Por Pedro Stropasolas, para Brasil de Fato.
O Brasil encontrou 2.575 pessoas em situação análoga à de escravo em 2022, maior número desde 2013, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego. E a atividade com maior número de trabalhadores resgatados foi um dos motores da economia nacional no Brasil Colônia, séculos atrás, o cultivo da cana-de-açúcar.
Para especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a cadeia produtiva sucroalcooleira é uma atividade historicamente precarizada no Brasil, desde o período colonial (1500 a 1815), mas há fatores hoje que ajudam a compreender o aumento das condições degradantes de trabalho no setor desde 2018, como a terceirização irrestrita e a crise socioeconômica ocasionada pela pandemia da covid-19.
Atualmente, as violações trabalhistas na cadeia produtiva da cana-de-açúcar não se dão exclusivamente na colheita da cana, como era a realidade dos “bóias frias” décadas atrás. São encontradas também na capina e no plantio manual de mudas nos canaviais, como foi o caso da 32 pessoas resgatadas de uma fazenda que fornece cana para o açúcar Caravelas, da Colombo Agroindústria S/A, conforme revelou o Brasil de Fato.
“Assim como a colheita envolvia um esforço repetitivo, jornadas exaustivas, em razão da natureza e também do gasto energético que se tinha nessa atividade do corte da cana, o plantio também envolve outros riscos, como por exemplo o risco de queda em altura, de ter o trabalhador que ficar em cima de um caminhão para poder pegar as mudas e ter o caminhão em movimento. Então assim, ambas as fases têm riscos elevados, que acabam recaindo sobre o trabalhador”, explica Maurício Krepsky Fagundes, auditor fiscal e chefe da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae).
Terceirização
O resgate em Pirangi (SP) elucidou outra realidade comum dentro do setor: os vínculos empregatícios que predominam são contratos temporários realizados por empresas terceirizadas.
“A gente está falando de uma indústria altamente lucrativa. De fazendas onde haja o plantio e o corte da cana pra abastecê-las. E a gente sabe que a gente vivencia, né? No mundo hoje já há algumas décadas um fenômeno de terceirização e quarteirização das atividades”, pontua Lívia Miraglia, professora de Direito ao Trabalho da UFMG e presidente da Comissão de Combate ao Trabalho Escravo – OAB-MG.
Nos canaviais dos estados do sudeste, que produz o equivalente a 63,7% da safra nacional, tem sido recorrente que grandes usinas coloquem a responsabilidade por eventuais violações trabalhistas nas empresas prestadoras de serviço.
“Algumas fazendas, usinas, acabam terceirizando esse trabalho, seja no plantio, seja na colheita, para empresas que não têm a menor idoneidade econômica. Somente terceirizar o serviço de safra para alguém que não tem esse conhecimento (das normas trabalhistas), não vai afastar a responsabilidade do produtor”, diz o auditor fiscal.
“Na verdade, ele vai estar sendo cúmplice dessa situação e poderá ser responsabilizado por esses trabalhadores caso eles estejam em condições análogas à escravidão”, alerta Krepsky.
Pandemia
Lívia Miraglia considera que no período de crise, encadeada principalmente pela pandemia do covid-19, foi observado um aumento da precarização no setor.
“Os auditores fiscais de trabalho relatam que é um retorno a essas condições mais precárias no porte da cana, algo que eles achavam que estivessem superado”, pontua.
Mauricio Krepsky reitera a preocupação da coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG.
“Enquanto em outros anos a gente via situações do tipo: o aliciador dizia que ia ter carteira assinada, que ia ter um um alojamento adequado, um trabalho por produção que ia pagar X por quilo de de cana colhida. Nesses últimos anos, de extrema vulnerabilidade e de crise, basta o aliciador dizer que vai ter um emprego, ter uma oportunidade. Ficou muito mais fácil esse trabalho de aliciamento”, acrescenta.
A professora da UFMG destaca a importância de se mapear o perfil dos trabalhadores e seus locais de origem para a formulação de políticas públicas no pós resgate. Dos resgatados em 2022, 83% se autodeclararam negros, 15% brancos e 2% indígenas. 92% eram homens.
“Qual é o perfil dos resgatados? Homens em sua maioria negros, provenientes de municípios com índice de pobreza muito alto, baixa escolaridade, em locais de completa carência de saneamento básico. Às vezes a pessoa sequer tem energia elétrica na sua casa”, aponta Miraglia.
Mecanização
Publicado em 2022, pela Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO) o artigo Condições de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e repercussões sobre a saúde dos canavieiros evidenciou no setor “o sistemático descumprimento das normas trabalhistas, previdenciárias e de saúde”.
A mecanização no setor na região sudeste começou a se expandir em 2007, com o interesse do Governo Federal em aumentar a produção de etanol como matriz energética.
Em 2008, 47,6% de toda a colheita na região Centro-Sul do país era mecanizada. Em 2015, essa porcentagem saltou para 97%, de acordo com o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC).
No mesmo período, o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou um conjunto de regras relacionadas a segurança do trabalho nos canaviais, denominadas de Notificações Recomendatórias, a NR 31.
A mecanização impôs mudanças no trabalho dos cortadores: apesar de alguns avanços, os trabalhadores passam a despender maior esforço para acompanhar a produtividade atingida pelas máquinas. Além disso, eles são encarregados de executar o corte manual em áreas de difícil acesso para as colheitadeiras, ficando com os terrenos mais irregulares e suscetíveis a acidentes.
Em estados como Paraíba, Pernambuco e Alagoas, o baixo grau de mecanização na lavoura ainda evidencia o predomínio da colheita manual e a prática da queima da cana-de-açúcar para facilitar o corte – o que acaba expondo os trabalhadores a doenças de pele e dos aparelhos respiratório e circulatório.
Em 2021, apenas 23,4% da colheita de cana-de-açúcar no Norte/Nordeste ocorreu de forma mecanizada.
Vida útil dos trabalhadores
Em 2007, um estudo da Unesp constatou que os trabalhadores rurais na cana-de-açucar conseguem exercer a atividade por cerca de 12 anos, que é a mesma média de vida útil das pessoas escravizadas na atividade até 1850 no Brasil. A pesquisa também mostrou que os cortadores de cana chegavam a colher até 15 toneladas por dia no início dos anos 2000.
A professora Lívia Miraglia cita um pensamento de Lilia Schwarcz, autora de O Espetáculo das Raças e Racismo no Brasil, que pontua que o 13 de maio de 1988 foi “o dia mais longo” da história brasileira, pois ainda não terminou.
“Se a gente não pensar em uma política pública que seja capaz de resgatar esses trabalhadores e reinseri-los na sociedade a gente vai continuar fazendo o que a gente faz desde 1888. Libertam-se pessoas escravizadas, mas sem pensar no pós resgate, em uma inserção efetiva dessas pessoas”, finaliza Miraglia.
Edição: Rodrigo Durão Coelho