‘Os manicômios hoje se chamam comunidades terapêuticas’

No dia 18 de maio, milhares de militantes, profissionais de saúde e usuários dos serviços saíram às ruas em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte para celebrar o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

Fábio Belloni
Fábio Belloni

Além de comemorar as inúmeras conquistas de um movimento que já vem desde a década de 1970, a data serve para lembrar que ainda há inúmeros desafios a serem superados, e o risco de retrocessos nas políticas públicas para a área de saúde mental está sempre presente. É o que afirma o diretor da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Fábio Belloni, que, nessa entrevista, faz um balanço do que vê como os principais avanços e retrocessos nas políticas de saúde mental hoje no Brasil.

A luta antimanicomial é um movimento formado há pelo menos 30 anos. Quais foram suas principais conquistas nesse período?

A maior conquista da luta antimanicomial, que tem mais de 30 anos, foi em 2001, quando nós consolidamos um grande marco que foi a promulgação da lei 10.216 [conhecida como Reforma Psiquiátrica] que preconizava o fechamento dos hospitais psiquiátricos de forma gradativa e a substituição desde hospitais por um serviço de atenção à saúde mental dentro de uma rede, uma outra proposta baseada no cuidado em centros de atenção psicossocial, no qual o sujeito estivesse próximo de suas relações sociais, constituísse novos vínculos sociais a partir do trabalho, da arte, da cultura, da educação, da formação profissional, etc. Esse foi o grande marco, a grande vitoria dessa luta foi a substituição aos hospitais psiquiátricos por uma nova rede de atenção psicossocial. Passamos 13 anos organizando essa rede, mas ainda temos muitos leitos psiquiátricos abertos, nesses 13 anos ainda não conseguimos desmontar equipamentos asilares na sua totalidade, mas tivemos grande êxito. Hoje o que nos temos como positivo é a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde ter dado um prazo para que municípios pudessem organizar sua rede de atenção psicossocial até 2015, do contrário não mais terão repasse do governo federal para a saúde mental. Isso é um grande avanço porque dá um prazo para que essa rede seja construída e consolidada em todos os municípios caso queiram o financiamento do ministério. Mas também temos visto retrocessos.

Quais, por exemplo?

O que temos de retrocesso é esse fenômeno criado em volta das pessoas em situação de rua, dos usuários de crack. Construíram no imaginário popular que isso é um fenômeno novo, que há muita gente nessa situação e de que então precisamos ofertar uma nova política de saúde mental. O certo seria incorporar os usuários de álcool e outras drogas dentro dessa rede psicossocial, por meio dos Caps AD [Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas] que atendesse essa população. Mas o apelo da classe burguesa, dos interesses imobiliários, da higienização social, acabou consolidando um retorno dos manicômios que hoje se chamam comunidades terapêuticas. Elas têm a mesma lógica dos manicômios, de tirar o sujeito de circulação e segregá-lo, afastá-lo das relações sociais. Isso vai contra tudo o que se pensou para a saúde mental, porque compreendemos que aquele que sofre psiquicamente, ele precisa estar nas suas relações sociais porque a sua diferença não impede de estar trabalhando, fazendo suas atividades, trocando com sés familiares. Além disso, vivemos num estado laico, e essas comunidades na sua maioria têm viés religioso, sem o cuidado com saúde, e se oferece o culto em busca da cura. Se isso não for a barbárie, é pelo menos uma vergonha. Isso não sói vai contra os princípios da Reforma Psiquiátrica mas até da Constituição brasileira, já que vivemos num estado laico de direito.

Falta coerência nas políticas públicas para a área?

Falta, e vejo isso em São Paulo, por exemplo. Na capital a Abrasme está acompanhando o novo programa, chamado ‘De braços abertos’, que propõe tirar as pessoas em situação de rua, colocá-las em acolhimento em pequenos hotéis degradados que foram reformados e alugados pela prefeitura e as pessoas têm seu dormitório, têm trabalho, capacitação profissional, cultura, apesar de vir recebendo várias críticas porque busca a abstinência, sempre pela cura, pelo não uso da droga. Mas penso que esse programa, que veio do Ministério da Saúde, seja uma nova possibilidade de ter esse cidadão como uma pessoa de direitos. Ao mesmo tempo temos o programa do governo do estado, o Cartão Recomeço, que prevê R$ 1.350 reais para as famílias ou usuários que queiram a internação, dinheiro que é repassado diretamente às comunidades terapêuticas, o que contraria a proposta da prefeitura.

Não somos contrários à internação: penso que ela seja necessária em momentos de crise. Mas essas internações devem ser feitas estejam nos hospitais gerais, nos centros de atenção psicossocial. Não precisamos criar nada novo, precisamos fazer que aquilo que está preconizado na lei. Os municípios não podem precarizar a rede de atenção psicossocial para justificar que ela não funciona para oferecer um novo equipamento caríssimo financiado pelo SUS, e que mais uma vez acaba jorrando dinheiro público para essa via. A gente já assistiu isso, os hospitais psiquiátricos drenaram dinheiro do SUS por anos. O que estamos assistindo é mais uma solicitação desses empresários da loucura querendo drenar o dinheiro público novamente.

A redução de danos é uma política pública oficial do Ministério da Saúde para lidar com os usuários de drogas. Como você avalia sua implementação?

A redução de danos ainda é minoritária. Acredito que por falta de conhecimento, porque as pessoas compreendem que a redução de danos seria trocar uma droga por outra, e não é isso, é consolidar outros vínculos que não sejam a droga. A redução de danos não é substituir uma droga pesada por uma leve, e sim fazer com que o sujeito não tenha como referência a droga e tenha outras possibilidades de vinculo, com amigos, com trabalho, com cultura, arte, e também, caso seja necessária, com uma droga que faça menos mal, não vejo problema nisso. Isso não é visto com bons olhos, porque ainda buscamos a abstinência e a cura do sujeito, como se a droga não fizesse parte da historia da humanidade, como se ela fosse um grande mal que deve ser banido.

Outro marco recente na área de saúde mental foi a publicação da portaria 3.088, de 2011, que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial. Sua implantação vem se efetivando, na sua avaliação?

A distribuição desses equipamentos não está consolidada. Até penso que a Coordenação de Saúde Mental do Ministério, ao perceber esse pouco compromisso dos gestores, impôs que até 2015 essa rede esteja montada. Ainda assim observamos que vários equipamentos de saúde mental, ainda que estejam de portas abertas, atendam na lógica dos direitos, observamos ainda que alguns centros de atenção psicossocial ainda trabalham na lógica manicomial, colocam o sujeito nessa relação em que ele é tutelado pelo serviço, não oferece autonomia de fato. Uma outra ausência é a atenção básica, porque se tivéssemos a porta de entrada que pudesse de fato compreender a saúde mental, parte das pessoas nem chegariam ao Caps. Tem pessoas deprimidas, ansiosas, com vários sofrimentos que podem ser cuidados na atenção básica sem nenhum problema. É que qualquer coisa que suscite a saúde mental logo saí da atenção e vai direto para a rede de atenção psicossocial por falta de compreensão e por ausência de uma boa formação na saúde mental, que está sempre apartada da saúde coletiva.

Hoje o Ministério da Saúde repassa auxílio financeiro a estados e municípios, mas eles acabam colocando na saúde mental esses incentivos, mas não necessariamente na rede de atenção psicossocial. Então a coordenação da saúde mental definiu que até 2015 essa rede tem que estar configurada de acordo com a população, de acordo com o tamanho município. Se ate 2015 isso não estiver organizado, os municípios que não tiverem organizado não receberão repasse do governo federal para a saúde mental. A lei é de 2001, só que alguns os municípios e estados deixaram de fazer, agora vão ter que correr se quiserem receber recursos do ministério. Acho positivo que isso tenha se firmado porque coloca um ponto final nessa organização. Muitas vezes o dinheiro vai para hospitais gerais porque compreende-se que se tem um leito de saúde mental se justifica a entrada de dinheiro lá. Agora ficou claro para onde o dinheiro deve ir.

E quais os equipamentos que compõem essa rede e estão aptos a receber recursos do ministério?

Nas Redes de Atenção Psicossocial temos os centros de convivência, que oferecem formação arte, cultura, etc., temos as residências terapêuticas, ambulatórios de rua, os CAPS. Só que nessa guerra às drogas e por anseio de parcela da sociedade também, acabaram entrando as comunidades terapêuticas, mas com uma ressalva. Embora o ministério tenha incorporado as comunidades terapêuticas, nenhuma conseguiu convenio porque não obedeceu aos pré-requisitos para serem conveniadas. Mas aí temos um problema, porque como as comunidades terapêuticas buscaram a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [Senad] no Ministério da Justiça, que as de apoio. Hoje temos no Senad mais de 190 contratos com comunidades terapêuticas criando mais de 6,6 mil leitos nessas comunidades num valor anual de R$ 83 milhões. Esse financiamento está sendo dado a um novo equipamento sem que a Senad tenha instrumentos legais para fazê-lo. A Senad ainda está discutindo a legalidade das comunidades terapêuticas. E por que a Justiça está arbitrando sobre um objeto que não é responsabilidade dela, e sim do Ministério da Saúde? Porque se o uso de álcool e outras drogas é um fenômeno considerado como um prejuízo para a saúde do sujeito então é uma doença, se é doença tem que estar na saúde, e não na justiça.

Quais são hoje os obstáculos para a efetivação do que prega a Reforma Psiquiátrica?

Eu penso que o grande obstáculo é que estamos vivendo um grande retrocesso, temos uma bancada evangélica forte no Congresso. Não sou contrário à religiosidade, mas penso que fazemos política para todos, não escolhemos segmentos, assim esperamos dos nossos representantes. Mas temos um apelo bastante significativo de igrejas colocadas no Congresso, que tem atravancado uma reflexão numa nova lógica. Temos sofrido vários retrocessos que os cidadãos brasileiros precisariam sentir vergonha, como discutir a cura gay, ou pensar-se que o sujeito que faz uso de álcool e outras drogas possa estar acometido de qualquer entidade maligna, e coisas assim. Temos sofrido quase um desmanche da política de saúde mental.

A legalização recente do consumo de maconha no Uruguai e no estado norteamericano do Colorado pode ser um indicativo de que a política antidrogas baseadas na repressão está perdendo força?

O Brasil não vejo assim. Penso que em algum momento vamos discutir isso, já que somos muito influenciados por posições de fora. Temos bons avanços mas não concretizamos porque ficamos no espelho do outro. Não vejo bons momentos no que diz respeito às drogas. A associação brasileira de saúde mental não amadureceu essa discussão mas eu penso que devemos pensar na legalização de todas as drogas. Mas o Estado tem que regular, para que a gente não coloque um garoto de 10 anos trabalhando na ‘biqueira’, em situação de vulnerabilidade, porque ele é o soldado, ele é que vai morrer.Enquanto a gente não for honesto, sair desse lugar da hipocrisia, vamos continuar matando negros e pobres no país, porque a maconha já esta legalizada em Copacabana, na Avenida Paulista, em Boa Viagem, mas ela não está legalizada nas periferias. Ali quando um garoto é pego com uma ‘ponta’ isso já justifica sua morte, ou no mínimo a violência contra ele. Temos assistido isso e fazemos de conta que não percebemos. Todos os garotos, adolescentes e jovens mortos nas periferias, quando anunciada sua morte nos canais midiáticos, ele é sempre suspeito de fazer parte do trafico de drogas, sempre. A gente tem que perceber isso, porque quanto autorizamos essa política contra as drogas somos cúmplices desses assassinatos.

Fonte: Fiocruz

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