A ressignificação do hijab: apropriação e resistência

Bayan Faroun. Foto: Agencia Anadolu

Por Gilliam Nauman Iqbal.*

Há alguns dias nos deparamos com o bombardeio nas redes sociais sobre a morte da jovem iraniana, Mahsa Amini, que teria sido abordada de forma violenta pela polícia iraniana por usar trajes e hijab de forma inadequadas. Obviamente que a notícia foi usada à exaustão como forma de endossar o discurso islamofóbico e a retórica de que mulheres muçulmanas são oprimidas. No entanto, há uma versão em circuito de que Mahsa teria sido acometida por um ataque cardíaco no momento da abordagem policial. Independente qual tenha sido a causa morte da jovem muçulmana, o que se conclui é que, mais uma vez, uma mulher morre pelas mãos do patriarcado. Ainda que a morte tenha sido causada por ataque cardíaco, o acidente foi ocasionado por uma forte tensão a que essas mulheres são submetidas a partir da apropriação de seus corpos.

Com a morte da iraniana, retoma-se a reflexão sobre o hijab como elemento de apropriação masculina para controle dos corpos femininos. Não discuto aqui a ordenação alcorânica de que a mulher deve cobrir a cabeça e vestir-se com modéstia, trago antes de tudo, de que forma a relação da mulher com sua espiritualidade, torna-se elemento de coerção e opressão em uma sociedade de domínio masculino. Passemos a refletir sobre o que nos traz o sagrado Alcorão acerca do hijab. Antes de desenvolvermos esta análise, pensemos na etimologia da palavra hijab, originada na palavra árabe “hajaba”, cujo significado é cortina. O hijab é um ato de obediência Allah e que deve ser colocado quando da maturidade espiritual da mulher muçulmana, ressalvando circunstâncias em que as mesmas se encontrem em situação de perigo ou desconforto ao portar a vestimenta. Deve-se considerar também, que no escopo da religião, Allah coloca aos seus, o livre arbítrio, o que de alguma forma, flexibiliza o uso da indumentária, considerando de extrema importância o ato da escolha feminina e, o não uso do hijab, não implica a exclusão da mulher da UMMAH (comunidade muçulmana).

Outro fator comportamental que deve ser ressaltado é o de que o hijab tem um significado além de sua materialidade. Ele comporta um código de condutas da mulher dentro da sociedade, planificando sua relação com Deus a partir de um caminho que reflete a internalização dos valores islâmicos. Após essas análises, entende-se que o ponto chave para que uma mulher realmente faça uso pleno do hijab, parte da premissa do que entendemos por uma escolha. Uma vez forçada a usar, ele perde o seu significado, já que a sua materialidade não garante por si só o objetivo de seu uso, “operamos aqui uma espécie de desessencialização do véu islâmico de modo a explorar genealogicamente os diversos sentidos (complementares e conflitantes) a ele atribuídos ao longo da história” (MÜLLER, Luiza. O Hijab é Meio: o véu como tecnologia e dispositivo biopolítico da formatação dos corpos).

Muito embora a religião islâmica em essência, garanta às mulheres direitos e emancipação dentro de uma interpretação fora do olhar ocidental e de uma caixa liberal, o sistema patriarcal tem seus tentáculos estendidos em todas as culturas e sistemas sociais e sempre tenta instrumentalizar elementos do universo feminino como mecanismo de controle desse “bioma”. Não fugindo a esse sistema, muitos países islâmicos encontram no hijab a chave de controle social de mulheres, levando-as ao uso compulsório, tirando-lhes totalmente a possibilidade de amadurecer o uso mediante uma reflexão de sua espiritualidade, tornando quase palpável as relações de poder no patriarcado dentro do escopo social islâmico.

A mulher muçulmana, asiática ou ocidental, tem o seu corpo ocupado pelo espectro político, dominador, ora imperialista ocidental, ora pela manutenção da hegemonia masculina no Oriente.

Se por um lado, as reações à morte de Mahsa Amine levaram várias mulheres a queimar o hijab pela opressão de um uso compulsório e que provoca toda a perda do sentido de assim o vestir, por outro, temos mulheres lutando pelo direito de usar o hijab em países como Índia, Dinamarca e França. É no âmbito das lutas por seus direitos de escolha e de autonomia de seus corpos, que o hijab vai se ressignificando. De símbolo da conexão da mulher com Allah, passando por símbolo identitário, à ter seu uso conectado a um ato de resistência e portanto, um ato político, o khimar ou hijab é uma escolha puramente feminina e que deve ser mantido numa esfera intocável pelo homem.

Entendemos também que a ressignificação do hijab não passa apenas pelas compreensões expressadas nas trajetórias femininas, mas ele é ressignificado pelo domínio masculino também. Fazendo parte das expressões corporais da mulher, reconfigurando os corpos e as identidades femininas de muçulmanas, ele se torna instrumento biopolítico nas mãos do patriarcado. É nessa trilha que os nossos corpos servem de domicílios a muitos sentidos. Os corpo femininos, nesse processo, são abrigo de lutas, relações de poder, e produtores de resistência.

O hijab como extensão desse corpo muçulmano, carrega em sua materialidade, nas tramas de seus fio, uma carga de simbologia, de histórias, culturas, espiritualidade, elemento diacrítico, alvo do julgamento colonizador –cristão e elemento de apropriações indevidas, o que o torna agente de infinitas resistências.

*Gilliam Nauman Iqbal* é formada em História pela Universidade Estadual do Maranhão, especialista em Sociologia das Interpretações do Maranhão: povos e comunidades tradicionais, Jornalista Progressista, Presidente do Instituto Estudos e Solidariedade para Palestina RAZAN AL NAJJAR, muçulmana e feminista.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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