Relatório da Comissão da Verdade pode favorecer revisão da lei da anistia

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Por Dario Pignotti. A mentira fundacional. No dia 31 de março, Dilma Rousseff pronunciou um discurso em memória de “todos os que morreram e desapareceram” após o golpe de Estado, o qual, lembrou, está completando 50 anos. Na noite do mesmo dia, Almino Afonso, ex-ministro do Trabalho do governo constitucional de João Goulart, disse em uma entrevista televisiva que “apesar das opiniões majoritárias a realidade é que a derrubada do presidente João Goulart ocorreu em 2 de abril de 1964 e não no dia 31 de março, como dizem os militares, nem no dia 1º de abril”. Há historiadores para os quais o movimento golpista que destituiu Jango ocorreu dia 31 de março, enquanto outros sustentam que foi no dia 1º de abril, coincidindo com o Dia da Mentira.

O fato de que até hoje o início da ditadura se preste a controvérsias deste tipo é uma anomalia brasileira, inimaginável em outros países que foram vítimas de ditaduras, como Argentina ou Chile, onde até o cidadão menos informado sabe que os golpes ocorreram em 24 de março de 1976 e em 11 de setembro de 1973, respectivamente.

O caso brasileiro é único. Consistiu em extirpar a existência da ditadura do imaginário coletivo por meio de vários dispositivos com o objetivo de garantir a impunidade mediante uma lei de autoanistia promulgada em 1979 e ratificada em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal, que a caracterizou como uma medida de “reconciliação nacional”. Ou em esconder, nos grandes meios de comunicação dominantes, informações sobre as violações de direitos humanos.

As investigações não são usuais e geralmente são publicadas somente em aniversários, como aconteceu nesta semana. O pressuposto é de que entre 1964 e 1985 o país foi governado por uma “Ditabranda”, em que não eram poucos os generais de convicções republicanas, segundo editorial publicado anos atrás pela Folha de S.Paulo. Seguindo essa mesma linha de interpretação, o Brasil teria sido o sócio minoritário, quase acidental, da Operação Condor.

A realidade se choca com essa revisão complacente. A ditadura imaginariamente moderada deixou o governo em 1985 com eleições realizadas sob a tutela das forças armadas, que nunca aceitaram se submeter ao poder civil — o qual continuam desafiando. Em 2010, membros da alta cúpula ameaçaram renunciar para demonstrar seu descontentamento com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva por um projeto que contemplava a criação da Comissão da Verdade. E há quatro meses se permitiram agir com desplante diante de Dilma, quando ficaram de braços cruzados enquanto o público a aplaudia em um ato de reparação histórica a João “Jango” Goulart.

Nem Pinochet, em seus delírios de perpetuação no poder, teria imaginado que os militares chilenos poderiam desafiar as autoridades civis como fazem (agora menos do que antes) seus colegas brasileiros que, na semana passada, evitaram emitir uma nota de repúdio ao golpe.

Alguma coisa sai do lugar

No final dos anos 60, Dilma Rousseff, codinome de guerra “Wanda”, pegou em armas contra o regime até sua captura e tortura em 1970. Deixou a prisão em 1973, retomou os estudos de economia e, anos mais tarde, a militância. Filiou-se ao PT e, em 2011, assumiu o governo e prometeu e cumpriu que seu novo combate seria pela memória e pela verdade. Sempre expressou rejeição à impunidade, mas nunca prometeu fazer justiça na primeira gestão de seu governo, que terminará em 31 de dezembro deste ano.

“Embora nós saibamos que os regimes de exceção sobrevivem sempre pela interdição da verdade, pela interdição da transparência, nós temos o direito de esperar que, sob a democracia, se mantenha a transparência, se mantenha também o aceso e a garantia da verdade e da memória e, portanto, da história”, afirmou Dilma Rousseff em 31 de março durante a cerimônia no Palácio do Planalto. “Aliás, como eu disse quando instalamos a Comissão da Verdade, a palavra ‘verdade’ na tradição ocidental nossa, que é grega, é exatamente o oposto do esquecimento e é algo tão forte que não dá guarida para o ressentimento, o ódio, nem tampouco para o perdão”.

No texto lido por Dilma, se reconhece a contribuição de dirigentes centristas que, nos anos 80, participaram da transição negociada com os generais, o que alguns jornais conservadores interpretaram como um sinal de aprovação da autoanistia, pilar da impunidade.

Como em todo discurso de Estado, existem várias leituras possíveis, entre as quais a mais correta seria a de que Rousseff está empenhada com a verdade, e que acredita em progredir em direção à Justiça com a sensibilização da opinião pública que, em 46%, rejeita a autoanistia, segundo pesquisa divulgada na semana passada.

Uma alta fonte da Comissão da Verdade disse à Carta Maior que “seguramente” o informe final, apresentado em dezembro, “recomendará a judicialização dos desaparecimentos e das torturas, que são crimes imprescritíveis, e avaliamos que este poderá ser um fator capaz de sensibilizar o Supremo Tribunal Federal”.

Traduzindo: os membros mais dilmistas da organização trabalham (segundo instruções presidenciais) com objetivo de tornar o documento um passo prévio ao início da Justiça.

Soma-se a isso a crescente pressão internacional com as demandas da Corte Interamericana de Justiça e de Anistia Internacional, que acabou de começar uma campanha pelos julgamentos.

Condor

O ex-correspondente do Washington Post no Chile nos anos 70, John Dinges, viajou a São Paulo para falar da Operação Condor e, ao tratar da participação brasileira, disse que “provavelmente foi muito mais importante do que pensávamos antes. Documentos mais recentes nos fazem pensar que aqui fizeram realmente coisas sérias. Não posso afirmar nada definitivo até estar respaldado por mais papéis”.

Dinges declarou à Carta Maior que os militares sul-americanos, inclusive os brasileiros, tiveram uma vitória militar através da Operação Condor, mas tiveram uma derrota política que começa “a ser percebida pouco a pouco”.

“No Brasil, os pactos de silêncio militares parecem continuar de pé, mas é muito difícil manter essa cumplicidade depois de muitos anos em vários países, e a Condor envolveu vários países, isto muda em alguns momentos”.

Dinges manifestou interesse em conhecer mais detalhes sobre a recente abertura de um processo por parte do promotor argentino Miguel Angel Osorio sobre a morte de João Goulart em 1976, em Corrientes, o que a família do ex-presidente atribui a um possível plano orquestrado no marco da Condor.

O especialista norte-americano considera improvável a hipótese de envenenamento, mas acredita que a Justiça argentina pode jogar luz sobre a atuação brasileira na coordenação repressiva.

“Não tenho em meu poder nenhum documento que sequer insinue isso [assassinato], mas isto não me impede de estar interessado… Se alguma coisa sobre Goulart fosse descoberta… Isso sim seria uma revelação explosiva e modificaria algumas ideias que temos até agora sobre a Condor”.

Foto: Reprodução/Carta Maior

Fonte: Carta Maior

Tradução: Daniella Cambaúva

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