Porto Alegre: Prefeitura corta Filosofia e insere Religião no currículo das escolas municipais

A ex-presidenta do Conselho Municipal de Educação (CME), por exemplo, chama a nova organização curricular de “autoritária e desonesta”

Secretária de Educação, Janaina Audino, conduziu o processo da nova organização pedagógica na Capital. Foto: Alex Rocha/PMPA

Por Luciano Velleda.

Dois dias antes de anunciar a nova organização curricular para o Ensino Fundamental da rede municipal de Porto Alegre, a secretária de Educação, Janaina Audino, esteve na EMEF Judith Macedo de Araújo. Foi recebida sob um coro de “Filosofia! Filosofia!”, entoado por alunos nos corredores da escola.

O motivo oficial da visita era a entrega simbólica de cestas básicas junto à direção e aos representantes do Conselho Municipal de Alimentação (CMA). Todavia, o tema da nova grade curricular pairava no ar.

Em relato publicado na página da rede social da Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa), Jacques Guimarães Schaefer, professor de Filosofia do município, conta que a visita da secretária o fez lembrar do processo de retirada “arbitrária” da disciplina do currículo das escolas da Capital.

Schaefer diz que recordou também da proposta de uma grade curricular “intempestiva, com falso consenso”, além das vezes em que a secretária disse que receberia os conselhos escolares e outros representantes das escolas de Porto Alegre descontentes com as mudanças. Os encontros, todavia, diz o professor, foram desmarcados ou realizados apenas com a presença de assessores.

Com a visita de Janaina agendada na escola, o professor viu então a oportunidade de pedir à secretária que conversasse com os alunos e os ouvisse sobre as mudanças no currículo e a retirada da Filosofia.

“Foi surpreendente ver a disposição dos três alunos escolhidos para conversar com a secretária. Ela buscou dizer que a Filosofia estava ‘concretizada’ como fora da Base Nacional Comum Curricular. A BNCC é uma política curricular para o ensino no país. Os alunos questionaram que tinham amigos e conhecidos de escolas particulares que tinham essa matéria e que ela não seria retirada dessas escolas. Pensamos: ‘A BNCC só concretiza a retirada da Filosofia dos pobres ou daqueles que não têm como pagar por ela, numa escola particular?’. A BNCC obviamente não impede a Filosofia, pois suas aulas estão presentes para os alunos de várias escolas particulares hoje, no ensino fundamental”, explica Schaefer.

O professor relata que, ao ser confrontada com os argumentos dos alunos, a secretária Janaina não conseguiu convencê-los a respeito da mudança, disse que “não poderia agradar a todos” e citou a criação de um “espaço filosófico”. Para Schaefer, tal espaço retira o professor de Filosofia da sala de aula e não garante a disciplina no processo de formação humana na rede de ensino de Porto Alegre.

“No fim, a secretária levantou-se e finalizou o ‘diálogo’, deixando sensação de injustiça e autoritarismo entre todos que a escutavam. Arrisquei oferecer que ela assistisse uma de nossas aulas de Filosofia antes de decidir por sua retirada. Ela, porém, já havia decidido e o falso diálogo se encerrou”, afirma o professor.

Dois dias depois, a Prefeitura anunciou a nova organização pedagógica para o Ensino Fundamental.

Segundo a Secretaria Municipal de Educação (Smed), as quatro principais mudanças são: aumento da carga horária de Língua Portuguesa e Matemática, considerando os baixos índices de proficiência dos estudantes e os impactos provocados pela pandemia; a inserção de dois períodos de contação de histórias do 1º ao 3º ano, e um período de produção textual nos anos finais do ensino fundamental; a incorporação como componente curricular da iniciação científica, desde o 1º ano do ensino fundamental; e a Língua Espanhola passar a ser componente curricular no 4º e 5º ano.

“A educação apresenta muitos desafios, mas também grandes oportunidades para o futuro das nossas crianças e adolescentes”, ponderou a secretária Janaina, em carta aberta à comunidade escolar. “Nesses dez primeiros meses à frente da Smed, venho propondo mudanças importantes na área pedagógica e tenho recebido muitas críticas e contribuições, que estão sendo acolhidas. É importante destacar que mudanças nos oportunizam um leque de possibilidades para o nosso conhecimento e nosso crescimento pessoal e profissional  e, como secretária, me sinto à vontade para propor novos rumos para a educação municipal de Porto Alegre.”

Professora de Português da rede municipal desde 1989 e ex-presidente do Conselho Municipal de Educação (CME), Isabel Medeiros define a nova organização pedagógica como “impertinente” em função do cenário imposto pela pandemia, em que os alunos de escolas públicas sofreram sem o melhor acesso às aulas on-line. As escolas municipais só começaram a receber alguma atenção da Prefeitura em setembro de 2020, cerca de seis meses após o início da crise sanitária – e mesmo assim, com muitas críticas à atuação do governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB).

Para Isabel, o foco do governo Melo deveria ser minimizar os significativos prejuízos decorrentes da pandemia na rede pública da Capital. “Me parece que a proposta que não for essa é totalmente impertinente e, inclusive, visa dissimular o compromisso principal”, analisa, reforçando que o retorno às aulas foi decidido por decreto.

Na nova grade curricular, as disciplinas de História e Geografia passam a ter dois períodos semanais cada (antes eram três); a Filosofia, até então com dois períodos semanais, é excluída da grade; enquanto a Religião terá um período por semana, além do aumento da carga horária de Português e Matemática.

Com a experiência de quem é professora de Português, Isabel pondera que todo ensino é realizado no idioma, e lembra que o aumento da carga horária dessa disciplina já foi experimentado em épocas anteriores. Estudos posteriores revelaram que tal aumento não se refletiu na melhora dos alunos na compreensão dos fenômenos sociais.

“Não se compreende um fenômeno a partir do conhecimento gramatical. O conhecimento é um fenômeno interdisciplinar, não tem nenhuma justificativa pedagógica pra privilegiar Português e Matemática”, afirma. E questiona: “Qual efeito benéfico o aumento de carga horária dessas disciplinas trará no aprendizado em geral?”.

Professor de música da rede municipal de ensino e atualmente vereador, Jonas Reis (PT) avalia a nova proposta pedagógica do governo de Sebastião Melo como nociva à diversidade no currículo ao reduzir e tirar espaço de disciplinas importantes para a formação da consciência e da cidadania.

Para ele, não há pontos positivos na proposta. A crítica começa por não ampliar a carga horária e tampouco criar um currículo emergencial em função da pandemia, aspecto que o vereador acredita ser importante.

“O currículo emergencial é um espaço com mais carga horária e mais discussão sobre áreas do conhecimento pra que se recupere o tempo perdido do ensino à distância, porque nem todos tiveram acesso à internet, computador ou celular em casa. Muitos alunos não conseguiram acessar conteúdo, e só com material impresso e levado pra casa, muitas aprendizagens deixaram de acontecer. A gente buscava que o governo Melo investisse em educação de qualidade e recuperasse o tempo perdido. Não quis, e agora está inventando que aumentar Português e Matemática é uma solução, e isso não é solução, porque a vida não se baseia só em Português e Matemática. A vida em sociedade precisa de vários conhecimentos”, explica.

Como exemplo, cita a maior importância de disciplinas de Biologia, Física e Química para alunos que pretendam trabalhar em outras profissões, e não necessariamente ter mais ênfase em Matemática ou Português.

“O Português é uma linguagem importante, mas você aprende Português em todas as disciplinas, em todas elas você escreve e lê, e constrói conhecimento de Português”, pondera, destacando a diferença disso em relação ao aprendizado de regras gramaticais exigidas em prova. “Só aumentar carga horária não significa que se vai aprender mais daquilo, depende de como se organiza o conteúdo na grade curricular.”

Objeto de polêmica e contrariedade por parte da comunidade escolar, a retirada da Filosofia da grade curricular é citada pelo vereador como exemplo de disciplina que exige muita leitura, escrita, raciocínio lógico e análise crítica da realidade.

“Isso é muito importante para os alunos, todas (disciplinas) têm sua importância. Tirar Filosofia pra colocar Religião, pra mim, é uma excrescência enorme, porque a Religião tem o espaço dela, nas igrejas, onde as pessoas se reúnem pra congregar as suas escolhas”, pondera Reis, questionando qual religião será ensinada.

“Tem professor que sabe de budismo? Vai fazer concurso pra professor de Religião? Vamos contratar teólogos? Quem entende de hinduísmo, judaísmo, ou as diferenças entre os protestantismos? Ou a Secretaria vai simplesmente estabelecer que tem que ser o catolicismo aprendido na escola?”, indaga.

 Na visão da ex-presidente do Conselho Municipal de Educação (CME), a exclusão da Filosofia da grade curricular não tem fundamento. Isabel chama a nova organização curricular de “autoritária e desonesta”, por ter sido imposta sem debate com a comunidade escolar e ignorando a gestão democrática.

“Não se justifica uma reforma feita dessa maneira e num período totalmente desfavorável”, comenta, em referência aos impactos da pandemia. “Se fosse uma mudança positiva, teríamos os conselhos escolares apoiando, e eles não estão apoiando.”

Isabel destaca que o Ensino Religioso, colocado no lugar da Filosofia, está previsto em lei como facultativo e, portanto, não pode ser contado como carga horária. Por isso, a Religião atualmente é oferecida no contra-turno nas escolas da rede municipal. “A Secretaria de Educação está promovendo uma desorganização das escolas. Para as classes populares, parece que basta Português e Matemática… É um retrocesso social e político que está sendo colocado com muita naturalidade.”

A nova organização pedagógica criada pela Prefeitura é coerente com o que defende a Secretaria Municipal de Educação (Smed) do governo Melo – uma gestão que propõe ter compromisso com o resultado. Essa é a análise feita por Ana Cristina Ghisleni, professora do Programa de Pós-Graduação em Gestão Educacional da Unisinos

Apesar de reconhecer a coerência, Ana Cristina pondera ser preciso perceber as nuances do processo. Ex-professora por 18 anos da rede municipal de Porto Alegre, ela destaca que o sistema de ensino da Capital tem uma história, com bandeiras importantes frutos de um longo trabalho e que, portanto, exige um olhar cuidadoso.

Nesse sentido, a professora da Unisinos avalia que a construção feita pela Smed parece ser uma fórmula pronta. Para ela, o governo Melo tem compromisso com o perfil conservador, apesar de gostar de usar o termo “inovador” em suas ações.

A “modernização conservadora” em curso não teria, em sua análise, foco principal na educação de qualidade. Mais importante, pela ótica da prefeitura, é mostrar resultado nos exames de larga escala que avaliam a educação básica e, nesse aspecto, ampliar a carga horária de português e matemática pode fazer sentido.

“Tem que fazer uma conta que apareça mais resultado”, explica a professora do Programa de Pós-Graduação em Gestão Educacional.

Ana Cristina avalia que as mudanças feitas apontam para a “instrumentalização” dos alunos, em detrimento da ideia de um currículo com perspectiva mais integral, em que o estudante entenda o que está fazendo e estabeleça racionalidade para o que é estudado, compreendendo as coisas em seus contextos.

“Isso vai além da instrumentalização. O conhecimento faz sentido na perspectiva de uma formação mais integral na vida em sociedade. Ao instrumentalizar, se dá ênfase em disciplinas em detrimento de outras, é uma conta que não fecha”, explica.

Pesquisadora da área de políticas educacionais, com ênfase na gestão da educação básica, Ana Cristina destaca que não se pode tomar decisões dessa magnitude à revelia das pessoas que serão impactadas pelo processo. Como exemplo, pergunta o que será feito dos professores de Filosofia, servidores concursados e que agora, de uma hora para a outra, veem a disciplina sair da grade curricular. “É um fator preocupante”, comenta.

A postura de enfrentamento com a rede municipal, característica que vem ocorrendo desde o governo Marchezan, também chama a atenção de Ana Cristina, uma atitude posta em prática supostamente respaldada pela técnica ao invés da política. “Esse tecnicismo tem dominado o cenário nos últimos anos e as escolas se ressentem disso, não se percebe que o trabalho está sendo visto e valorizado, e quanto mais sumido se fica, se vai perdendo o brilho, não é diferente no trabalho docente”, explica.

Um ato contra a nova proposta pedagógica está sendo organizado pela Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa) para a próxima quinta-feira (18), em frente à sede da Prefeitura.

 

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