Por Victor Farinelli.
O governo que mais violou os direitos humanos no Chile, desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), é o atual, do megaempresário neoliberal Sebastián Piñera. A definição é da diretora da Anistia Internacional Ana Piquer, e está respaldada por outras entidades, como a Human Rights Watch, e por números da própria entidade e do Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile (INDH).
Nesses números, se observa que a repressão da época do regime pinochetista, mais marcada por sequestros, torturas e execuções, se diferencia da dos tempos atuais por algumas características. Entre elas, a que mais se destaca, pela quantidade de casos, é a das lesões oculares como resultado a violência policial contra os manifestantes que vão às ruas.
Não há uma concordância nos números oficiais entregues por diferentes entidades. O número mais baixo (ou menos alto) é o do INDH, que registra 467 casos de lesões oculares ocasionados por ação policial violenta durante os protesto, entre outubro e fevereiro de 2019.
Entre estes ao menos 150 envolvem perda da visão de um dos olhos, mas o número ainda pode aumentar porque, em muitos casos, a profundidade dos danos e sua irreversibilidade ainda estão sendo estudados. Contudo, algumas organizações de direitos humanos já falam em números acima dos 500 afetados.
Também já houve dois casos de perda da visão dos dois olhos: o estudante de psicologia Gustavo Gatica, e a líder social Fabiola Compillay – esta segunda também teria sofrido danos cerebrais, devido à profundidade da ferida que sofreu.
Responsabilidades
Tal situação seria resultado, segundo um informe de técnicos do INDH publicado em novembro de 2019, de um protocolo dos Carabineros (polícia militarizada do Chile) de uso de armamento considerado não letal (balas de borracha ou de chumbinho) com disparos em direção à cabeça dos manifestantes.
O general Mario Rozas, comandante-chefe dos Carabineros, chegou a ser convocado duas vezes ao Congresso para explicar essa situação, e negou que tal protocolo existisse.
A quantidade de casos, no entanto, levou o Tribunal de Apelações de Santiago a aceitar uma denúncia contra ele e contra ministro do Interior e Segurança Pública, Gonzalo Blumel, por suas responsabilidades nos casos de lesões oculares contabilizados até dezembro de 2019 – quando havia pouco mais de 200 registrados pelo INDH.
Na época, a deputada Carmen Hertz, do Partido Comunista, foi uma das responsáveis por acusar Rozas e Blumel, e também questionou o presidente Sebastián Piñera, para que se fizesse responsável pelo fato.
“O general Rozas assegura que o protocolo manda disparar contra o chão, e diante disso, ou caímos no ridículo de fingir que esses mais de 200 casos de lesões oculares [naquele momento] são uma enorme coincidência, de que as balas sempre ricocheteiam e vão no rosto das pessoas, ou supor que os olhos dos manifestantes têm uma espécie de magnetismo que atrais as balas. Eu tenho duas teorias mais realistas. Ou os policiais atuam por conta própria, sem respeitar autoridade, ou o general Rozas está mentindo. Em qualquer dos dois casos, o presidente Piñera deveria demiti-lo”, comentou Hertz em entrevista à imprensa local.
Além de parlamentar, ela é uma das mais conhecidas advogadas de direitos humanos do Chile, e responsável pela primeira denúncia contra o ditador Pinochet aceita pela Justiça do país.
Profissionais da fotografia, e o caso de Nicole Kramm
Não é difícil imaginar que, em meio a um abuso dessa natureza, os fotógrafos acabam sendo um dos alvos mais atingidos. Aliás, em um dos casos que terminou com perda da visão de ambos os olhos, o do estudante de psicologia Gustavo Gatica, o ataque se deu quando ele tirava fotos de um protesto com sua câmera fotográfica, focando na repressão policial contra os manifestantes.
Muitos são os profissionais da fotografia que se solidarizaram com o estudante, e aproveitaram o caso para denunciar o que a sua categoria vêm sofrendo durante as coberturas dos atos, desde o início da revolta social no país.
Recentemente, dias antes da histórica marcha de 8 de março, em que as mulheres chilenas foram quase 3 milhões nas ruas de todo o país, um grupo de fotógrafas realizou um ato em frente ao Centro Cultural Gabriela Mistral, para reclamar pelos casos de lesões oculares contra profissionais.
No ato, o caso destacado foi o de Nicole Kramm, que sofreu um impacto de bala no seu olho esquerdo enquanto trabalhava, na noite de 1º de janeiro de 2020, perto da antiga Praça Baquedano – que hoje se chama Praça da Dignidade, rebatizada pelos movimentos sociais.
Na ocasião, além de acertá-la com a bala em seu rosto, a polícia chilena também impediu que as equipes médicas que a atenderam pudessem trata-la no local, jogando gases lacrimogêneos nas proximidades, e tampouco facilitaram o seu transporte por outros veículos, para que ela pudesse ser levada a um local onde tivesse socorro mais rápido.
Tudo isso fez com que Kramm perdesse 80% da visão do olho esquerdo. E isso em teoria, porque na prática a perda foi total, já que ela está obrigada a utilizar um tapa-olho, enquanto realiza um tratamento ocular.
“Esta é a coisa mais traumática e dolorosa que já senti na minha vida. Mesmo depois de ser atingida, os policiais continuaram atirando. A dor física foi terrível, mas o choque emocional me marcou, já que a visão é minha ferramenta de trabalho. O diagnóstico médico foi de partir o coração, disseram-me que não há operação cirúrgica nem tratamento eficaz para corrigir os danos que ficaram”, conta a fotógrafa.
Não é a primeira sequela profissional de Nicole Kramm. No dia 23 de fevereiro de 2019, ela cobriu o evento no qual o líder golpista venezuelano Juan Guaidó tentou entrar com suposta ajuda humanitária no país, e foi atropelada por um pequeno tanque, durante atentado cometido por policiais desertores da Guarda Nacional Bolivariana, que apoiavam Juan Guiadó.
“A chancelaria chilena atuou de forma nefasta, mentiu à imprensa dizendo que eu estava bem, e no fim das contas, o governo chileno acabou dando até asilo político aos policiais que me atacaram, que estão totalmente impunes, enquanto eu, um ano depois, sigo com sequelas físicas e problemas na perna”.
Edição: Leandro Melito.