O coração de Desterro é território indígena. Por Viegas Fernandes da Costa.

Imagem: Divulgação PMF

Por Viegas Fernandes da Costa.

Na Desterro que habito, outro dia, insistiram os homens brancos de terno que a cidade ficaria mais bonita se arrancassem os paralelepípedos das ruas centrais. Todo o granito calcetado pelo suor e mãos do povo negro ainda nos idos do século dezenove e que contorna a Praça XV e as ruas em seu entorno, já não serve, já não reflete a luz da nova pólis. O granito que bebeu o sangue do jornalista Crispim Mira, que conheceu as solas dos sapatos de Cruz e Sousa, Victor Meireles, Gustavo de Lacerda, Antonieta de Barros e da sua irmã Leonor, que reverberou a indignação das gentes de Desterro contra os ditadores naquele 30 de novembro de 1979, chamando no tapa o general que afirmou preferir o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo. Para os homens brancos de terno que alugam o paço, o passado precisa ser arrancado. São homens que pilotam o presente sem espelhos retrovisores, e por isso a tragédia está sempre anunciada.

Houve protestos, registre-se. Os chatos que amam a memória e entendem sua importância para juntar pessoas e tornar vivas as comunidades. Por isso remendou-se o projeto dos homens brancos de terno que alugam o paço, e parte dos paralelepípedos ficaram, não sem antes serem remexidos, lavados e enxugados. As mãos de calceteiros, raras, não foram encontradas, e as pedras devolvidas com pouco prumo ao leito das ruas, antigos caminhos por onde passaram pessoas, cavalos, carroças, bondes e os pneumáticos dos primeiros Ford T desembarcados na Ilha de Santa Catarina. Mas ficaram, em meio às lajotas modernosas e afrontando o mau gosto destes homens que alugam paços e pensam coisas descartáveis.

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Ocorre, entretanto, que não se remove impunemente um granito calcetado a mais de século, e eis que neste remexer de pedras e terra, no entorno desta praça que já conheceu pelourinho e até bombardeio de canhões, afloraram as calçadas dos anos de mil e oitocentos, ali, devidamente sepultadas como sói sepultar a quem se ama. As calçadas quiçá construídas para receber o imperador em sua visita à província, para que não sujasse na lama da Desterro suas solas reais, para que a vila figurasse ares de cidade. Não sabemos, e levanto aqui, com certo grau de licença poética, suspeitas de finalidades. Mas há o fato, as pedras estão lá, eu as vi, são antigas e falam de outra cidade, daquela que ainda viria a conhecer os crimes de Floriano Peixoto e se lambuzar com o sangue vertido no troar da fuzilaria. Da cidade que trairia sua história e mudaria de nome, este nome impronunciável que carrega hoje.

Ao ver as pedras ali alinhadas, meio metro abaixo do granito secular, penso que as gentes que nos antecederam, ao abrirem espaço para o futuro, não necessitavam de arrancar o passado, como ocorreu aos nossos contemporâneos homens brancos e de terno que alugam o paço. Àquelas gentes bastou a sepultura, o novo cobrindo o antigo, e o antigo fundando a modernidade do granito. Aquelas gentes transformaram a paisagem sem precisar arrancar o engenho e o suor daqueles que os antecederam, apenas o cobriram. O acaso nos possibilitou exumar Desterro, e toda Praça XV, e todo seu entorno, na paisagem que a luz toca e na história que persiste sepulta, é espaço de memória e possibilidade de revelações importantes.

Sim, revelações importantes, e a maior delas conto agora.

No cavoucar da terra, no ranger dos dentes da retroescavadeira que virou ao avesso uma das ruas mais antigas de Desterro, outrora chamada Rua da Cadeia, hoje Tiradentes, a surpreendente descoberta de um acampamento guarani, ali, onde antes a terra margeava o rio que depois chamaram de “da Bulha” e que as novas gerações desconhecem porque aprisionado em concreto e recoberto de piche. Cerâmicas e pedras de uma fogueira esperaram alguns séculos sob a terra para atestar que o coração de Desterro é território indígena desde os tempos deslembrados pelos homens brancos que escravizaram indígenas e negros e os amarravam ao pelourinho na terra que hoje nutre as raízes da velha figueira. Ali (eu deveria dizer aqui, porque é nesta mesma Tiradentes que me sento para escrever estas linhas), tão perto da Praça XV e do antigo Paço da Câmara e da Cadeia, guaranis acenderam sua fogueira e cozinharam suas comidas e conversaram ao redor do fogo cujo crepitar invadiu a madrugada. Chegaram neste lugar de encontros da terra, do rio e do mar, caminhando deste as planícies paraguaias em busca da terra sem males. Quantas vezes repetiram o gesto de acender o fogo? Quantas memórias? E para onde foram dormir seus corpos? Talvez o exato local onde hoje está o sebo Desterrados, do meu amigo Tasso, fosse o lugar da Opy, a casa de reza, e todo coração de Desterro uma grande Tekoá.

Os homens brancos de terno que alugam o paço ousaram cavoucar a terra, quiseram arrancar o passado e acabaram por exumar nossas memórias. As sementes ancestrais chacoalham e já não nos deixam mais dormir. Desterro é território indígena que usurpamos, enterramos e tentamos apagar. Desterro é Meiembipe, sempre foi.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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