O tripé da política indigenista do governo Bolsonaro: razões para acreditar em um projeto genocida. Por Roberto Liebgott.

 

Retirada de madeira ilegal na Terra Indígena Karipuna, registrada em 2019. Foto: Chico Bata/Todos os Olhos na Amazônia.

Por Roberto Antônio Liebgott, para Desacato. info.

A Constituição Federal do Brasil assegura, em seus artigos 231 e 232, os direitos fundamentais dos povos indígenas, sendo recepcionados internacionalmente pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Apesar disso, o governo brasileiro desconsidera todas as regras, normas, convenções e projeta, para o país, uma política que visa, em essência, aniquilar com as possibilidades de vida e futuro dos povos indígenas dentro de seus territórios.

Diante da perspectiva genocida, é necessário relembrar as prerrogativas fundamentais asseguradas, em nossa Lei Maior, aos povos indígenas. Dentre essas destacam-se: a declaração do reconhecimento ao direito à demarcação e garantia (as consequentes proteção e fiscalização) de todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, caracterizando-se como originário e imprescritível, ou seja, há o reconhecimento de um direito que antecede ao processo de colonização do país e que este direito não prescreve, não se esgota ao longo do tempo e, além disso, os povos tem usufruto exclusivo das terras, como sendo inalienáveis e indisponíveis; o segundo reconhecimento constitucional, no âmbito das garantias fundamentais, estabelece que os povos poderão se organizar, se manifestar e viver de acordo com suas culturas, costumes, crenças e tradições, reconhecendo-se, portanto, o direito as diferenças étnicas; a terceira das garantias fundamentais passa pelo reconhecimento dos povos e suas comunidades como sujeitos de direitos, rompendo-se com qualquer perspectiva integracionista e tutelar dos povos, superando-se a visão de que os povos e suas lideranças, seriam relativamente capazes, portanto, desde 1988 é assegurada a plena capacidade jurídica dos povos e a eles devem ser acionados em todas as demandas jurídicas contra eles interpostas ou as que eles propõem, sem necessidade de intermediação do órgão indigenista.

A Constituição Federal também estabelece que as terras indígenas compõem o conjunto de bens da União (Art. 20, XI da CRFB) e que, portanto, ninguém mais, além dos povos indígenas poderão ocupá-las, a não ser a União, mediante consulta prévia, livre e informada. Ou seja, as terras ocupadas e demarcadas para usufruto dos povos indígenas devem ser protegidas e fiscalizadas, pelos órgãos do Estado brasileiro e, com isso, evitar o esbulho, já que elas não compõem áreas devolutas ou a serem ocupadas, transferidas, griladas e devastadas por terceiros.

Os direitos indígenas, apesar de sua nitidez, sofrem ataques sistemáticos. Muitos deles são oriundos dos próprios governantes, daqueles que deveriam atuar no sentido de implementá-los ou fazer com que todos os respeitassem. Lamentavelmente vive-se no Brasil um dos períodos mais sombrios e emblemáticos, quanto a garantia desses direitos, uma vez que o presidente da República atua como proponente das invasões às terras indígenas, estimulando o desmatamento, garimpagem, loteamento e grilagem. Ele, de forma expressa, age contra os interesses da própria União, os quais deveria ser o primeiro a defender, especialmente porque é seu dever a proteção dos seus bens. Ou seja, ele pratica crimes de responsabilidade e improbidade administrativa ao negar que as terras indígenas sejam patrimônio da União e, ao mesmo tempo, declarar que não demarcará nenhum centímetro de terras dos indígenas e quilombolas.

Para consolidar o intento de entregar os bens públicos aos especuladores da madeira, do garimpo, da mineração, de fazendeiros e grileiros, o presidente da República fragilizou os órgãos de proteção, fiscalização e de combate as invasões – Ibama, ICMBio – e submeteu a Funai ao controle dos ruralistas. Estes convocaram delegados da Polícia Federal, alinhados com as perspectivas predatórias dos bens públicos e com os interesses de empresários do agronegócio e da mineração para coordenar o órgão indigenista e torná-lo uma “agência reguladora de exploração das terras indígenas”.

A Funai, agora controlada por agentes externos ao indigenismo, toma como uma de suas primeiras prioridades o desmantelamento da estrutura fundiária que desenvolvia os procedimentos demarcatórios; uma segunda inciativa foi no sentido de suspender todas as demarcações de terras que estavam em andamento e, concomitante, rever procedimentos concluídos, muitos deles já com as portarias declaratórias emitidas – uma das etapas finais do procedimento de demarcação; a terceira prioridade foi no sentido de retirar/excluir a Funai de processos judiciais onde era ré ou autora, tendo em vista a defesa jurídica dos interesses da União e dos povos indígenas, todos relativos a processos que questionavam as demarcações ou que requeriam sua continuidade; a quarta medida foi no sentido de abrir as portas da Funai para ouvir e atender aos interessados que desejam impor limites às demarcações e explorar as terras; a quinta medida prioritária foi a de nomear militares ou policiais para cargos de chefia nas Coordenações Regionais pelo Brasil, ou seja, eles passaram a controlar a sede nacional e começam a exercer a contenção dos indígenas, suas pressões e demandas nas regiões.

E, concomitante a toda essas ações, o governo, através da Advocacia Geral da União (AGU) e do Ministério da Justiça, articulados com militares e ruralistas, passam a reelaborar narrativas oriundas do indigenismo integracionista, da época do Serviço de Proteção ao Índio(SPI) -1910 a 1967 – onde se promoviam as remoções forçadas dos indígenas de suas terras – retirando-os de seus territórios originários – levando-os para áreas ou regiões onde criaram-se reservas para o confinamento, doutrinação, coerção, tortura e escravidão dos povos.

Essa estratégia, na época, tinha duas finalidades: “limpar” as terras – tirando os índios de seu lugar – e abrir espaços para grandes empreendimentos econômicos, construção de estradas, hidrelétricas, mineração, para a colonização de agricultores e para o latifúndio; e realizar a integração forçada dos indígenas e, por conta disso, impunham regras de chefia seguindo o modelo das estruturas militares, bem como impunham a catequese, as escolas para o ensino do português, a proibição de falar na própria língua – por isso foram levados às reservas povos que eram inimigos históricos – e impunham o trabalho braçal e, na desobediência, todos eram castigados com prisões e/ou torturas.

O governo de Jair Bolsonaro incentiva práticas genocidas na política indigenista e se fundamentam num tripé: o primeiro pé, o da desconstitucionalização dos direitos que asseguram a demarcação das terras; o segundo pé, da desterritorialização e, neste sentido, as medidas adotadas pela Funai seguem exatamente a lógica de não demarcar mais nenhuma terra e liberar aquelas demarcadas para a exploração; o terceiro pé, o da integração, com o qual o presidente da República propões como única alternativa aos povos indígenas a sua inserção no mercado, tanto é assim que declarou que “os índios precisam viver como brancos, já que estão ficando cada vez mais humanos, quase como nós”.

Ao que se percebe, há razões para se acreditar que está em curso no Brasil uma política genocida. Precisamos mobilizar as forças das políticas democráticas, jurídicas, dos povos, comunidades originárias e tradicionais, dos movimentos sociais e populares para intervir e evitar a consolidação desse projeto de morte.

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Roberto Liebgott. Foto: Ana Mendes e Pablo Albarenga/Agência Pública.

Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.

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