Narrativa é o escambau, o que existe é o discurso do golpe. Por Letícia Sallorenzo.

O que está acontecendo no país hoje é o discurso do golpe. Não tem narrativa, tem construção de discurso, que é um processo muito mais robusto e estruturado.

Por Letícia Sallorenzo.

Bolsonaro tá pouco se lixando pro processo eleitoral brasileiro.
A ele só interessa dizer “eu desconfio, logo não presta”. É a antessala do golpe.

Pra gente entender o que tá se enunciando hoje com relação a urnas eletrônicas e eleições no Brasil, temos que voltar a 2020 nos Estados Unidos.

Há dois anos, quando viu que não teria sucesso ao tentar a reeleição, Trump mandou o caô da fraude eleitoral. “Ah, os votos por correio pipipi popopó”.

A despeito de o processo eleitoral americano ser uma peneira cheia de possibilidades de fraude pedindo pelo amor de Deus pra ganhar alguma atualização operacional, o que o Trump queria era confusão. E conseguiu, com a invasão do Capitólio no dia da proclamação do resultado das eleições americanas pelo Senado. Nesse dia, Trump patrocinou, com seu discursinho golpista e promotor de caos, um dos episódios mais tristes da história da Democracia Ocidental.

Foi uma confusão institucional, é bom que se enfatize isso. Trump promoveu o caos institucional, e queria insuflar toda a população americana para a guerra civil. Mas quem lidou com a situação foram as instituições. Sozinhas, sem o povo (esse estava sendo manipulado pelo fígado para atacar o Capitólio). Quem deveria ter ido às ruas (os eleitores americanos) ficou quietinho em casa, e não deu mote pra nenhuma alegação insana do tipo “os comunistas querem tomar a América”. As instituições fizeram o que deveriam fazer, dentro do previsto na Constituição.

Trump agiu sob instruções de Steve Bannon, que raciocinou o seguinte discurso golpista: “Se eu não ganhar, é porque foi marmelada. Vou acusar a marmelada, e vou levar no grito!” Ele tentou, mas não levou no grito.

Daí que o Bannon acredita que o discurso golpista pra levar no grito é um discurso turn-key, e quer aplicá-lo no Brasil porque sim. Pra quem não conhece essa expressão, contrato turn-key é quando você contrata uma “solução” igual à do vizinho. É uma ideia legal quando o objetivo é instalar uma central telefônica numa metrópole de tamanho médio, mas se mostra meio inviável quando você pensa, por exemplo, em sociedades (já que cada uma tem suas particularidades), democracias e estados democráticos de direito.

No Brasil, esse discurso turn-key do Bannon não cola, porque aqui estamos há 25 anos desenvolvendo uma tecnologia eleitoral à prova de jeitinho brasileiro. E, principalmente, um sistema eleitoral que vem sendo usado de maneira inquestionável e inquestionada nos últimos 25 anos por toda a sociedade brasileira, incluindo um sujeitinho específico que tantas vezes se elegeu deputado federal por essa urna eletrônica, e agora resolveu achar que  essa urna não tem transparência.

Entendam de uma vez por todas: Bolsonaro não quer transparência nem lisura no processo eleitoral. Tampouco pensa em correção do processo eleitoral. Tal qual Trump contra o Capitólio, Bolsonaro só quer saber de confusão do processo eleitoral – processo no qual, ao contrário do Trump, Bolsonaro vem confiando há 30 anos, e do qual vem se beneficiando, é sempre importante bater nessa tecla.

Então, aqui do lado racional e real da vida, nós estamos carecas de saber que as urnas são confiáveis, que o processo eleitoral é confiável, que a justiça eleitoral é confiável.

Mas do lado mitológico, mitomaníaco e irracional do gabinete do ódio, não adianta o TSE emitir um parecer magistral, com uma aula de segurança de processo, estatística, amostragem e o escambau. Pra Bolsonaro (e seus prepostos, um grupo de generais que não honram – tampouco orgulham – a Instituição do Exército), está errado e ponto.

Se Jesus Cristo e Deus descerem à Terra e declararem: “Bolsonaro, as urnas eletrônicas são confiáveis, pare de desconfiar!”, Bolsonaro vai dizer que não confia e que eles são Fake News, na verdade são emissários do demônio. É esse o discurso a ser enunciado pelo golpista.

Vejam vocês: sou analista do discurso. Estudo narrativas. E tomei um ranço descomunal com o uso indiscriminado da palavra “narrativa”. Porque os bolsonaristas a usam como sinônimo de mentira – e não é. O que está acontecendo no país hoje é o discurso do golpe. Não tem narrativa, tem construção de discurso, que é um processo muito mais robusto e estruturado. Discurso é uma ação combinada de atos verbais e não verbais, que engloba narrativa, enunciador, texto e contexto, pra deixar a definição bem simplória.

Ferramentas, instituições e pessoas: inimigos a serem abatidos no discurso populista de Bolsonaro

O discurso do Bolsonaro é claríssimo. Ele ataca em três frentes: a ferramenta, a instituição e as pessoas que cuidam das eleições brasileiras. Com objetivos bem claros e populistas: desacreditar o sistema, apresentar-se como antissistema e triunfar sobre o sistema. O problema é que triunfar sobre o sistema significa derrotar a Democracia e o Estado Democrático de Direito (e não tô nem considerando o desastre social, político, econômico e institucional que serão mais quatro anos de bozo no poder).

Bolsonaro ataca a urna porque precisa. Se ele confiar na urna e esta indicar sua derrota, ele vai ter que aceitar.  Então, desconfiar de uma ferramenta 100% confiável faz parte da ceninha republiqueta de banana que Bannon disse pra ele armar.

Bolsonaro ataca a justiça eleitoral porque, no discursinho populista barato e rastaquera que ele enuncia, não cabe confiança em instituições sólidas – pelo contrário,  é necessário bater nessas instituições para que elas se enfraqueçam e derretam feito gelatina, e ele se mostre mais forte e poderoso do que elas. Observe: matam-se instituições e elas são substituídas por uma PESSOA. O princípio da impessoalidade vai pras cucuias.

E, finalmente, já que Bolsonaro deve ser a única PESSOA a triunfar sobre o sistema, a se tomar como verdadeiro seu “projeto” de “poder”, para isso ele deve levantar suspeição sobre as pessoas a cargo do processo eleitoral. E pra gente pensar nesse ponto, é interessante voltarmos uns dez meses no tempo.

Lá em agosto, eram representantes do STF no TSE Luiz Roberto Barroso, como presidente, Edson Fachin de vice e Alexandre de Moraes “na de fora” do TSE – mas Moraes comandava os inquéritos das Fake News e dos atos antidemocráticos, o que é um problema para o projeto de Bolsonaro. Em agosto, então, Barroso e Moraes eram atacados a torto e a direito por Bolsonaro. Ninguém nem lembrava que o Fachin existia. E, desde então, o Brasil já sabia que (e estava na expectativa de) Alexandre de Moraes assumir a presidência do TSE “em 2022”.

Ocorre que a sucessão da presidência do TSE é bem tradicional, e acessível apenas a ministros “emprestados” do STF. Determina que o vice-presidente de hoje será o presidente na próxima gestão, e o presidente de saída volta para o STF.

Chegou o fevereiro de 2022, e veio a troca de gestão no TSE. O vice Fachin ascendeu à presidência, e Moraes, que “tava na de fora”, “entrou” na vice-presidência. Quem ascendeu à posição “de fora” foi Ricardo Lewandowski (que será o vice de Moraes no TSE a partir de agosto). Em fevereiro último, portanto, Barroso voltou a se dedicar exclusivamente ao STF. Não está mais no TSE.

De repente, Fachin deixou de ser o “quem?” do trio e virou um ser nefasto, no discurso do Gabinete do Ódio. Foi de repente, mesmo. Quem acompanha o ataque institucional promovido pelo Gabinete do Ódio percebeu isso. Sabe quando aconteceu? 15 de dezembro de 2021. Nesse dia, Jair Bolsonaro foi à Fiesp falar aos empresários. Na ocasião, ele meteu essa: “O Fachin votou pelo novo marco temporal, não é novidade. Trotskista, leninista. Kassio empatou.”

Esqueçam que Bolsonaro está falando do marco temporal da demarcação das terras indígenas. Isso é o que menos interessa aqui – pro próprio Bolsonaro, inclusive. (A única coisa que interessa daqui é a data em que a votação do marco temporal ocorreu: 16 de setembro de 2021.) Observem apenas como Bolsonaro qualificou Fachin: “trotskista, leninista”. E pensem: por que palavras tão específicas e de difícil pronúncia pra qualificar Fachin? Por que não simplesmente “comunista”, que serve pra tudo e qualquer coisa de qualquer jeito? Por que Bolsonaro fez questão de ser tão específico?

Resposta: porque isso é UMA SENHA. A partir desse discurso do Bolsonaro, enunciado em dezembro – e não a partir de 16 de setembro de 2021 – Fachin começou a ser atacado pelas hordas bolsonaristas. Se isso não é prova de ataque orquestrado e com a participação do Presidente da República, eu não sei o que pode ser. (fica a dica pro ministro Alexandre. E se espirrar, ministro, saúde!).

Fato é que Bolsonaro faz parte, sim, de uma rede organizada e articulada de ataque às instituições. Ele sabe do que ele está fazendo, sabe que o que está fazendo é errado, sabe que o Xandão (porque, nessa hora, o ministro Alexandre de Moraes vira Xandão) tá no pé dele pelo inquérito das Fake News e dos atos antidemocráticos, e sabe o que Xandão tá descobrindo dele.

Então, Bolsonaro ataca em três direções: ferramenta, instituição, pessoas. Com um único objetivo: desacreditar TUDO o que diz respeito a voto. Felizmente, esse discurso não está colando e estamos vendo as pesquisas de opinião apontando para a defesa e a confiança das instituições.

Ainda assim, é possível observar o discurso do Bolsonaro por dois vieses: um é esse planinho nefasto de violãozinho de história em quadrinhos, de destruir o país e reinar absoluto. Desse plano ele não pode recuar de forma alguma. Se recuar, ou ele morre ou é preso.

O outro viés é o nível de desespero do Bolsonaro ao atacar as instituições. Quanto mais desesperado, mais próximo está Xandão do encalço dele e dos filhos.

Bozo x Xandão

Com isso em mente, fica mais fácil entender por que o bozo resolveu “mandar” Xandão levantar na cerimônia do TST pra cumprimentá-lo, na quinta-feira 19 de maio. Pra mostrar “quem manda em quem”. Encenar uma força e um poder que ele tem cada vez menos.

As redes bolsonaristas foram ao delírio com esse detalhe, e ocultaram o fato de que, instantes depois, ao ser anunciado pela mestra de cerimônias do evento, Moraes foi efusivamente ovacionado por todos os presentes durante longos 30 segundos – diante da cara de [insira aqui aquele monossílabo malcriado que começa com c, seguido da última vogal] do presidente, que não o aplaudiu nem um instante.

No dia seguinte, em evento na OAB-SP, Moraes voltou a ser aplaudido – desta vez, de pé – também por cerca de 30 segundos, ao final do evento (quem quiser acompanhar, só clicar no link e avançar direto pra 8h 46 min).

A falha do discursinho populista barato de Bolsonaro é que ele precisa de inimigos para funcionar. Para isso, construiu discursivamente como seu inimigo Alexandre de Moraes. Escolher os inimigos é muito importante. E Bolsonaro escolheu mal os inimigos.

Então, “abiguinhos”, será esse o teor e o contexto do discurso do bozo, até outubro. Lembrem-se: quanto mais histérico Bolsonaro ficar, mas perto dele e dos filhos está o Xandão. Pipocas acompanham.

Recomendo a suspensão de bebidas alcoólicas até outubro, pelo menos, em respeito aos nossos respectivos fígados. Não sei vocês, mas eu escolhi não usar o fígado pra odiar, mas pra processar álcool. Mais útil.

E, por favor, avisem ao Bannon que se o plano infalível dele não funcionou nos EUA, e não vai ser aqui que vai funcionar. Larga de ser Cebolinha porque aqui é Xandão, mofí!

Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.

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