Primeira missão do FMI na Argentina revisa contas do país, que chegou a 6% de inflação em abril

Titular do FMI, Kristalina Georgieva, com o Ministro da Economia argentino, Martín Guzmán, em encontro de julho de 2021. – Ministério da Economia Argentina

Por Fernanda Paixão

A primeira revisão do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre o cumprimento do acordo firmado com o governo argentino ocorre em um mês-chave para a política econômica do país.

O índice de inflação mensal em abril se manteve na base de 6% sobre o aumento do custo de vida (uma leve melhora, contra 6,7% em março) e o início das audiências públicas para discutir os cortes de subsídios nos serviços de energia, gás e água expõe um descontentamento crescente por parte da população.

Serão dez as revisões que constam no acordado em março entre o governo argentino e o diretório executivo do FMI para controlar os números de inflação e déficit fiscal (gastos mais altos que ingressos).

Se aprovada, cada auditoria do órgão internacional liberará um valor pré-determinado para as reservas do Banco Central argentino, correspondente ao vencimento das parcelas da dívida firmado em 2018, pelo ex-presidente Mauricio Macri. Em outras palavras, o FMI liberará a quantia à Argentina para enfrentar os vencimentos do próprio órgão, o que durará dois anos e meio.

De acordo com a lógica desse novo acordo, a Argentina terá “fôlego” para fortalecer suas reservas em dólares ao mesmo tempo que o FMI garante que o país siga sob suas exigências de ajuste. Serão 4 anos “de graça” ao país que, a partir de 2026, começará a efetivamente pagar a dívida, então sob novos prazos de vencimentos que substituem o acordado por Macri, considerados “impagáveis”.

A missão do órgão internacional, que culminaria em uma visita presencial, é realizada virtualmente. A modalidade representa alívio para o governo, já que dentro de sua própria coalizão, Frente de Todos (FdT) há desacordo sobre os termos da renegociação, aprovada em março no Congresso com amplo apoio da oposição macrista e com o voto negativo de 13 senadores e 28 deputados da própria coalizão governista.

“Os programas do Fundo não são apropriados para promover o crescimento nem controlar a inflação”, explicaram, em carta, legisladores do La Câmpora (grupo kirchnerista), após o amplo rechaço dos Deputados. “Ao contrário, nos períodos de vigência de acordos com o FMI, a inflação média foi mais elevada pela simples razão de que as medidas que o Fundo impulsiona a aceleram”, afirmaram, em referência a outros momentos históricos de endividamento do país com o mesmo órgão.

Além disso, os protestos massivos contra a pobreza e o condicionamento do país ao FMI continuam ocorrendo. “Decidiram fazer a revisão de maneira virtual para não enfrentar a forte mobilização nas ruas”, pontua a ativista Beverly Keene, do coletivo Diálogos 2000 e parte do Grupo Autoconvocado pela Suspensão do Pagamento e pela Investigação da Dívida.

“Vão continuar vindo a cada três meses, um verdadeiro co-governo com o governo nacional, que não pode gastar um peso, um dólar da parte das exigências impostas pelo Fundo”, afirmou, durante uma panfletagem na última terça-feira (17) para anunciar a Semana de Ação contra o FMI, uma série de mobilizações virtuais e nas ruas para denunciar a ilegalidade da dívida – concedida pelo FMI a um país que não teria condições de pagar, contrariando o estatuto do próprio organismo.

Beverly Keene durante panfletagem nesta terçga (17): organizações exigem o avanço da investigação sobre a dívida concedida a Mauricio Macri, em 2018. / Fernanda Paixão

Entre as exigências do acordo, anunciado pelo governo em janeiro, estão a redução do déficit fiscal, da inflação e o incentivo do crescimento da economia. Setores aliados ao presidente Alberto Fernández asseguram, como o próprio mandatário, que as medidas não significam ajuste para a população.

Junto a isso, projetos de lei anunciados nas últimas semanas visam um horizonte mais equitativo para enfrentar a dívida com o FMI e a alta inflação, problema histórico no país e agravada pela pandemia, a guerra na Ucrânia e o descontrole sobre as empresas formadoras de preço.

Exemplo disso são o projeto de lei anunciado pelo Executivo para arrecadar a renda inesperada de empresas que lucraram com a guerra na Ucrânia (e que provocou a ira da coalizão macrista e de ruralistas, que protestaram com tratores em frente à Casa Rosada) e o projeto de lei lançado pela ala kirchnerista para criar um Fundo de arrecadação em dólares de bens não declarados fora do país – o destino de boa parte dos dólares concedidos pelo FMI durante o governo macrista.

Este último foi aprovado no último dia 13 no Senado com um Congresso rodeado de um protesto massivo contra a fome e a pobreza, um dia após a divulgação do dado de inflação de abril, em 6%, pelo Instituto de Estatística e Censos (Indec).

Outro assunto já inaugurado em audiências públicas é o corte de subsídios do Estado sobre tarifas de gás e luz, previsto de maneira equivalente à renda familiar e à localização de moradia. São dois aspectos de medição que o governo tomará em conta para reduzir o subsídio. Já nas audiências da semana passada, somadas ao aumento-base ocorrido em março, a secretaria de energia indicou um aumento de 20% sobre a conta de luz.

No contexto de uma crise energética desatada pela guerra, o presidente Alberto Fernández destacou na semana passada, em seu encontro com o chanceler Olaf Scholz, na Alemanha, que, atualmente, o país “está subsidiando energia aos 10% mais ricos da população, o que não é justo em termos igualitários”.

O que se desata, além do descontentamento do setor de maior poder aquisitivo, é a reação em cadeia relacionada às imposições de condições do FMI. Segundo o economista Julio Gambina, as políticas de ajuste terminam impactando a população, seja de maneira direta ou indireta. “O aumento encarece os custos de produção em termos gerais e, portanto, intervém nos preços”, diz.

“O aumento não é apenas sobre a tarifa de energia e gás, mas também do combustível. E, claro, não tem a ver apenas com o custo de abastecimento de uma moto, um carro, mas com o transporte de mercadorias, de carga, com transporte público, e, portanto, implica diretamente no aumento dos custos de produção”, pontua o economista.

Mobilização contra FMI no centro da cidade de Buenos Aires, na última terça (17). / Fernanda Paixão

O agravamento da situação dos setores populares se vê refletido na previsão de inflação para o ano: já supera 70%. Esse panorama dá pouca margem para o governo atender a população, incrementar as reservas em dólares para pagar o Fundo e, ao mesmo tempo, estar em dia para as revisões trimestrais do órgão.

Neste mesmo mês, o governo publicou a resolução de adiantamento do aumento em parcelas do salário mínimo, acordado em março com os sindicatos. O acordo original previa um aumento de 10% a cada dois meses para chegar ao salário mínimo de AR$ 47.850 (R$ 1.990) até dezembro. Com a resolução, o aumento final será percebido já em agosto. Por outro lado, a cesta básica familiar no país já alcança AR$ 89.690 (R$ 3.700).

Para Gambina, a discussão sobre cortes de subsídios à tarifa de energia é ilustrativa. “Mais que debater sobre as tarifas energéticas, é necessário debater sobre o modelo de produção. Um projeto econômico soberano que priorize as necessidades da população”, pontua.

“Em vez disso, o que vem sendo impulsionado beneficia o setor concentrado da economia, consolidando um modelo produtivo que podemos classificar de extrativista porque se assentam na exploração e o saqueio dos bens comuns”, afirma, exemplificando com projetos de megamineração, como em Vaca Muerta, e de extração de lítio, para os quais o país busca investimentos estrangeiros para avançar em sua exploração – uma das apostas aprofundadas pela dívida com o FMI para aumentar as reservas em dólares.

O próximo vencimento da dívida será nos dias 21 e 22 de junho, que o país deverá pagar com o desembolso que o FMI fará após aprovada a revisão neste mês de maio. “Nesse dia, e em todos os que forem necessários, estaremos nas ruas”, destaca Beverly Keene.

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