê”.

Dois anos depois do grande movimento que fez recuar o governador de São Paulo, a reforma do ensino médio foi aprovada para toda a União. A “reorganização escolar” proposta no estado de São Paulo em 2015 era apenas um fragmento do projeto maior dessa reforma que permite a “privatização fatiada” do sistema educacional médio. Articulada com as outras (contra)reformas, a do ensino médio também visa a formação de força de trabalho flexível. Quando escrevo esta resenha, o governo do estado de São Paulo anuncia que abrirá uma concorrência para projetos de gestão de 61 escolas (FRAGA, 2017). A teoria da “escolha pública” (PEREIRA, 1997) é a que fundamenta essa privatização “por fatias”, não apenas da educação, mas de todos os serviços públicos.

Há dois documentários sobre o combate dos secundaristas em 2015: Acabou a paz, isso aqui vai virar o Chile, de Carlos Pronzato, e Lute como uma menina, de Beatriz Alonso e Flávio Colombini. Também temos a exaustiva reportagem de investigação Escolas em luta, de Antonia Campos, Jonas Medeiros e Marcio Ribeiro. Estas obras são de 2016.

Está sendo lançado agora o documentário Escolas em luta, de Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques e Tiago Tambelli. Revisitar o cotidiano daquela epopeia secundarista, à distância, pode jogar luz sobre essa geração que ousou enfrentar aquele gesto autocrático do Estado. E também é ocasião para refletir sobre a intenção desse mesmo Estado que, feito joão-bobo, insiste por vários caminhos até emplacar o projeto maior.

A opção dos realizadores apresenta uma história contada pelos próprios protagonistas, com pouquíssimos letreiros que apenas ajudam a localizar as cenas na linha do tempo do embate entre estudantes e o governo do estado de São Paulo. A montagem inclui imagens de arquivo e várias tomadas realizadas pelos próprios estudantes, muitas delas, com seus celulares. Essa escolha tem grande poder evocador, já que os celulares eram um instrumento de comunicação e de denúncia da repressão.

O imediatismo da imagem de celular, acompanhada pelo áudio de quem percorre a escola, a rua, a manifestação, “situa” o espectador entre os jovens à maneira de um diário das jornadas. As falas nos instalam num tempo aberto, quando o desenlace da luta era incerto. Mas o documentário não recolhe apenas as expectativas com relação à reorganização e à escola que surgiria desse combate. Também apresenta uma mudança da cultura e um aprendizado ao longo da luta dos protagonistas desse “relato de formação” refletindo sobre a própria mudança.

Em janeiro de 2016, publiquei, em quente, dois artigos sobre as ocupações: A privatização fatiada da educação e a formação de uma nova geração de lutadores e Da autocracia para a autogestão. Neles propunha uma reflexão, tanto sobre a expectativa autogestionária dos estudantes como do projeto privatizador que ainda não aparecia tão claro para os protagonistas do movimento. Em outubro do mesmo ano, foi lançado o zine Privatização do ensino, de Danielle Maciel e Sabrina Durán, junto com um vídeo com o mesmo título, do coletivo EntreLinhas. Mas o debate sobre o projeto privatizador já vinha sendo feito pelo coletivo Mal-Educado, organização muito ativa no período prévio e durante as ocupações e que havia traduzido do espanhol o manual Como ocupar um colégio?, referência para os secundaristas.

O movimento tomou o governo de surpresa. Mas também foi inesperado para as organizações estudantis e da esquerda partidária. O frescor e a energia dos jovens não pôde ser capturado pelo enfrentamento na esfera política institucional marcado pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, cujo processo legal correu de 2 de dezembro de 2015 a 31 de agosto de 2017. Isto é, começou quando a rebelião secundarista estava em plena efervescência. Assim, a luta das escolas revelava uma possibilidade de lutar com independência dos polos que disputavam a máquina do Estado. Essa possibilidade acalenta os corações daqueles que observamos a luta eleitoral com justificada desconfiança.

Por essa razão, revisitar o movimento secundarista de 2015 não é tarefa irrelevante. Repassar seu programa, revisar sua dinâmica e seus limites à luz dos reacomodamentos e astúcias do Estado nos projeta para os desafios que estão pela frente.

Assistindo ao documentário, comprovamos que a expectativa autogestionária era uma aspiração bastante vaga. Partia da experiência do cotidiano das escolas ocupadas, sem repensar o sistema educacional, o papel da educação na sociedade e o curriculum. Ela aparece nas falas dos estudantes em oposição às relações autocráticas dentro da escola. O debate sobre a privatização, em troca, está ausente nas vozes dos protagonistas. O movimento estoura em resistência ao fechamento de escolas e à reorganização feita de cima para baixo pelo Estado, sem qualquer consulta à comunidade educativa.

Na dinâmica das ocupações, surge uma cultura da luta, com destaque para a liderança feminina e para o racismo, e as consequentes mudanças nas relações entre os estudantes. A possibilidade de ter voz e vez nas decisões da escola emerge da própria experiência da luta.

Dois anos depois, repressão mediante, verificamos que essas modificações pretendidas pelos estudantes não aconteceram. E a reforma do ensino médio, como abre-alas da privatização “por fatias” criou um novo marco legal regressivo. Na Argentina, uma reforma com pontos coincidentes (INFOBAE, 2017) com a brasileira provocou a retomada das ocupações e fez recuar o governo Mauricio Macri (PERFIL, 2017). No Brasil, ela foi aprovada, porém, ainda não foi aplicada. A maioria dos estudantes que participou das ocupações já terminou o curso secundário. Fora da escola, não encontraram no novo ambiente de trabalho ou estudo as condições para pôr em prática o que foi aprendido. As novas gerações guardam a lembrança daquela epopeia. Quem sabe? O registro está feito, a lembrança está viva.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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