“O grande desafio é a cultura popular ser reconhecida” diz Silvério Pessoa

O pernambucano já cantou com artistas como Elba Ramalho, Dominguinhos, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Lenine - Créditos: Divulgação
O pernambucano já cantou com artistas como Elba Ramalho, Dominguinhos, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Lenine / Divulgação

Por Rani de Mendonça

Silvério Pessoa é de Carpina, na zona da mata norte de Pernambuco. Influenciado musicalmente pela própria mãe e avó, o artista participou do movimento mangue beat com a banda Cascabulho e hoje transita entre diversos ritmos da cultura popular. Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco, Silvério falou dos desafios da valorização da cultura no estado.

Brasil de Fato – Como você chegou à música? Quem é Silvério Pessoa musicalmente falando?

Silvério Pessoa – Minha carreira é fruto de uma trajetória natural. Minha mãe foi professora de acordeom, minha avó foi cantora de rádio aqui, na Rádio Clube de Pernambuco, no programa de Tavares Maciel, ela meio que fazia uma suplência de cantora de rádio, quando as cantoras faltavam, não podiam ir. Ela substituía Maria Galvão, que era muito querida aqui no Recife. Eu sou oriundo da mata norte aqui de Pernambuco, de Carpina, ouvia a programação da Rádio Planalto o tempo todo no rádio de pilha no sítio da minha avó, minha outra avó, por parte de pai, vovó Alaíde. Então todo esse ambiente sonoro era muito corriqueiro, muito natural na família da gente, no sítio onde a gente viveu muitos anos a colheita da mandioca pra fazer farinha, para fazer beiju. Na casa de farinha normalmente tinha um triozinho de pé de serra, um acordeonista, um sanfoneiro, o triangueiro, era uma festa assim, varava a madrugada. E a programação da Rádio Planalto meio que emblematizou ouvir Luiz Gonzaga, Jacinto Silva, Trio Nordestino, Dominguinhos, Marines. E quando eu separei dos meus pais e vim morar aqui no Recife, minha vó fazia saraus, convidava as pessoas pra cantar, declamar poesia, e eu cantava ainda novinho, com cinco, seis anos de idade. Minha trajetória foi muito dentro desse ambiente natural, não foi planejado: “Ah, vou ser artista, vou ser cantor”. De repente eu percebi que eu poderia criar uma música, compor, pegar o violão e cantar, inventar músicas e foi uma coisa muito natural, muito espontânea. Na realidade, pegando uma nave assim no tempo, minha carreira, eu poderia dizer que é uma carreira sólida dentro da estética que eu acredito, da música regional, sendo universal mesmo, dialogando com outros ritmos. A música do povo da gente que dialoga com o rock, eletrônica, hip hop, funk, com tudo. Eu não acredito numa cultura popular fechada, acho fundamental o diálogo e acho que o movimento mangue beat foi fundamental pra isso, Chico Science tinha uma sacada muito legal, desencaretou mesmo a cena musical daqui.

BdF – Dentro do mangue beat você fez uma participação muito ativa com o Cascabulho. Quais os desafios da cultura popular nesse cenário político, que é diferente da década de 90, mas é também um contexto de crise?

Silvério – A cultura popular deixou de fazer parte dos terreiros, dos quintais, das feiras, e ela se transformou em espetáculo público. Isso foi na dança, na música, na culinária, até pouco tempo não existia restaurante de comida regional. Você ia pra feira comer sarapatel, carne de bode. Hoje o restaurante mais sofisticado tem um prato regional. Esse fenômeno é resultante da globalização, naturalmente, a economia mexeu muito com as matrizes da cultura popular. Acho que o grande desafio é a cultura popular ser reconhecida nas políticas públicas. Eu acho as políticas culturais muito tímidas, muito incipientes em relação ao que se produz nesse âmbito, nesse campo da cultura popular. Ninguém vai encontrar um arquiteto, um médico, um engenheiro fazendo cultura popular naturalmente, geralmente são pessoas pobres, que vem de uma classe pobre. O mestre de maracatu, o mestre de cavalo marinho, a rainha do maracatu são advindas de uma classe economicamente sacrificada. Pedreiros, cortadores de cana que fazem o brinquedo, a brincadeira do cavalo marinho, o maracatu do baque solto, essas coisas que a gente costuma ver nas festas sazonais. Então pra mim, o grande desafio é a cultura manter a sua hereditariedade. Hoje a gente tem trabalhos, pesquisas, artigos falando da grande dificuldade de um mestre ou rainha de maracatu, de uma cirandeira, de um mestre de cavalo marinho passar sua tradição pra um filho ou filha adolescente. A tecnologia está aí envolvendo tudo, então é um grande desafio essa hereditariedade. Diga-se de passagem que os povos de terreiro estão tendo uma grande dificuldade de passar toda a sua religiosidade popular para as novas gerações. Está todo mundo interessado em tecnologia, em tudo, e eu acho isso outro grande desafio. Então é isso, manter a hereditariedade num mundo globalizado e ser reconhecida com mais substância pelas políticas públicas.

BdF – Quais as suas referências musicais nesse meio da cultura popular?

Silvério – Eu não sei como eu continuo sobrevivendo de música e morando em Pernambuco, em Recife, eu não sei. É um grande desafio e um malabarismo que eu faço. Na verdade eu faço parte de uma geração que não foi engessada por gravadoras. Eu pergunto a alguns amigos que tem nome nacional, eu nem gosto muito disso de nome nacional, regional, local, esse engavetamento prejudica muito a gente. Mas ninguém lança disco novo mais, não tem a rádio pra tocar. Eu faço parte de uma geração que utiliza muito as redes sociais, utiliza muito a internet e adotou uma filosofia punk mesmo, “faça você mesmo”, corra atrás. E o perfil do artista mudou muito. Eu tenho grandes referências de ídolos que tinham uma carreira toda gestada e veiculada pela gravadora. Hoje não. Hoje nós temos um mercado amplo na produção de estúdios, de mixagem, masterização, facilmente hoje você grava sua música e veicula e eu tento transcender as festas sazonais. Eu não trabalho só no período de São João ou Carnaval, mas eu exercito minha cidadania de me apresentar no carnaval porque eu tenho um projeto sobre música carnavalesca. É venoso, eu não pesquiso sobre isso, minha avó cantava frevo, eu canto, sou um bom intérprete de frevo, eu tenho essa consciência. E no São João eu tenho uma obra toda calcada na regionalidade, eu interpreto Jacinto Silva, tenho um disco cantando Jackson do Pandeiro, que foi um sonho realizado, o primeiro disco do Cascabulho foi em homenagem à Jackson. Eu convivi com Jacinto Silva, cantei com Dominguinhos, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, com Elba, Lenine, então eu tenho uma regionalidade. No São João eu tenho um espetáculo para apresentar, mas minha carreira transcende isso.

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