Os cem dias do novo governo, Acampamento Terra Livre e o STF

Os povos indígenas estão, entre os tantos segmentos empobrecidos, aguardando pelos bons anúncios quanto às demarcações de terras e à reconstrução das políticas assistenciais.

Acampamento Terra Livre 2019. Foto: Christian Braga/MNI

Por Roberto Liebgott e Ivan Cesar Cima, Cimi Sul.

O governo Lula, logo em seu início, passou por graves ameaças. Os extremistas – bolsonaristas – buscaram amendrontar os integrantes dos Três Poderes e destituir o governo que fora democraticamente eleito. Felizmente, desta vez, as elites, o mercado financeiro e as mídias hegemônicas não aderiram as tentativas de golpe.

Depois da invasão, dos saques e depredações dos palácios, a violência foi contornada com as prisões de centenas de extremistas e, aos poucos, o ambiente acabou sendo normalizado.

Agora, passados cem dias de governo, sobre o qual havia imensas expectativas, especialmente pelas propostas e promessas de soluções aos graves problemas enfrentados pelas pessoas mais pobres do Brasil, nos deparamos com uma realidade ainda desafiadora. Apesar da grande visibilidade das temáticas ambientais e indígenas, inclusive no cenário internacional, o horizonte de políticas efetivas nestas áreas ainda é nebuloso.

Os povos indígenas estão, entre os tantos segmentos empobrecidos, aguardando pelos bons anúncios quanto às demarcações de terras e à reconstrução das políticas assistenciais, compensando, com isso, a nefasta ausência do Estado na educação, saúde, atividades produtivas, combate à fome, proteção, fiscalização das terras e preservação ambiental – omissões que, apesar de históricas, foram duramente agravadas durante o último governo.

Os cem dias do governo não devem ser o parâmetro para medir ou avaliar as soluções de todos os problemas. Mas poderiam sinalizar aos povos – além do combate ao garimpo na terra Yanomami, que não se resolve – um plano de demarcação das terras e de garantia, aos indígenas, da sua posse e usufruto exclusivo. O governo parece, inclusive, ter esquecido o anúncio, em 2 de janeiro de 2023, quando informou que homologaria, imediatamente, 13 terras indígenas.

Nestes cem dias se poderia, ao menos, explicitar um planejamento de trabalho acerca dos procedimentos a serem adotados e, com eles, responder às demandas indígenas, de pelo menos 600 demarcações pendentes. Além disso, o governo deveria informar o que fez ou fará para combater as invasões e a devastação dos territórios demarcados, inclusive dos povos isolados ou de pouco contato.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), anunciou a realização do Acampamento Terra Livre (ATL) nos dias 24 a 28 de abril. Este evento ocorre para expor aos governantes e a sociedade às dramáticas realidades dos povos indígenas no Brasil e, ao mesmo tempo, exigir respeito e o cumprimento da Constituição Federal no que tange à garantia dos seus direitos constitucionais.

Os Acampamentos Terra Livre tiveram seu início no ano de 2003, com a mobilização de lideranças Kaingang, Guarani e Xokleng do sul do Brasil, que na oportunidade reivindicavam as demarcações de terras. Eles acamparam, pela primeira vez, em frente ao Ministério da Justiça, que, através de assessores, inclusive indigenistas, tentaram demover as delegações de líderes da iniciativa de se manterem acampados. É necessário ressaltar que as terras dos povos e comunidades das regiões Sul, Sudeste e do Mato Grosso do Sul continuam, até hoje, com os procedimentos demarcatórios embargados na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ou na Casa Civil, ou no Poder Judiciário.

Naquele ano de 2003, iniciava-se o primeiro governo Lula, que pouco fez pelos direitos indígenas. Agora, passados vinte anos, Lula celebra cem dias de seu terceiro mandato, depois que o país passou por um longo tempo de brutais turbulências na política, na economia, educação, saúde, cultura e meio ambiente.

Neste período de vinte anos, foi aventado o debate acerca da tese anti-indígena do marco temporal, gerando inseguranças e incertezas – e, como consequência, a paralisação das demarcações de terras. Pela tese do marco temporal, os indígenas somente teriam direito à demarcação de terra se, na data de promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, estivessem na posse da área reivindicada.

Caso não as ocupassem nessa data deveriam, ao menos, estarem lutando física ou juridicamente por ela, o chamado “renitente esbulho” – uma exigência espúria, dado que, à época, o Brasil recém saía de uma ditadura durante a qual os povos eram submetidos à tutela do Estado.

Os poderes Judiciário e Executivo, ao logo destes últimos vinte anos, se posicionaram, em geral, ao lado dos saqueadores de terras e da natureza e fomentaram, com essa postura, a violência e as variadas formas de agressões aos 305 povos indígenas no país. Foi assim com a implementação de grandes empreendimentos que afetaram terras e comunidades indígenas, a exemplo de Belo Monte.

No âmbito do Poder Legislativo, bancadas poderosas tentaram, através de proposições legislativas, retirar direitos ou impor a mineração em terras indígenas. Também nunca deixaram de perseguir lideranças indígenas, os sem terras, quilombolas, militantes, indigenistas, missionários e missionárias através da criminalização das lutas via Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) – sendo a principal delas, a da Funai e do Incra.

Depois dos dois mandatos de Lula, vieram as eleições de Dilma, que não chegou ao final do segundo governo porque as elites que a sustentavam mudaram de ideia e decidiram afastá-la do cargo, com o chamado golpe.

Desde então, se abriu o flanco para a extrema direita governar, com Temer, dois anos, e depois o inominável. Foram anos sombrios para todas as pessoas pobres, pretas, indígenas e quilombolas. Mas as elites, como sempre, degustaram dos privilégios e da fartura.

Vinte anos sem demarcação de terras, vinte anos onde se buscou, de todos os modos, retirar direitos constitucionais, desterritorializar e “integrar” os indígenas à sociedade envolvente.

Vinte anos de incêndios, derrubadas de florestas, envenenamento das águas, contaminação de alimentos por agrotóxicos, pela transgenia. São vinte anos de destruição.

O Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu, depois de grandes incertezas e injustiças no indigenismo, que a solução para a pacificação dos procedimentos e processos de demarcações de terras seria dada pelo plenário da Corte Suprema, através do julgamento de um Recurso Extraordinário (RE) envolvendo um litígio fundiário do estado de Santa Catarina contra a demarcação de uma parcela do território Xokleng.

O julgamento do RE 1.017.365, de repercussão geral, se arrasta há mais de dois anos. Iniciado em 2021, foi interrompido várias vezes. Recomeçou com voto do ministro relator, Edson Fachin, contra o marco temporal, mas acabou novamente interrompido. Meses depois, foi proferido um segundo voto, do ministro Nunes Marques, pela manutenção da tese, portanto contra os direitos originários dos primeiros habitantes do Brasil. Sobreveio outro pedido de vistas, do ministro Alexandre de Moraes, e a interrupção parece não ter mais fim.

Enquanto isso, a Funai não demarcou terras e os indígenas permaneceram com suas vidas em risco permanente, pois prevalece a ideia de que há um marco temporal que vai regular os seus direitos. Durante o governo Bolsonaro, inclusive, a Advocacia-Geral da União (AGU) chegou a expedir um parecer determinando a paralisação de todo e qualquer processo de demarcação de terras – o Parecer 763, cuja revogação é cobrada pelos povos e prometida pelo governo, mas ainda não foi efetivada.

Vinte anos depois, os Acampamentos Terra Livre se tornaram a mais expressiva mobilização dos povos do Brasil, chamando a atenção do mundo para as pautas da vida e contra a violência, a morte e o genocídio.

Agora, vinte anos depois, temos este terceiro mandato de Lula presidente, que manifestou interesse e preocupação com os povos originários e, em função disso, criou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Apesar da importante iniciativa do governo, a saga é a mesma, ou seja, os povos lutam pelas terras que não lhes foram demarcadas. Há, e todos sabem disso, interesses poderosos contra esse direito fundamental, previsto na Constituição Federal de 1988, artigo 231.

No entanto, nada justifica a usurpação e a negação da garantia desse direito. É por conta desse contexto que o genocídio Yanomami persiste; que o genocídio contra os Guarani e Kaiowá persiste; que o genocídio contra os povos isolados persiste; que o genocídio contra o povo negro persiste.

Não há um remédio, ou uma solução única, para as questões fundiárias envolvendo os povos originários e comunidades tradicionais no país. Mas há, sem dúvida, a mais urgente iniciativa a ser adotada: a retomada, pelo STF, do julgamento de repercussão geral acerca do indigenato – direitos originários – e da tese do marco temporal.

O STF precisa pautar esse julgamento e definir se os direitos indígenas são soberanos ou se as teses anti-indígenas prevalecerão. A falta de uma definição vem gerando inseguranças, incertezas e fomentando as mais graves formas de violências contra os povos indígenas e quilombolas: assassinatos, espancamentos, estupros, ameaças, invasões, destruição do patrimônio público, desassistência e omissão generalizada dos órgãos responsáveis pela política indigenista.

O Acampamento Terra Livre de 2023 terá, certamente, como uma pauta prioritária, a retomada do julgamento do processo de repercussão geral pelo STF.

Sem essa solução jurídica, que precisa ser dada pelo Poder Judiciário, nem o MPI e muito menos a Funai terão força política, administrativa e legislativa para conduzir ações e medidas que garantam os direitos indígenas hoje, amanhã e no futuro.

Passados os cem dias do terceiro governo de Lula, não é pedir demais a demarcação das terras e que se assuma o compromisso de atuar contra o marco temporal e pela retomada do julgamento de repercussão geral no STF.

Porto Alegre (RS), 13 de abril de 2023

 

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