Trinta anos após a insurreição zapatista. Por Gustavo Veiga.

Na selva de Lacandona, no estado de Chiapas, os povos originais da nação maia disseram “basta” em 1º de janeiro de 1994, durante o governo de Carlos Salinas de Gortari

Por Gustavo Veiga.

Na Primeira Declaração da Selva Lacandona, em 1º de janeiro de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), dirigindo-se ao povo do México, proclamou: “Hoje dizemos Basta! Já se passaram 30 anos desde aquele levante durante o governo de Carlos Salinas de Gortari no estado de Chiapas, na fronteira com a Guatemala, hoje transformado no prelúdio de uma “guerra civil”, como o movimento afirmou em um comunicado em maio passado. Os motivos estruturais de sua luta não mudaram. Eles ainda estão lá, assim como os Tzeltales, Tzotziles, Choles, Tojolabales, Zoques e Mames. Todos eles fazem parte da grande civilização maia em defesa de seu habitat e das vidas que se encaixam no que eles chamam de “um mundo onde outros mundos entram”.

O processo complexo e dinâmico de sua constituição como um fenômeno insurgente é simbolizado por esses povos originais e seu líder histórico, o enigmático Subcomandante Marcos. O professor de filosofia que usava balaclava e fumava cachimbo, nascido em 1957, com uma poética que o francês Régis Debray definiu como a do “melhor escritor latino-americano, o mais livre, o mais afiado…” em 1995.

Não é coincidência o fato de o EZLN ter surgido na vida política mexicana em 1994, ano em que a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foi formalmente estabelecida em Miami por ordem dos Estados Unidos. A originalidade do movimento guerrilheiro zapatista – que foi criado em 17 de novembro de 1983 – foi que ele não se propôs a tomar o poder nem a avançar para o centro político do país na Cidade do México. Sua experiência poderia ser resumida em uma palavra: autonomia. Em Chiapas, sua própria organização ocorreu na declaração dos trinta Municípios Rebeldes Autônomos Zapatistas (MAREZ) em 1994 e, em agosto de 2003, com os Conselhos de Bom Governo (Juntas de Buen Gobierno – JBG) e os chamados Caracóis, as regiões nas quais suas comunidades estavam distribuídas.

Essa autorregulação parece uma utopia no sentido que Eduardo Galeano deu à palavra: “está no horizonte. Eu dou dois passos e ela se afasta dois passos. Não importa o quanto eu ande, nunca a alcançarei”, disse o famoso uruguaio. Mas os zapatistas, persistentes, abriram uma trilha duradoura para alcançar seu objetivo. Mesmo enfrentando enormes dificuldades e a incredulidade ou incompreensão que seus atos provocaram. Três décadas depois de sua insurreição, que durou doze dias de luta contra o exército mexicano, sua luta não terminou. Ela apenas assumiu novas formas.

Desde o seu nascimento, sua influência mundial foi tão grande que foram escritas pesquisas, ensaios, artigos e um livro que, em particular, iniciou um debate acalorado sobre o zapatismo entre os pensadores marxistas. Seu autor é o acadêmico irlandês John Holloway, e o livro se chama Mudar o Mundo sem Tomar o Poder (2002). Ele argumenta que, para alcançar a premissa de seu título, “devemos começar fazendo”. Sua experiência e estudo do EZLN baseiam-se em décadas de trabalho em campo. Ele viveu no México por mais de trinta anos.

Os zapatistas não se envolveram em luta armada desde 12 de janeiro de 1994. Depois de despertar a consciência de outros povos em todo o mundo, eles continuaram a se governar com novas formas de gestão. Às vésperas das comemorações que estão organizando para o trigésimo aniversário de seu levante, a violência voltou a cercá-los. Mas não é mais a do exército.

Ela vem dos cartéis de drogas mais poderosos do país: os cartéis de Sinaloa e Jalisco Nueva Generación, que estão lutando pelos negócios de tráfico de pessoas, armas e narcóticos nos territórios que fazem fronteira com a Guatemala. Grupos de autodefesa e paramilitares completam o cenário. O EZLN denunciou o desgoverno em Chiapas em setembro do ano passado, por meio de um comunicado: “Convocamos a Europa de baixo e a esquerda e a sexta nacional e internacional a se manifestarem em frente às embaixadas e aos consulados mexicanos e nas sedes dos governos do estado de Chiapas, para exigir que parem com as provocações. Isso é tudo. Em outra ocasião, não haverá mais comunicados, mas ações”.

Seu líder não é mais o Subcomandante Marcos. Em 2014, ele deu um passo atrás na liderança do movimento. Ele delegou o comando ao subcomandante Moisés, um membro do povo Tojolabal. O mítico guerrilheiro passou a se chamar Galeano, em homenagem a José Luis Solís, que usava esse sobrenome como pseudônimo e havia sido assassinado. Mas em outubro de 2023 ele escreveu outro comunicado – ele quase nunca deixava de ser o porta-voz ou editor poético do EZLN – no qual informava que sua patente militar havia sido rebaixada para a de capitão insurgente. Como sempre, ele terminou assinando o texto: “Das montanhas do sudeste mexicano”.

Após o levante de 1994, o nascimento da ALCA, que foi enterrada em Mar del Plata em 2005, e o assassinato do candidato presidencial do PRI, Luis Donaldo Colosio, o zapatismo alternou entre o silêncio radiofônico e aparições esporádicas de grande impacto. Em março de 1995, a Lei de Diálogo, Conciliação e Paz com Dignidade em Chiapas foi aprovada durante a presidência de Ernesto Zedillo. Em 16 de fevereiro de 1996, foram assinados os Acordos de San Andrés sobre Direitos Indígenas e Cultura.

Nos anos seguintes, o EZLN denunciou que o governo havia violado os acordos e começou a incentivar a atuação de grupos paramilitares em Chiapas, como acontece até hoje. Uma nova proposta veio da Cidade do México em 1998, mas os povos indígenas não a aceitaram. O diálogo foi interrompido e, em 2001, a chamada Marcha da Cor da Terra ou Caravana Zapatista chegou à capital. A Constituição foi reformada, mas o movimento de Chiapas não aceitou o que o Congresso aprovou. “Ele traiu os Acordos de San Andrés em geral e em particular”, denunciou.

O EZLN exigiu que o ex-presidente Vicente Fox cumprisse seus compromissos, libertasse os zapatistas presos em todos os estados mexicanos e retirasse os postos do exército federal em Chiapas, que estão em vigor desde 1994. Embora as relações com os vários presidentes, de Salinas de Gortari a Enrique Peña Nieto (2012-2018), tenham sido muitas vezes conflituosas e mutuamente suspeitas, a chegada de Andrés Manuel López Obrador ao governo significou algo mais, dado seu passado tão próximo quanto distante do EZLN.

A história desse vínculo foi cortada definitivamente com o megaprojeto do trem maia que penetra em territórios indígenas. AMLO comentou mais de uma vez que não tem problemas com o zapatismo, mas dentro do movimento nunca pensaram isso. Nem quando Marcos o liderava, nem agora que Moisés está no comando. Ambos sempre foram muito duros com o presidente, cujo mandato termina em 2024. A liderança do EZLN o chamava de “traiçoeiro”, “enganador” e “louco” porque – diziam – não se pode estar com os pobres e os ricos ao mesmo tempo. Marcos chegou a dizer sobre AMLO que ele era “o ovo da serpente” quando governava a capital do México.

López Obrador se defendeu dos ataques: “Muito antes de alguns dos líderes dessa organização chegarem a Chiapas, nós já estávamos trabalhando, eu já estava trabalhando em comunidades indígenas, eles ainda estavam estudando e nós já estávamos nas comunidades, e estamos fazendo isso há anos. E quando foi que reprimimos alguém?

Quem conhecia muito bem os protagonistas desse desentendimento era o filósofo Enrique Dussel, mexicano nacionalizado nascido em Mendoza, Argentina, que faleceu em 5 de novembro, aos 88 anos, e deixou uma vasta obra na qual se destaca seu livro Filosofía de la Liberación (Filosofia da Libertação). “Não é o zapatismo que está liderando esse processo. Tampouco é López Obrador. Isso vai acontecer lentamente. Às vezes, há uma certa competição para dizer quem é o mais verdadeiro. Não há ninguém que seja absolutamente verdadeiro na política. Existem processos. E não se trata de relativismo, mas de realismo”, explicou o ex-secretário de formação política do Morena, a força governista de AMLO, em uma entrevista há alguns anos.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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