Quanto você deve ao mundo? Por Guilherme Sant’Anna.

Por Guilherme Sant’Anna.

Quanto devemos ao universo por estarmos vivos? Se você consegue compreender esta frase, provavelmente é porque alguém te ensinou a ler. Antes disso, alguém também te ajudou com sua alimentação, coletando, preparando e te dando comida. Te ajudaram com vestuário, com a limpeza do seu corpo, te ensinaram a falar e a andar. A lista é extensa, mas não é preciso pensar muito para perceber que dependemos dos outros para sermos quem somos. Mas será que devemos a esses que nos ajudaram e ao universo pela nossa vida? Faz sentido pensar essas questões morais como se fossem dívidas?

antropólogo David Graeber, em “Dívida: os primeiros 5.000 anos” mostra como as relações entre humanos mudaram com o advento das dívidas financeiras. O que antes era algo da ordem da obrigação moral, como questões de honra, ou de retribuição a uma ajuda, passou a ser uma questão numérica, pois uma dívida é uma obrigação quantificável numa unidade de conta (ouro, sal, tabletes de argila, etc). Nesse sentido,

“Se alguém deve um favor, ou a vida, a outro ser humano — é devido a essa pessoa especificamente. Mas se alguém deve 40 mil dólares a juros de 12%, não importa quem é o credor; nenhuma das duas partes tem que pensar muito sobre o que a outra parte precisa, quer, ou é capaz de fazer — como certamente faria se o que era devido era um favor, ou respeito, ou gratidão. Não é preciso calcular os efeitos humanos; é preciso apenas calcular montante, saldos, penalidades e taxas de juros. Se você acabar tendo que abandonar sua casa e vagar em outras províncias, se sua filha acabar em um campo de mineração trabalhando como prostituta, bem, isso é lamentável, mas incidental para o credor. Dinheiro é dinheiro, e um acordo é um acordo.”

Assim, questões morais e até mesmo religiosas são absorvidas pela lógica do comércio, sendo difícil falar sobre elas sem a linguagem dos negócios. Como Graeber aponta, discussões sobre quem deve o quê a quem tiveram um papel central na formação de nosso vocabulário do certo e do errado. De certa forma, pensar em termos de dívida esvazia a complexidade da moral em nossas vidas, por transformar algo plural e existencial em um acordo a ser cumprido a qualquer custo, representado em um número.

Seja no mito de que as relações humanas se davam principalmente por escambo, ou nas narrativas religiosas de dívidas para com os deuses, chama a atenção a redução das relações humanas à permuta. Como se nossos laços sociais, ou até mesmo com o cosmo, pudessem ser imaginados nos mesmos termos de um acordo de negócio.

E isso me faz refletir sobre um modo de sofrer atualmente: é comum se pensar que, se cumprirmos nossa parte do acordo, nossa saúde está garantida, ou o reconhecimento e gratidão das pessoas, ou o sucesso profissional, ou que nossos queridos não morram, etc. Mas, frequentemente, o universo “não cumpre” com a contraparte, e sofremos. O erro, no entanto, não está no descumprimento de um acordo, mas em julgar que nossa relação com o cosmo é como uma transação comercial. Transações comerciais pressupõem uma certa condição de igualdade e separação, algo que não possuímos em relação ao universo.

Os Brâmanas, textos anexos aos Vedas, já tratavam desse tema por volta de 600 anos antes da era comum. Graeber mostra que eles abordaram a questão do significado de imaginar nossas responsabilidades como dívidas. A resposta que o texto dá sobre a quem devemos nossa existência é muito curiosa, pois, ao mesmo tempo em que sinaliza responsabilidades, mostra suas diferenças em relação às dívidas comerciais. Nos Brâmanas encontramos que devemos:

  • ao universo, às forças cósmicas, e se paga através de rituais, como atos de respeito e reconhecimento de nossa pequenez;

Contrariando a lógica das transações comerciais, o antropólogo mostra que “esses exemplos são todos sobre como superar a separação: você está livre de sua dívida para com seus ancestrais quando se torna um ancestral; você está livre de sua dívida para com os sábios quando se torna um sábio, você está livre de sua dívida para com a humanidade quando age com humanidade. Ainda mais quando se fala do universo. Se você não pode barganhar com os deuses porque eles já têm tudo, então certamente não pode barganhar com o universo, porque o universo é tudo — e tudo necessariamente inclui você. Pode-se de fato interpretar esta lista como uma forma sutil de dizer que a única maneira de “se libertar” da dívida não era literalmente saldar dívidas, mas sim mostrar que essas dívidas não existem porque não estamos separados para começar. Portanto, a própria noção de cancelar a dívida e alcançar uma existência separada e autônoma era ridícula desde o início. (…) Nossa culpa não se deve ao fato de não podermos pagar nossa dívida para com o universo. Nossa culpa é nossa presunção de pensar que somos, em qualquer sentido, equivalentes a Tudo o Mais que Existe ou Já Existiu, de modo a sermos capazes de conceber tal dívida em primeiro lugar.”

Estar vivo é, inevitavelmente, participar de uma rede de interações entre diversos seres, favorecendo isso ou aquilo. Mas qual é nossa parte nisso tudo, como viver bem? Eis a questão que precisa ser respondida em vida, a cada vez. Na sabedoria do filme Rei Leão, a orientação é a de que “no ciclo da vida, você não deve tomar mais do que dar.” E isso não é tanto uma questão de pagar uma dívida, pois não estamos em posição de firmar acordos com o universo, de registrar o que se toma e o que se dá, ou de pensar que podemos sair do ciclo. Mas sim um convite a reconhecermos nosso lugar no ciclo da vida, e aí permanecermos.

*Os trechos citados foram traduzidos por mim e se encontram em: David Graeber — “Debt: the first 5000 years”, Melville House Publishing, 2011.

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Guilherme

Guilherme Sant’Anna é psicólogo (CRP 05/57577), formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online e, se você quiser entrar em contato, pode fazê-lo pelos seguintes meios:

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