BA: Justiça decreta que Incra finalize demarcação de comunidade quilombola

Desde 2011, território de Volta Miúda, no Extremo Sul do estado, vê seu processo de regularização fundiária paralisado; apesar de sentença favorável à ação civil pública, decisão ainda pode não ser cumprida pela autarquia federal

Por Fernanda Rosário e edição de Elias Santana Malê, para Alma Preta Jornalismo. 

Imagem de comunidade quilombola em festa no Extremo Sul da Bahia. Pessoas estão dançando.
Imagem: Reprodução/ Facebook Aprvm Volta Miúda.

Na última semana, o juiz federal Felipe Lívio Lemos Luz, da Seção Judiciária da Bahia, deu sentença favorável à ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal em defesa do direito à demarcação do território da Comunidade Quilombola de Volta Miúda, localizada no município de Caravelas, Extremo Sul da Bahia.

A intimação emitida pelo juiz chegou no dia 20 de julho aos envolvidos no processo da ação civil pública, que cobra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a União para acelerar a delimitação e a demarcação territorial da comunidade quilombola. O processo está paralisado desde 2011, ainda em suas etapas iniciais.

Com a sentença favorável, o governo e a autarquia federal são obrigados à elaboração e conclusão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), inclusive com os estudos antropológicos necessários e sua publicação na imprensa oficial, no prazo de 180 dias. Além disso, o Incra fica obrigado a concluir todo o processo de regularização fundiária da comunidade quilombola no prazo máximo de 1 ano.

“É importantíssimo [o significado dessa conquista], tendo em vista que há um reconhecimento do próprio Poder Judiciário de que o estado brasileiro está em mora com essa comunidade quilombola – e com as comunidades quilombolas como um todo – e que há um atraso evidente nos processos de demarcação e titulação das terras. Então é mais um reconhecimento”, pontua o defensor regional de Direitos Humanos Vladimir Correia, que trabalha junto aos procuradores do Ministério Público com a comunidade quilombola.

Ilhados pelo monocultivo de eucalipto

Como já pontuado em matérias anteriores da Alma Preta Jornalismo, o território quilombola de Volta Miúda é uma das comunidades do Extremo Sul da Bahia que foi cercada pelo monocultivo de eucalipto por conta do avanço de empresas de celulose.

A comunidade é impactada à medida em que há uma degradação socioambiental da região, gerando prejuízos como águas contaminadas, córregos que deixaram de existir e dificuldades para quilombolas permanecerem com suas tradições ancestrais junto à natureza do território. Além disso, outros problemas, como falta de acesso à internet por conta de interferências causadas pelas florestas de eucalipto, são observados.

Em março deste ano, houve uma audiência pública inédita marcada pelo Ministério Público Federal da Bahia e da Defensoria Pública da União para que as comunidades quilombolas do Extremo Sul da Bahia pudessem apontar todos os problemas desencadeados pelo avanço da monocultura do eucalipto. Entre os problemas, estão o desemprego, o êxodo rural, a contaminação da água e do solo e a redução dos biomas nativos.

Florestas de eucaliptoMonocultivo de eucalipto da região cerca comunidades quilombolas | Crédito: Amanda Oliveira/GOVBA

A comunidade de Volta Miúda teve seu certificado de autorreconhecimento emitido pela Fundação Cultural Palmares em 2005 e o processo para a regularização do território começou a tramitar no Incra em 2011. Entretanto, a etapa ficou desde então paralisado sem a conclusão do relatório antropológico, um dos primeiros estudos que compõem o RTID, sem um prazo definido de conclusão do procedimento.

“Cabe sublinhar que a ausência de conclusão do processo em razoável duração, implica em deficiente proteção da trajetória histórica e ancestralidade da comunidade, agravando os conflitos fundiários presentes no Sul da Bahia, o que acarreta fragilização dos descendentes e perda progressiva da identidade cultural com o passar do tempo”, destaca trecho da sentença.

No processo da ação civil pública, o Incra apresentou contestação em que alega rotinas administrativas excessivas e apresenta impossibilidade material por estarem trabalhando com toda a capacidade operacional e financeira disponível. Já a União, apresentou contestação declarando não ter responsabilidade sobre a demora da regularização fundiária quilombola.

A sentença do juiz federal vai contra às contestação ao dizer que “conquanto o Incra seja autarquia federal dotada de personalidade jurídica própria, o referido procedimento de regularização fundiária envolve efetiva atuação conjunta de órgãos da Administração Direta, como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial da Presidência da República e diversos Ministérios que participam da relação jurídica e possuem incumbência de promover a regularização fundiária”.

Célio Leocádio, presidente da Associação Quilombola de Volta Miúda (APRVM), destaca que, após a sentença favorável à ação civil pública, houve uma movimentação entre outras comunidades quilombolas do Extremo Sul da Bahia. Todas lutam pelo direito de verem suas terras demarcadas e viram a possibilidade de buscar caminhos por meio de uma ação civil pública.

A liderança quilombola também destaca a importância de atores comprometidos com a demanda quilombola como essencial para a conquista, como os procuradores do Ministério Público Federal – André Luis Castro Caselli, Luiz Pablo Paciornik Schulman e José Gladston Viana Correia – e a Defensoria Pública da União.

“A gente tem que propiciar os acessos que a gente está tendo para que as outras comunidades também desfrutem daquilo que lá na frente podemos vivenciar. Pode ser que, através da nossa comunidade, aconteça do Incra fazer o processo de todos”, comenta Célio, que também destaca que a questão da incerteza sobre o futuro da regularização de Volta Miúda vai existir enquanto não chegar o fim de toda a regularização.

Apesar da conquista, a defesa dos direitos quilombolas continua necessária

O defensor regional de Direitos Humanos Vladimir Correia explica que, a partir da intimação ocorrida em 20 de julho, o prazo para o cumprimento das obrigações já começou a correr para o Incra. Entretanto, a autarquia ainda pode entrar com recursos de apelação em até 30 dias úteis.

Audiência Pública Extremo SulAudiência pública realizada com comunidades do Extremo Sul da Bahia | Crédito: Reprodução/Facebook Aprvm Volta Miúda

“Ele ainda pode recorrer, mas o juiz na sentença deu a liminar, antecipou os efeitos da decisão, então mesmo que ele recorra, o prazo está correndo. A não ser que ele consiga suspender isso no tribunal”, pontua o defensor público.

Entretanto, Vladimir Correia ressalta que, apesar da decisão judicial, o Incra ainda pode descumprir os prazos estabelecidos na sentença. “Essa decisão é muito representativa, mas, na prática, ainda falta uma luta muito grande, porque o que a gente tem visto é o Incra desrespeitar decisões como essa”, relata.

Segundo o defensor público, não tem acontecido muita coisa em casos em que o Incra descumpre medidas sentenciadas. Juízes tentam adotar alguns procedimentos para evitar, mas não surtem efeito.

“Podem impor algumas medidas para tentar forçar o cumprimento como o pagamento de multa e outras coisas, mas na prática a gente tem visto que, infelizmente, pelo menos aqui na Bahia onde eu atuo, – mas também é uma realidade do Brasil – na prática, a justiça determina, o Incra não cumpre e nada tem acontecido. A alegação é que o órgão não tem profissionais e estrutura para fazer esses processos”, explica Correia.

O cenário de insuficiência de recursos materiais para processos de regularização fundiária por parte do Incra faz parte de um cenário de desmonte da autarquia observado, sobretudo, nos últimos três anos, com baixos valores dedicados à titulação, o que paralisa o processo.

“Posso te garantir que nós precisamos de melhorias, que esse processo de regularização ande, porque a gente já teve muitas pessoas que morreram esperando por esse sonho. Nesses quatro anos, durante esse governo atual, isso ficou parado, o processo não andou. Será que vão esperar quantas gerações irem embora para dizer que finalizou o processo?”, questiona Célio Leocádio.

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