É sobre as águas do maior arquipélago flúvio-marítimo do mundo que o direito à infância é violado e gerações de meninas crescem trocando sexo por um pouco de comida. Nos leitos dos rios que formam a Ilha de Marajó, no Pará, cenas de garotas de 5 a 14 anos pulando de canoas para entrar em balsas de transportadores de cargas tornaram-se comuns. É dentro dessas embarcações que a exploração sexual infantil acontece. Mas não somente lá. No seio de suas comunidades, crianças também são frequentemente abusadas dentro e fora de casa.
Para lutar de alguma forma contra essa realidade perversa que mata a infância marajoara, a estudante Mariana Flores Fabiano, de 18 anos, decidiu lançar uma petição online cobrando o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e o Governo do Estado do Pará a adotarem políticas públicas que combatam efetivamente o abuso sexual de crianças e adolescentes na região que abriga um dos mais importantes santuários ecológicos do país. Aberto há um mês na plataforma Change.org, o abaixo-assinado já alcançou 65 mil apoiadores.
Mariana não vive na ilha e não conhece as vítimas, mas entende que essa deve ser uma causa abraçada por toda a sociedade brasileira. “As crianças sempre serão o futuro, e o futuro depende do que fazemos no presente. Não tive contato com nenhuma vítima do Marajó, mas em meu círculo de amigas não há uma que não tenha sido abusada de alguma maneira na infância e/ou adolescência, provando que esse crime independe de lugar, cultura e classe social. O abusador não tem rosto nem nome específico, não se parece com um monstro e às vezes, sem saber, o chamamos até de ‘amigo’, ‘pai’, ou ‘tio’”, comenta a jovem estudante.
Segundo dados do Disque 100 (Disque Direitos Humanos), somente nos últimos cinco anos, foram contabilizados 895 casos de abuso e exploração sexual na região do arquipélago paraense. Já a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 452 denúncias de agressão contra a mulher. A quantidade de casos, entretanto, revela uma subnotificação na comunicação das ocorrências, visto que a quantidade real é ainda maior que os números registrados justamente porque a população não usa ou desconhece os canais de denúncia.
A polêmica fábrica de calcinhas
“Há uns 2 ou 3 anos eu venho acompanhando, por meio de algumas matérias, a situação das crianças da Ilha de Marajó. Indignada, não somente com toda a situação de descaso com a população marajoara, quanto com o desconhecimento do resto dos brasileiros a respeito disso, eu decidi criar o abaixo-assinado”, conta a estudante que mora em Curitiba (PR). Outra motivação de Mariana para lançar a petição foi se manifestar contra a forma com que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tratou do assunto.
Em julho do ano passado, ao apresentar resultados do programa “Abrace o Marajó” a ministra chegou a sugerir a instalação de uma fábrica de calcinhas na região como forma de evitar o abuso sexual das crianças. Para a autora da petição, a fala de Damares culpabiliza as vítimas e as famílias dos crimes, e isenta o Estado de suas responsabilidades.
“O que a ministra Damares Alves falou foi um desserviço imenso para essas crianças. Alguém que ocupa o cargo de ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não poderia de forma alguma compactuar com a cultura da culpabilização das vítimas de um abuso sexual. Sugerindo que os abusos acontecem por causa da vestimenta – ou falta dela”, fala Mariana.
Em uma região que tem os municípios mais pobres do país, incluindo a cidade de Melgaço, com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, a miséria faz com que até mesmo algumas famílias cedam à exploração de suas crianças em troca de um resto de alimento, alguns objetos ou óleo diesel para usar como combustível para os barcos.
Mariana enfatiza que esse descaso com as vítimas e a impunidade com os abusadores levam a situação de abuso sexual se perpetuar não somente na Ilha de Marajó, mas em outros lugares do país. Por isso, a estudante pede no abaixo-assinado que medidas eficientes de políticas públicas sejam adotadas pelo governador do Pará, Helder Barbalho. Entre as demandas estão aumento da frota de policiais nos rios, prisão dos abusadores e dos responsáveis pelas balsas e mais proteção aos conselheiros e assistentes sociais.