Quem mandou apagar?

O registro da visita do miliciano Cristiano Girão foi apagado dos documentos oficiais da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Girão, ex-vereador cassado, visitou os antigos colegas uma semana antes de Marielle Franco ser assassinada.

Ilustração: Rodrigo Bento/Intercept Brasil

Por Flávio VM CostaCarol Castro, para The Intercept.

A CÂMARA DO RIO DE JANEIRO apagou o registro da visita do miliciano condenado Cristiano Girão, suspeito de ser um dos mandantes dos assassinatos da vereadora Marielle Franco, do Psol, e do motorista Anderson Gomes. O ex-vereador visitou a Câmara no dia 7 de março de 2018, a partir das 12h09, como o Intercept revelou à época com exclusividade. Uma semana depois, Marielle e Anderson foram executados em uma emboscada no centro do Rio.

Girão está preso desde julho de 2021, quando uma operação da Polícia Civil e o Ministério Público do Estado o deteve sob a acusação de ser o mandante das mortes de um rival e sua esposa na Gardênia Azul, na zona oeste da capital. O ex-vereador é indicado como chefe da milícia na comunidade. A investigação aponta que o autor do duplo homicídio é o ex-PM Ronnie Lessa. Por sua vez, Lessa é acusado de ser o assassino de Marielle e Anderson.

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A Ouvidoria da Câmara do Rio enviou a Flávio VM Costa, um dos jornalistas que assina esta reportagem, um arquivo com o registro dos visitantes entre novembro de 2017 e março de 2018. O pedido foi feito com base na Lei de Acesso à Informação.

O arquivo enviado ao jornalista, no entanto, omite o registro de visita de Cristiano Girão, que contém os dados de entrada e a foto do miliciano e que foi divulgado na reportagem do Intercept um dia depois do assassinato. O próprio Girão confirmou que esteve no local naquela data.

O Intercept verificou a lista de visitas à Câmara do Rio e constatou o apagamento do registro da entrada de Cristiano Girão, no dia 7 de março de 2018, às 12h09.

Procuramos a Câmara do Rio pedindo explicações. Um assessor verificou os documentos enviados e confirmou a ausência de Girão na lista. “A gente localizou a resposta que foi pra vcs na época, que realmente não tem o registro. Vamos checar o que ocorreu”.

Insistimos por uma resposta oficial. Por e-mail, a nota enviada afirma que “os registros que a Câmara possui atualmente são os mesmos enviados ao veículo na última consulta. Houve uma mudança de sistemas e a Casa não tem mais acesso ao registro de entradas que funcionou até 2019”.

A resposta confirma que o registro da visita de Girão foi apagado, mas não explica como e por qual motivo isso aconteceu. “A atual gestão está buscando, junto ao seu setor de informática, uma solução para recuperar e acessar o banco de dados anterior a 2019”.

Nós voltamos a pedir uma explicação. E a Câmara do Rio não explicou novamente. “A Câmara não tem mais acesso aos dados do sistema anteriores à junho de 2019, por isso não é possível confirmar o que teria ocorrido com a informação citada”.

Na época do pedido, o ouvidor da Câmara, responsável por atender aos pedidos de informações, era André Luiz Monteiro Rodrigues. Em 2021, com a troca de legislatura, o cargo passou a ser ocupado por Ricardo Lafayette Pinto.

Fomos até a Câmara do Rio e procuramos pessoalmente o ex-ouvidor na diretoria de finanças – setor onde, segundo o portal da transparência, ele trabalha atualmente. Nenhum dos funcionários sabia de quem se tratava. Lá, apresentaram alguém de nome José Luiz para perguntar se era o mesmo. Não era.

Câmara confirma que o registro da visita de Girão foi apagado, mas não explica como e por qual motivo isso aconteceu.

Após cinco minutos de espera, o diretor do setor recebeu a jornalista Carol Castro, que também assina esta reportagem. Disse que André Luiz Monteiro Rodrigues não estava ali naquele momento – mesmo em horário de expediente normal – e que não poderia falar de “pormenores” sem a autorização do setor de comunicação. André Luiz Monteiro Rodrigues tem uma relação próxima com o ex-presidente da Câmara, Jorge Felippe. Em 2022, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, ele doou R$ 8,5 mil para a campanha de Jorge Felippe Neto, filho do vereador, que concorreu, e venceu, a disputa para deputado estadual.

Por telefone, procuramos também o vereador Jorge Felippe. Em 2019, ele era filiado ao MDB e presidente da Câmara à época que foi enviado o registro adulterado de visitas. “Essa questão deve ser esclarecida junto à segurança da Câmara. De minha parte, tenho a informar que o Sr Girão esteve na câmara após sua liberdade, como informei à Polícia Civil. A Câmara certamente deveria ter esses registros”, respondeu o vereador.

Apuramos que os servidores que trabalhavam na identificação dos visitantes na portaria da Câmara foram transferidos para outros setores, depois da publicação da reportagem do Intercept. Sob a condição de anonimato, um desses servidores nos contou que vários registros de visitas foram apagados, incluindo o de Girão e outros integrantes de milícias que estiveram em gabinetes de vereadores.

Foto: Wânia Corredo/Agência O Globo

Quem é Cristiano Girão?

Desde do começo das investigações sobre o atentado contra Marielle Franco, Girão aparece no rol de suspeitos de ser um dos mandantes. Ele perdeu o cargo de vereador em 2010 e, posteriormente, foi condenado pela justiça a 14 anos de prisão por formação de quadrilha e extorsão. A sentença e a perda de mandato foram decorrência do indiciamento pela CPI das Milícias, presidida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo – na época no Psol, no ano de 2008. Marielle Franco era uma das assessoras de Freixo e trabalhou na comissão que investigou as milícias.

Depois do assassinato da vereadora e de seu motorista, a justiça quebrou o sigilo telefônico de Girão e ele prestou depoimento em agosto de 2018. Na época, ele cumpria liberdade condicional, após ficar preso em penitenciárias federais. Girão confirmou que esteve na Câmara do Rio no dia 7 de março de 2018 e afirmou que tinha visitado seus ex-colegas de vereança: Jorge Felippe, então presidente da Câmara, e o então vereador Chiquinho Brazão, do Avante.

Atualmente deputado federal, Chiquinho é irmão de Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio.

Domingos Brazão, ex-vereador e ex-deputado estadual pelo MDB, também aparece no rol de suspeitos de ser um dos mandantes do atentado. Ele chegou a ser denunciado ao Superior Tribunal de Justiça, pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ela o acusou de ser o autor intelectual de um falso testemunho dado por um PM que incriminou o então vereador Marcelo Siciliano, seu adversário político, como mandante do duplo assassinato.

“Cogita-se a possibilidade de Brazão ter agido por vingança, considerando a intervenção do então deputado Marcelo Freixo nas ações movidas pelo Ministério Público Federal, que culminaram com seu afastamento do cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro”, afirmou a ministra do STJ Laurita Vaz, em um relatório do processo de federalização do Caso Marielle. A federalização, no entanto, foi negada pelo STJ.

“Informações de Inteligência aportaram no sentido de que se acreditou que a vereadora Marielle Franco estivesse engajada neste movimento contrário ao MDB, dada sua estreita proximidade com Marcelo Freixo”, lê-se no relatório da ministra do STJ.

Domingos Brazão nega que tenha atrapalhado as investigações e que tenha envolvimento no atentado.

Na mesma noite em que Marielle e Anderson foram assassinados, um outro desafeto de Girão também foi morto a tiros: Marcelo Diotti da Mata era casado com a ex-mulher de Girão. O casal foi vítimas de uma emboscada quando saía de um restaurante na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio. Marcelo caiu morto no estacionamento, atingido por tiros de fuzil M-16.

Ainda em seu depoimento, Girão afirmou que passou dez horas numa churrascaria na zona oeste do Rio na noite dos assassinatos. Negou qualquer envolvimento com os crimes. Disse ter ficado sabendo das mortes de Marielle, Anderson e Marcelo pelo noticiário. Girão afirmou que não conhecia a vereadora Marielle Franco.

Mais de cinco anos depois do atentado, a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro não apontaram os mandantes. O ministro da Justiça, Flavio Dino, determinou em fevereiro que a Polícia Federal abrisse um inquérito para descobrir quem mandou matar Marielle Franco.

Colaborou Paulo Victor Ribeiro.

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