Uma resposta dos judeus progressistas à definição de antissemitismo da IHRA

Protesto contra a facciosa definição sobre antissemitismo da Aliança Internacional de Memória do Holocausto, em Londres, Reino Unido, 4 de setembro de 2018. Foto: Jack Taylor/Getty Images

Por Bruno Huberman e Yuri Haasz.

Nos últimos meses, tem crescido o debate a respeito da definição internacional de antissemitismo desde que a International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) elaborou uma definição que equipara antissemitismo a críticas a Israel. A definição da IHRA tem tido grande aceitação por parte de organizações governamentais e não governamentais ocidentais, o que muitos críticos têm apontado como uma forma de silenciamento das críticas a Israel a partir das acusações de antissemitismo.

Em resposta, um grupo de judeus escreveu recentemente a Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo (JDA) com o objetivo de mostrar as diferenças entre antissemitismo e a livre expressão de opiniões divergentes do governo de Israel e de posicionamentos jurídicos críticos a violações que Israel comete contra direitos humanos e o direito internacional. A Declaração de Jerusalém tem o objetivo de prover uma alternativa àquelas instituições governamentais e não-governamentais interessadas em adotar uma definição de antissemitismo.

De forma a contribuir ao debate, movimentos de judeus progressistas que partilham a crítica ao Estado de Israel e a solidariedade aos palestinos, como o Jewish Voice for Peace, dos EUA, o Independent Jewish Voices, do Canadá, e o Boycott from Within, formado por cidadãos judeus de Israel, elaboraram uma declaração de “Princípios Para Desmantelar o Antissemitismo”.

O objetivo desta declaração é evitar uma definição fechada e estanque de antissemitismo que determine o que se pode falar ou não em relação aos judeus. O antissemitismo é, assim como as demais formas de racismo existentes, relacional e se reproduz de diferentes formas de acordo com os seus contextos sociespaciais em distintos períodos da história.

O racismo anti-judeu é produto da modernidade capitalista em registro semelhante ao racismo anti-negro e de outras formas de racismo. Como afirma o martinicano Frantz Fanon em “Pele Negra, Máscaras Brancas”:

“O judeu e eu: não satisfeito em me racializar, por um acaso feliz eu me humanizava. Unia-me ao judeu, meu irmão de infortúnio. Uma vergonha! À primeira vista, pode parecer surpreendente que a atitude do antissemita se assemelhe à do negrófobo. Foi meu professor de filosofia, de origem antilhana, quem um dia me chamou a atenção: ‘Quando você ouvir falar mal dos judeus, preste bem atenção, estão falando de você’. E eu pensei que ele tinha universalmente razão, querendo com isso dizer que eu era responsável, de corpo e alma, pela sorte reservada a meu irmão. Depois compreendi que ele quis simplesmente dizer: um antissemita é seguramente um negrófobo.”

Dessa forma, a declaração dos judeus progressistas busca se afastar de uma definição que iniba a agência dos palestinos e seus aliados na defesa de seus direitos humanos e o direito internacional. Os cinco princípios da declaração buscam aproximar o combate ao antissemitismo das demais lutas antirracistas e antifascistas ao redor do mundo. Somente dessa forma entedem ser possível desmantelar antissemitismo.

No site do JVP, é possível encontrar as versões da declaração em inglês, holandês, francês, alemão, hebraico e português, além da lista de organizações que a assinam. Abaixo, a declaração traduzida ao português, por Bruno Huberman e Iara Haasz

Princípios para desmantelar o antissemitismo

Uma Resposta Judaica Progressiva à Declaração de Jerusalém

Acreditamos em um mundo onde todos estejamos seguros e amados – um mundo sem racismo, sem antissemitismo e sem islamofobia. À medida que governos e partidos políticos fascistas, racistas e autoritários acumulam cada vez mais poder em todo o mundo, estamos mais comprometidos do que nunca com o trabalho de construir um mundo onde a justiça, a igualdade e a dignidade sejam concedidas a todas as pessoas, sem exceção.

Escrevemos esta declaração com grande preocupação sobre as contínuas tentativas do governo israelense de evitar a responsabilização por seus abusos de direitos humanos e violações do direito internacional, lançando acusações de antissemitismo contra palestinos e aqueles que defendem os direitos dos palestinos. Isso não apenas silencia os palestinos e seus defensores, mas também coloca em risco a segurança dos judeus e a luta para desmantelar o antissemitismo.

O exemplo mais proeminente desta campanha perigosa é a tentativa de impor a falha e altamente desacreditada definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) a governos, instituições públicas, universidades e sociedade civil. A definição da IHRA não foi elaborada para proteger as comunidades judaicas da crescente intolerância e ataques racistas que enfrentamos, predominantemente por supremacistas brancos. Em vez disso, tem sido empregada em muitos países como um cassetete para suprimir ativismos e a liberdade acadêmica. Muitas organizações palestinas, israelenses, de direitos humanos e da sociedade civil de todo o mundo, bem como acadêmicos, escritores e ativistas, incluindo um dos autores originais da IHRA, condenaram o seu impacto antidemocrático e repressivo.

Nesse contexto, acolhemos a Declaração de Jerusalém sobre o Antisemitismo (JDA) como uma correção útil para a definição perigosamente falha da IHRA. Se uma instituição acredita que precisa de uma definição, a Declaração de Jerusalém é um substituto muito aprimorado para o IHRA. Elaborado e aprovado por muitos dos mais proeminentes estudiosos judeus do mundo, ele abre espaço para o debate, defende a liberdade de expressão e refuta os aspectos mais enganosos da definição da IHRA. No entanto, ao tentar remediar as afirmações mentirosas da definição da IHRA, a JDA cai na armadilha de situar Israel-Palestina no centro das conversas sobre o antissemitismo. Se os redatores exigiram esse escrutínio especial para responder plenamente à IHRA, eles deveriam ter incluído perspectivas e análises de representantes palestinos na formulação do documento, sem as quais a JDA permanece incompleta. Este foco desproporcional corre o risco de contribuir para o policiamento intenso do discurso sobre Israel-Palestina, e desviar a atenção dos perigos reais vindos de supremacistas brancos e da extrema direita que enfrentamos hoje como judeus.

Sobretudo, estamos perfeitamente cientes de que definir o antissemitismo não faz o trabalho de desmantelar o antissemitismo. Legislar uma definição estática para qualquer forma particular de intolerância enfraquece os esforços de nossa sociedade para combater a discriminação em diferentes contextos e ao longo do tempo. Em vez de tentar codificar as definições de antissemitismo, apelamos aos progressistas de todo o mundo que se comprometam a desmantelá-lo ao lado de todas as formas de opressão e intolerância. Para criar segurança e liberdade para todas as pessoas, incluindo os judeus, oferecemos estes princípios e etapas práticas:

1. Não isole o antissemitismo de outras formas de opressão.

Situe o seu trabalho para desmantelar o antissemitismo no interior da luta mais ampla contra todas as formas de racismo e opressão. O antissemitismo está embutido na supremacia branca e é parte da máquina de divisão e medo usada para nos manter isolados e vulneráveis – a mesma máquina que é usada para atingir negros e outras pessoas não brancas, populações que são muçulmanas, imigrantes, indígenas e outros. Isolar o antissemitismo ignora as ameaças centrais enfrentadas por essas comunidades sob a supremacia branca, apaga as experiências vividas de judeus negros e outros judeus não brancas, e atomiza uma luta que deve ser unida para ter sucesso. Aja com base nos princípios de que a opressão é interseccional e que a justiça é indivisível.

2. Desafie as ideologias políticas que fomentam o racismo, o ódio e o medo.

Recuse e desafie ideologias fascistas, nacionalistas brancos e de extrema direita que levam à violência assassina. Essas crenças conspiratórias e perigosas são utilizadas para dividir e semear o medo entre as comunidades e para reforçar e manter a supremacia branca. Não ceda terreno para os líderes, instituições e políticos que promovem essas ideologias e ganham poder por meio da criação de antissemitismo, racismo, islamofobia e xenofobia violentos.

3. Crie ambientes que afirmam e celebram todas as expressões culturais e religiosas.

Estabeleça políticas e práticas que ativamente abraçam, não apenas toleram, a diversidade cultural e religiosa. A hegemonia cristã branca estrutura muitas das nossas sociedades, vidas, relações e instituições. Ao enquadrar todas as comunidades que não são brancas e cristãs como o “Outro”, isso alimenta exploração, ódio e discriminação. Combata essa realidade nociva por meio da avaliação das políticas da sua comunidade e organização e também pela construção espaços afirmativos e inclusivos onde judeus, muçulmanos, sikh, hindus, budistas e todas as outras comunidades de fé possam prosperar e pertencer.

4. Promova o desmonte de todas as formas de racismo e intolerância em políticas e práticas diárias.

Estabeleça a justiça racial, a inclusão religiosa e a equidade social como pilares centrais para a elaboração de políticas e a tomada de decisão em organizações, instituições e legislações. Até que toda a nossa sociedade seja transformada ao ponto no qual racismo e antissemitismo sejam verdadeiramente erradicados, cabe a nós criar espaços enraizados no tecido social da prática cotidiana, que sejam abertos para iniciativas educacionais, currículos e contextos antirracistas. Se nós não tornarmos parte de nosas práticas cotidianas o desmonte da supremacia branca, incluindo o racismo anti-negro, antissemitismo e islamofobia, nunca alcançaremos o futuro justo que desejamos.

5. Pratique segurança por meio da solidariedade ao invés da polícia.

Resista responder à violência contra a população judaica por meio do aumento da presença policial. Aumentar o policiamento irá prejudicar alguns dos integrantes mais vulneráveis de nossas comunidades, incluindo pessoas judias não brancas. Ao invés disso, priorize estratégias, práticas e planos que construam proteção e segurança para todas as comunidades sem aumentar o poder e a presença de forças policiais cada vez mais militarizadas. A nossa história mostra que liberdade e segurança para qualquer um de nós depende da liberdade e segurança de todos nós.

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