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I never saw a wild thing sorry for itself (Eu nunca vi uma coisa selvagem com pena de si mesma).
T.H. Lawrence
Defender o sionismo é uma tarefa inglória, mas nem por isso o estoque dos que defendem o indefensável se esgota. Sem surpresa! No passado não faltou gente para defender ideologias igualmente hediondas, que, por mais absurdo que seja, ainda desfrutam de popularidade e a contradição suprema: aparecem, em alguns casos, aliados à suas vítimas do passado.
Em um mundo que passou a cultivar o negacionismo, o terraplanismo, entre outras mazelas que pareciam enterradas no fundo da vala da história, eis que ressurge o sionismo com força total justamente nas hostes fundamentalistas, neofascistas e, pasmem, até entre os ditos “progressistas”.
Portanto, essa aliança doentia apenas reflete aquilo que o sionismo é na sua concepção: um terraplanismo histórico transformado em uma grande falácia ideológica fundamentado em uma narrativa pseudorreligiosa fraudulenta. No entanto, para se fazer justiça, mesmo quando se lida com os fora-da-lei, o banditismo sionista não conseguiria chegar aonde chegou sem cúmplices de peso.
Para tanto, o sionismo, astutamente, se apropriou de mitos criados, inicialmente, no âmbito de uma disputa sectária entre judeus e cristãos e, mitos estes, que mais tarde, deram origem a uma narrativa ressignificada, ao longo dos séculos, com o objetivo de discriminar minorias convertidas ao judaísmo e vivendo na Europa. Aliás, o sionismo traz em seu DNA o supremacismo e o excepcionalismo como argumentos para ignorar e apagar da história qualquer um que antepusesse ao seu caminho. Afinal, como dizia um dos seus parceiros de crime mais célebres, Lord Balfour, em 1917: “quem se importa com o destino de 700.000 ‘árabes’ que habitam a Palestina?”.
Pergunta retórica, milord. No Ocidente, ninguém. Lord Balfour entrou para a história como maior estelionatário do século XX, “doando” algo que tinha dono para terceiros. Certamente, receber o produto de um crime não fazia a menor diferença para os invasores sionistas disfarçados de refugiados e financiados pelos bolsos largos de seus patrocinadores de fraque e casaca ou por entidades criadas no melhor estilo do crime-organizado. Os britânicos, aliás, estavam certíssimos, como de hábito, em seus cálculos imperialistas porque, como seus sócios de empreitada, os sionistas, também nasceram e foram criados em uma “ética” e visão de mundo unifocal e hegemônica. Quem resistiria a uma empreitada capitaneada por dois “povos escolhidos”?
Dessa maneira, os palestinos que estavam saindo, como outros povos da região, de meio milênio de domínio otomano, constituíam, quando muito, em um dia de extremo bom-humor dos seus algozes, um “obstáculo” incomodo a ser removido pela máquina colonial sionista, com selo de aprovação de Sua Majestade.
O resultado desta aliança indecente é sabido por todos que ainda idealizam que os seres humanos são mais ou menos iguais e por aqueles que ainda cultivam um átomo de justiça: a engenharia maquiavélica que concretizou o que parecia impossível até pela lei mais rudimentar da física newtoniana, segundo a qual “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”.
Em tempos nos quais a existência da lei da gravidade é colocada em dúvida pelos aliados dos sionistas, é bom relembrar que a “física sionista”, como era de se esperar, tinha lá suas próprias leis: “um povo sem terra para uma terra sem povo”. Portanto, se alguém tem alguma dúvida do supremacismo sionista, lembremos que os 700.000 homens, mulheres e crianças, que habitavam a Palestina desde a chegada dos primeiros seres humanos vindos das savanas africanas, para os sionistas simplesmente não existiam.
De forma análoga, o excepcionalismo sionista se aproveitou da ideia de um “povo” judeu “sem-terra”, disperso em uma “diáspora” imaginária, elementos que nada mais eram que mitos inventados por seus rivais sectários, também conhecidos como “cristãos”. Convenhamos, uma ideia “terrivelmente” genial, pois como rebater mentiras inventadas por aqueles que a inventaram para oprimi-lo?
Séculos de preconceitos criados pelo cristianismo, sob um verniz de secularismo com bases pseudocientíficas, reforçam os velhos preconceitos e criam a finest hour do racismo europeu: a alterização dos europeus judeus, no século XVIII, que passam a ser o “outro” na figura do “semita”, ou, leia-se, a antítese do europeu na cosmologia racista que acompanha a modernidade. Certamente, os judeus europeus eram tão “semitas” quanto os ciganos romanis eram “egípcios” no imaginário da Inglaterra elizabetana do século XVI. Percebem a lógica racista europeia? O grau de alteridade máxima e, consequentemente, de indesejabilidade suprema, sempre recai em um “oriental”, seja este real ou imaginário.
Pois quando surge o sionismo judeu asquenaze, no século XIX, no rastro do sionismo cristão reformado, no século XVIII, bastava lembrar aos europeus aquilo que eles mesmos inventaram para tornar os judeus em “estrangeiros” no edifício falsamente homogêneo de uma Europa cristã e nacionalista.
Como se pode constatar, os palestinos começaram a perder suas terras longe da Palestina, bem antes dos primeiros magotes de refugiados russos judeus aportarem, no final do século XIX, na Palestina. A Palestina começa a ser roubada em meio aos labirintos identitários e crises existenciais de um Ocidente cuja genealogia racista é reinventada no século XIX. Os sionistas apenas vão imitar o modus operandi dos seus opressores para que os palestinos, de forma semelhante a tantos povos, nas América, África e Ásia, fossem “varridos” do mapa em negociatas, acordos e conspirações das potências europeias em suas buscas obsessivas por expandir seus impérios coloniais.
“Teorias da conspiração”, meu caro? Algumas, possivelmente, mas, na realidade, pouco se necessita delas. Elas são necessárias apenas para os fanáticos, entre eles os sionistas, porque depois dos acordos do sionismo com os Jovens Turcos, Sykes-Picot, Balfour, entre tantas outras velhacarias “diplomáticas”, as “teorias” se tornaram bem reais e se transformam em um assalto meticulosamente planejado e executado contra os palestinos.
Na Palestina se desenrolou um circo dos horrores que, paulatinamente, consolida um projeto colonial, única e exclusivamente ao sabor dos acontecimentos a milhares de quilômetros, na Europa. Reparem que os crimes contra a humanidade cometidos na Europa, por europeus, tendo como vítimas outros europeus, são resolvidos à custa de um povo em outro continente. Em outras palavras, a judeufobia cristã herdada pela pseudociência e o nacionalismo não serão resolvidas na Europa, mas, sim, varridas para debaixo do “tapete” palestino sob um edifício de falácias conveniente para um Ocidente, que tenta ensinar tolerância ao mundo, mas é incapaz, em seu próprio quintal, de reconhecer seu fracasso em conviver com suas minorias.
A transformação da colônia sionista em “estado” só é possível com uma operação de limpeza étnica promovida na Palestina diante de um Ocidente paralisado pela culpa e imbuído de um disfarçado espírito de “cruzada”, cuja versão no século XX, após a destruição do Império Otomano, faz dos sionistas seus proxies na arremetida final contra os “sarracenos”, sejam eles cristãos, muçulmanos ou judeus da região.
O papa Urbano II, o inventor da primeira cruzada, do Além, deve ter assistido tudo com imensa alegria, mesmo sem entender como é que aqueles que eram queimados em fogueiras na Idade Média lideravam uma “cruzada”, no século XX, em nome do Ocidente. Mutatis mutandis, “Sua Santidade”.
É inegável que os palestinos foram vítimas de um linchamento geopolítico sem paralelo, através do qual as potências mais poderosas do planeta, juntamente com estados títeres, entre eles o Brasil, mesmo divididas pela Guerra Fria, se unem para remover o “obstáculo” palestino. Sim, os sionistas mais fervorosos estão certos: o sionismo deve ser um “milagre”, porque une banqueiros e radicais socialistas, os EUA e a URSS, cristãos e ateus, senhores e escravos.
No entanto, já dizia o saudoso Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra.” E na mesma veia “nelsonrodriguiana”, Israel não é obra do “Sobrenatural de Almeida”, como eles apregoam. O sionismo “triunfa” porque é, emblematicamente, outro personagem no universo de Nelson Rodrigues: “Palhares, o Canalha”, um personagem sem escrúpulos que fazia tudo o que os hipócritas, no Ocidente, se sentiam envergonhados de assumir que desejavam, que era a conquista da “Terra Santa”.
Tufy Kairuz é historiador, professor, PhD em História pela Universidade York, no Canadá, e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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