O flerte do “lugar de fala” com a brutalidade israelense

Indignação moral não depende de compartilhar identidade: é urgente assumir a luta contra os crimes à humanidade cometidos por Tel Aviv. A justiça com o povo palestino, vítima de genocídio há 71 anos, é também nossa responsabilidade

Beit Ommar, casa de Ali Alami destruída por forças de ocupação de Israel, Cisjordânia ocupada

Por Berenice Bento.

Os dados sobre violações dos Direitos Humanos do povo palestino pelo Estado de Israel são alarmantes. Talvez “violação” não seja a melhor definição. Ações continuadas para eliminação de um povo, acredito, mereçam outro nome: genocídio. Pensei, inicialmente, em focar-me na situação dos presos palestinos. O sistema prisional israelense para os palestinos é um híbrido de Guantánamo e Abu Ghraib. Nas 19 prisões, nos 3 centros de detenção, nos 4 centros de interrogatório e nas duas cortes militares, onde estão 5.150 palestinos (entre eles 210 crianças), o desrespeito ao Direito Internacional e as Convenções Internacionais é a regra.

No entanto, mudei o eixo de minha exposição. Gostaria de falar para os defensores dos Direitos Humanos no Brasil e demandar posições mais firmes quando se discute a questão da Palestina e a nossa responsabilidade com a Nakba continuada.

Daí o título de minha contribuição: “O flerte do ‘lugar de fala’ com o sionismo”.

Quem estou nomeando de “defensores dos Direitos Humanos”? Pode-se considerar os ativistas e as ativistas dos movimentos negros, dos movimentos LGBTI+, os feminismos, as lutas indígenas, como defensores e ativistas dos direitos humanos? Potencialmente, sim. Pergunto-me, contudo, se é possível atribuir este reconhecimento (defensor dos direitos humanos) a sujeitos coletivos que estão circunscritos aos marcos nacionais.

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Seria a minha identidade nacional o critério de verdade para definir por onde conduzo minha sensibilidade política?

Será que produzo uma hierarquia da dor e sofro, me sinto interpelada, exclusivamente por aqueles e aquelas que trazem nos seus corpos e nas suas biografias, elementos compartilhados por mim?

Sitiar minha atuação a um determinado “lugar de fala”, não seria a própria negação de ativista dos Direitos Humanos?

Uma das qualidades do ativismo dos direitos humanos, acredito, é ter a capacidade de responder eticamente aos sofrimentos distantes e, ao fazer tal gesto, torná-los próximos. Ao tornar-me responsável por aqueles que não estão na minha vida cotidiana, mas que me demandam o reconhecimento de sua dor, estou dizendo-lhes: sua vida importa para minha vida.

O jogo entre “distância” e “proximidade” tem sido acionado reiteradamente. Por que eu tenho que me preocupar com o que acontece na Palestina se aqui temos nossas mazelas e nossas lutas? Alguns chegam a sugerir que há um “excesso” de ativismo em relação à Palestina.

A quem estamos ligados eticamente?

Se a indignação está vinculada e condicionada à familiaridade (portanto, proximidade), ou se a interpelação de um povo que está sob domínio colonial há 71 anos, espalhado pelo mundo e em 59 campos de refugiados, não sensibilizar-me, há algo de errado nos sentidos de defensor de direitos humanos que atribuo.

Quando uma parte do globo se indigna organizadamente contra injustiças que acontecem em outras partes do mundo, contribui para alterar a correlação de forças onde estas opressões acontecem. A luta contra o apartheid na África do Sul e a Guerra do Vietnã são exemplos da força da indignação global, da solidariedade. Conforme apontou Judith Butler, este tipo de indignação moral não depende do compartilhamento de uma língua ou de uma proximidade física.

Parece-me portanto, que palavra chave aqui é “solidariedade”, no âmbito da relacionalidade ética. O sofrimento do outro me atravessa, me constitui. Isso faz com que a minha vida só tenha sentido numa relação de interpendência com o outro. O outro, já não é um outro, mas sou eu mesma. Não porque eu seja palestina. Não preciso acionar o “lugar de fala” para sentir-me interpelada, convocada. Não é necessário afirmar “Somos todos palestinos” para que a solidariedade exista.

Eu posso me sentir responsável pelo destino do povo palestino, sem afirmar “sou palestina”. E esta operação de identificação ético-política transforma o distante no próximo. Não porque eu me tornei palestina, mas porque saber da Palestina e sentir-me responsável, passa a constituir-me no mundo.

Mais do que anunciar este lugar identitário (“eu sou”), trata-se de construir identificações políticas que terão efeitos pragmáticos na cotidianidade da minha existência.

Por outro lado, comparações do tipo: “Gaza é aqui!” são importantes, mas não podem ser condicionantes do nosso engajamento. Sem dúvida, salta aos olhos a proximidade das políticas de extermínio do Estado brasileiro com as do Estado de Israel. No Rio de Janeiro, em 2019 (e ainda estamos em outubro), 18 crianças foram baleadas, sendo que cinco morreram. Apenas no último dia 04/10 (sexta-feira), seis pessoas foram atingidas por “balas perdidas” em regiões periféricas do Rio de Janeiro, sendo que um homem morreu.

Quando conheci os campos de refugiados na Cisjordânia, a primeira imagem aproximativa que me veio à mente foram as comunidades cariocas. Me pergunto, no entanto: E se não houvesse a possibilidade de fazer tais comparações? Ser afetada pelo sofrimento dos outros, não é apenas porque nos colocamos em seu lugar.

Talvez se trate de um momento em que uma profunda ligação humanizadora é evidenciada e eu me veja implicada visceralmente em vidas que não são como a minha. E isso acontece, até mesmo sem saber falar a língua de onde vem o apelo de solidariedade. Então, Gaza pode ser aqui, mas se não for, seguirei lutando pelos os direitos dos palestinos a uma vida não precária.

Outra vez, cito Judith Butler, uma judia antissionista, “(…) se tenho um vínculo apenas com aqueles que estão próximos de mim, que já me são familiares, então minha ética é invariavelmente paroquial, comunitária e excludente”¹.

Recentemente, tivemos um triste caso de negação de solidariedade ao povo palestino. Foi uma dupla negação. Para justificar tal negação foram acionados argumentos a partir do “lugar de fala” e do jogo entre proximidade/distância. O cantor Milton Nascimento programou um concerto para Tel Aviv. Começamos, ativistas do movimento pelo Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel, o BDS3, uma campanha de sensibilização do artista para o sofrimento do povo palestino. O BDS é um movimento pacífico, organizado pela sociedade civil palestina e inspirado na luta antiapartheid da África do Sul.

Roger Waters, um dos apoiadores do movimento pelo Boicote, escreveu-lhe uma carta na qual reiterava o nosso pedido de cancelamento de sua ida. Milton Nascimento não cancelou o evento e, de fato, mostrou-se blindado aos pedidos de solidariedade. Esta foi a primeira negação.

A segunda negação veio de uma ativista/pesquisadora que acusou Roger Waters de racismo. Afinal, ele, um homem branco, europeu, privilegiado, pressionando um homem negro, brasileiro para boicotar um país que tem políticas de opressão próximas às que o Estado brasileiro implementa, objetivando a eliminação da população negra. Então, por que este homem branco, europeu, privilegiado não conclama o mundo para boicotar o Brasil?

Estas foram, em linhas gerais, os argumentos em defesa da posição de Milton Nascimento à sua negação de solidariedade ao povo palestino. Vou, portanto, considerar esta posição como um caso exemplar de negação de solidariedade, e que, acredito, seja um dos efeitos mais trágicos de uma interpretação essencializada e essencializadora do chamado “lugar de fala”. Apesar da situação de segregação em que vivem os palestinos em Israel e do colonialismo israelense, a força da interpelação por solidariedade se esvai porque chegou através da voz de um homem branco.

Roger Waters, assim como outros apoiadores do Movimento pelo Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel (a exemplo de Angela Davis e Judith Butler) são perseguidos pelos sionistas que os acusam de antissemitismo. Aqui no Brasil, os sionistas perseguem defensores dos Direitos Humanos reiteradamente, a exemplo do ex-deputado federal Milton Temer e do professor Jamal Harfoush.

É importante ressaltar, que não tenho nenhuma dúvida da importância da luta pelo protagonismo, visibilidade e empoderamento de populações que foram historicamente silenciadas nos espaços de poder, uma das questões que ativista do chamado “lugar de fala” pauta.

O marcador “raça” em Israel não tem o mesmo percurso histórico-político que no Brasil. Não paira qualquer dúvida sobre o caráter racista do Estado de Israel. Mas é importante pontuar os níveis diferenciados de racismo que acontecem no seu interior. Israel nasceu como um projeto político de judeus brancos europeus, os azkenazim, apoiados pelo imperialismo inglês.

Vale perguntar: Há entre os judeus israelenses, uma distribuição diferencial de cidadania a partir do marcador racial? Sem dúvida que há. As massivas manifestações de judeus negros provenientes da África, principalmente da Etiópia, em junho de 2015, demandando políticas públicas inclusivas assim demonstraram. Contudo, ao exibirem cartazes com frases do tipo: “Não somos árabes! Somos judeus!”, terminaram por reiterar e tornar-se parte estruturante do processo continuada de despossessão do povo palestino. O outro desumanizado é o palestino que representa cerca de 23% da população de Israel.

Não terei tempo para discutir outro lado do racismo estrutural do Estado de Israel: a negação à entrada de imigrantes. Um deputado do Likud, partido de extrema direita do ex-primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, considera a presença de imigrantes em Israel como “um câncer que se prolifera” e que deve ser extirpado.

Reverbero a pergunta anunciada antes: Por que não boicotar o Brasil? Esta é a pergunta preferida dos sionistas e dos seus simpatizantes. Apontam que nosso ativismo pela autodeterminação do povo palestino, pelo direito ao retorno dos palestinos que sobreviveram às ondas de limpeza étnica que tiveram início em 1947, e as denúncias que fazemos da situação de segregação em que vivem os palestinos-israelenses, não passam de uma cortina de fumaça para o antissemitismo.

Ora, as populações vítimas das necropolíticas promovidas pelo Estado brasileiro, a exemplo, da negra, dos gays, lésbicas, travestis, indígenas, lideranças do campo, não têm a pauta do boicote. Se estas populações compreenderem, qualquer uma delas, que o chamado pelo boicote internacional ao Brasil seja um caminho, vamos ter que nos abrir obrigatoriamente para este chamado e para esta tática de luta legítima. Acredito que se durante a Ditadura Militar tivéssemos conseguindo sensibilizar o mundo para os crimes que estavam sendo cometidos aqui, vidas teriam sido salvas. O que temos feito ao apoiar o Movimento pelo Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel? Atender à solicitação ética, ao apelo, do povo palestino.

A economia da proximidade (familiaridade) e distanciamento faz com que haja um tipo de “nacionalização” da noção do fazer política. Estamos diante de uma operação seletiva da relacionalidade ética e da solidariedade. A seletividade se dar a partir de elementos que considero importantes para minha existência aqui. Ora, se sou gay e se em Israel os gays têm seus direito respeitados, por que vou aderir a uma campanha de boicote? Afinal, que importância tem se o gay é um soldado do exército genocida israelense? Ele é livre para exercitar sua sexualidade, algo pelo qual estou lutando aqui no Brasil. O meu lugar de fala “aqui”, termina contribuindo, na minha seletividade ética, para um lugar de morte “lá”.

Talvez a dificuldade esteja em entender que Israel opera formas distintas de necropolíticas: internamente, implementa políticas racistas, ou seja, distribui diferencialmente os bens materiais e simbólicos entre os cidadãos judeus e os palestinos-israelenses.

Mas, e Gaza, e a Cisjordânia, e Jerusalém Oriental? Aqui nos movemos entre checkpoints, prisões sem processo, processos em cortes militares (seja para crianças ou adultos), muros, cercas, demolições de casas, execuções sumárias, humilhações públicas, roubo continuado das terras palestinas pelos colonos, contínuos deslocamentos obrigatórios da população beduíno, ferimentos, mutilações, assassinatos. Desde que a Marcha do Retorno começou em março de 2018, na fronteira entre Gaza e Israel, já foram assassinados 210 palestinos, sendo que 46 eram crianças. O ponto de unidade entre as diversas técnicas de matar e fazer morrer é o desejo de eliminação total da presença palestina.

Assim, entre políticas coloniais e de segregação já se passaram 71 anos. Nossos responsáveis pelo destino da Palestina. O óbvio não existe mais. É preciso dizê-lo, repeti-lo: Palestina é a última colônia do Oriente Médio; Os palestinos residentes em Israel vivem sob um sistema de segregação; Os palestinos em diáspora têm direito ao retorno; E Israel deve ser responsabilizado por seus contínuos crimes contra a humanidade. Não tenho dúvida que estes pontos são básicos, portanto, indispensáveis para aqueles e aquelas que hoje se identificam como defensores dos Direitos Humanos. Não há qualquer possibilidade de relativizar aqui.

Há uma impossibilidade ética em definir-se sionista, ou mesmo simpatizante, e defensor dos direitos humanos. Parece-me que esta foi a compreensão que levou a Linn da Quebrada e tantos outros artistas a cancelaram suas performances em Israel, este país-Cemitério. Isso mesmo: Israel é um cemitério: sob suas ruas, cidades, universidades, há corpos de palestinos, vilas destruídas, oliveiras queimadas, memórias apagadas.

Uma importante coincidência acontece nessa semana. Há 52 anos era assassinado um argentino que abraçou a luta pela libertação do povo cubano e depois seguiu lutando na Bolívia. Aos 39 anos Che Guevara, um homem que não condicionou suas lutas aos marcos da identidade nacional, foi assassinado.

Ele nos aconselhava: “Acima de tudo, procurem sentir no mais profundo de vocês, qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário.”

Diria, inspirada por Che, que a maior qualidade de um ativista dos direitos humanos é não hierarquizar a dor e a indignação, não condicioná-las a uma nacionalidade, a uma marca identitária, a um lugar de fala. A liberdade e a justiça social para Palestina é nossa responsabilidade. E transformar palavras em gestos é clamar pelo boicote total (acadêmico, cultura e econômico) a Israel.

Concluo com um trecho de uma entrevista de Nelson Mandela à CBSNews:

“As Nações Unidas tomaram uma medida forte contra o apartheid e, ao longo dos anos, um consenso internacional foi construído, o que ajudou a acabar com esse sistema. Mas nós sabemos muito bem que nossa liberdade é incompleta sem que haja liberdade para os palestinos.”


[1] Judith Butler, Corpos em aliança e a política das ruas: Notas sobre uma teoria performativa de assembleia, São Paulo: Civilização Brasileira, 2018, p. 116.

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