Por Leonardo Foletto, na coluna BaixaCultura que estreia em Outras Palavras
Escrevo e acompanho as discussões, avanços e retrocessos da internet e do que se convencionou chamar de cultura digital desde 2008, quando criei o site BaixaCultura com um amigo. Já se foram 10 anos e tanto mudou nesse período que posso apontar, não apenas questões pontuais, mas todo um espírito do tempo (como dizem os alemães, zeitgeist) diferente hoje. Que pode ser resumido numa expressão que tenho usado faz alguns meses por aí: ressaca da internet. Depositamos tantas possibilidades de libertação (da informação, confrontando grandes grupos midiáticos; de liberdade de falar o que bem quiser; de criar tecnologias e mundos novos) que nos descuidamos, ou não conseguimos, prestar atenção na ascensão dos monopólios das empresas de tecnologia, na construção de bolhas de informação que confirmam pontos de vista e na cada vez mais real possibilidade da internet virar uma TV a cabo, com o já proclamado fim da neutralidade da rede. Tomamos um porre de otimismo. E agora – ou melhor, desde pelo menos 2016 – estamos na fase de ressaca, refém dos monopólios da internet, da comercialização de qualquer dado deixado na rede, das fake news chegando de todos os lados. Distopia pura.
O cerceamento da internet por empresas privadas como o Google, Facebook, Amazon e Apple é um dos elementos principais na construção desse espírito. O que resta da internet hoje se não as plataformas, softwares e dispositivos dessas empresas? Para a maioria da população brasileira e mundial, pouco. Cerca de 70% dos brasileiros acessam a rede pelo celular e, não raro, só entram em serviços como o Facebook, WhatsApp e Instagram quando conectados, todos da mesma empresa. Existem outras opções de buscadores ao Google, por exemplo (o DuckDuck é o principal deles), e de sistemas operacionais de smartphones ao Android e o IoS da Apple, mas olhe para o lado e veja quantas pessoas de fato usam estas alternativas? A internet já é hoje o que muitos de nós ativistas por uma internet livre temíamos: um grande jardim murado, onde cada vez mais quem dá as cartas do que e como acessar são grandes empresas privadas com sede nos EUA.
Lembro bem, no final de 2011, quando escrevi um relato sobre a luta pela defesa dos princípios da internet, como a neutralidade da rede, a partir da fala de Yochai Benkler na abertura do Festival Cultura Digital.br. Já naquela época o questionamento sobre o fim da neutralidade da rede e o crescimento dos grandes monopólios era assunto corrente, embora não com tanta presença quanto hoje. Na época, comecei o texto com a pergunta: “é utopia pensar em uma internet democrática e livre, sem privilégios de acesso e tráfego de dados para nenhum lado, assim como foi definido nos princípios do desenvolvimento da rede?” Partindo daí, contei um causo que presenciei em sala de aula, numa das inúmeras vezes que falei de cultura e licenças livres para alunos de comunicação, em que um aluno perguntou se manter a internet livre não seria uma utopia, ou então uma ingenuidade. Respondi, na época, que não: “A internet foi criada assim, como uma rede descentralizada e autônoma. E não estamos falando de uma utopia, mas de uma realidade; a internet, hoje, funciona deste jeito”. O aluno estava certo?
Em 2011, a luta por uma internet livre era menos ingrata que de a hoje, e eu mesmo acreditava que conseguiríamos, enquanto sociedade civil, manter a rede tal qual foi criada, ou pelo menos garantindo alguns de seus princípios básicos como a neutralidade. Passados quase sete anos, faço um mea culpa. Não sabia, ou não queria acreditar, ou não queria escrever nem falar publicamente que não acreditava, que os grandes atores transformariam a internet no que ela é hoje, um espaço fechado onde nós estamos presos em bolhas algorítmicas privadas de cujo funcionamento pouco ou nada sabemos. Só de um ano pra cá, com Trump e o Brexit, começamos a enxergar as ameaças nefastas para a política desse arranjo entre pessoas e sistemas técnicos como o Facebook. Como muitos, duvidei e não quis ver que o capitalismo se reinventa e se apropria de tudo que enxerga pela frente — inclusive uma rede que nasceu libertária como a internet.
O TED, aquele famoso formato de conferências rápidas gravadas em vídeos que se espalhou pelo mundo, teve uma última edição importante em abril de 2018, no Canadá. Duas falas manifestaram esse zeitgeist de ressaca da internet. Com a palavra Jaron Lanier, um dos criadores da ideia de realidade virtual, músico e cientista da computação. “Nós cometemos um erro em especial no início. A cultura digital nascente acreditava que tudo na internet deveria ser público, gratuito. Ao mesmo tempo, amávamos nossos empreendedores de tecnologia. Amávamos este mito nietzchiano do homem de tecnologia que transforma o universo. Como celebrar empreendedorismo se tudo é gratuito? Um modelo baseado em publicidade. Daí que o Google nasceu gratuito, o Facebook nasceu gratuito. Os anúncios no princípio eram para seu dentista local ou algo assim.
Só que os algoritmos melhoram. E o que começou como propaganda não pode mais ser chamado de propaganda. Hoje é modificação de comportamento. Não chamo mais essas coisas de redes sociais. São impérios de modificação de comportamento. Esta é uma tragédia global nascida de um gigantesco erro. E me permitam acrescentar outra camada. No behaviorismo, você oferece a uma criatura, um rato ou uma pessoa, pequenos presentes ou punições dependendo do que fazem. Nas redes, punição social e prêmios sociais ocupam esta função. Você fica todo feliz — ‘alguém gostou das minhas coisas’. Os consumidores destes impérios de modificação de comportamento recebem o retorno de tudo o que fazem, percebem o que funciona, fazem mais daquilo. E respondem mais a emoções negativas, porque estas despertam reações mais rápidas. Assim, até os mais bem-intencionados alimentam a negatividade: os paranóicos, os cínicos, os niilistas. Estas são as vozes amplificadas pelo sistema. E não dá para pagar a estas empresas para que façam o mundo melhor ou consertem a democracia pois é mais fácil destruir do que construir. Este é o dilema no qual nos encontramos. (íntegra aqui).
“O maior perigo que a democracia liberal enfrenta é que a revolução na tecnologia da informação fará com que ditaduras sejam mais eficientes do que democracias”. Essa foi a afirmação que a Folha de S.Paulo resolveu destacar na palestra do historiador israelense Yuval Noah Harari, no TED. Para prevenir a ascensão do fascismo e evitar novas ditaduras, o historiador propôs a engenheiros que encontrem maneiras de impedir que informações fiquem concentradas nas mãos de poucos e se certifiquem de que o processamento de informação distribuído seja tão eficiente quanto o centralizado. “Essa será a principal salvaguarda da democracia”, diz.
Talvez não seja novidade para você o chamado para a ação da fala de Harari. A questão é o como fazer: de quais maneiras práticas os engenheiros de computação podem tornar o processamento da informação mais descentralizado? Será que eles (ou elas) querem fazer isso? Será possível ainda enfrentar os grandes hubs de informação das redes sociais a partir de pequenas iniciativas descentralizadas? Ou devemos concentrar nossos esforços — nós e todxs aqueles que não somos engenheiros — em não permitir sermos manipulados por aqueles que controlam a informação? Trago aqui mais perguntas que respostas porque, claro está, tudo está acontecendo agora; enquanto buscamos sair da ressaca, continuamos a fazer perguntas e tatear princípios de certeza para, daqui a pouco, agir. Ou para agirmos com mais clareza, já que muitos já estão agindo mundo afora para buscar essa descentralização. No próximo texto falo um pouco deles.