Na última década, mais de meio milhão de pessoas foram vítimas de estupro no Brasil. Somente no ano passado, foram mais de 66 mil casos, segundo dados do Anuário de Segurança Pública de 2022, divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) nesta terça-feira (28/06).
As estatísticas confirmam o machismo arraigado na sociedade brasileira – 88,2% das vítimas que notificaram o crime em 2021 eram mulheres – e revelam ainda um traço cruel e chocante: mais de 70% (37 mil) delas estavam na categoria vulnerável, que abrange pessoas consideradas incapazes de consentir o ato sexual e que inclui menores de 14 anos.
Das vítimas de estupro no Brasil em 2021, 61,2% tinham de 0 a 13 anos, sendo que nove em cada dez vítimas tinham no máximo 29 anos de idade quando sofreram a violência sexual.
As estatísticas também mostram como a violência sexual e doméstica faz parte do cotidiano do país: no caso do estupro de vulneráveis, quase 80% deles foram cometidos por conhecidos das crianças (pais, padrastos, avôs, irmãos, amigos e vizinhos).
Dois casos recentes chocaram o país e recolocaram a gravidade do problema na agenda. Uma menina de 10 anos foi estuprada e impedida de fazer o aborto legal, em Santa Catarina. Além de ter o procedimento inicialmente negado pelo sistema de saúde, a despeito de ser legal neste caso, a menina foi mantida num abrigo para evitar o aborto, numa violação cometida pelo Judiciário.
O outro caso foi da atriz Klara Castanho, de 21 anos, que foi estuprada, descobriu a gestação tardiamente e decidiu dar o bebê à adoção, o que também é uma atitude legal. Assim como a menina de Santa Catarina, a atriz foi vítima de sucessivas violências após o crime do estupro. Dados do prontuário médico de Klara vazaram, ela foi constrangida e ameaçada por uma enfermeira, e o sigilo profissional foi ignorando, expondo a privacidade da jovem, que se sentiu obrigada a publicar uma carta pública revelando o estupro.
“Estamos enxugando gelo”
“Se é preponderante o estupro de meninas, temos que falar de educação e prevenção. É muito importante que a nossa sociedade comece a enxergar que no Brasil essa violência é maior contra crianças e adolescentes do que contra mulheres. Logicamente, quando nos aprofundamos nesta questão da violência sexual, sabemos que a violência contra a mulher decorre desta violência contra as meninas”, afirma Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta e professora de direito constitucional da PUC-SP.
O Instituto Liberta, criado com objetivo de combater a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, lançou a campanha “Agora você sabe” para divulgar informações sobre essas dramáticas estatísticas da violência sexual no país, conscientizar a sociedade e estimular que as vítimas denunciem os casos.
Há pelo menos cinco anos envolvida em pesquisas sobre o tema, Luciana Temer diz ter a sensação de que o Brasil enxuga gelo. “Estamos cuidando dos sintomas, mas não da causa. A causa está ali embaixo, na educação que se dá no Brasil aos meninos e meninas.”
Constituição e normas robustas deveriam proteger crianças e mulheres
Para Ana Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana, que promove o direito integral da criança, os dois casos recentes devem ser enxergados também como exemplos de violação à Constituição, ao Código Penal, à Lei da Escuta Especializada, “além de tantas outras normais legais e convenções internacionais” que foram desrespeitadas. A menina estuprada em Santa Catarina, segundo Cifali, teve tratamento desumano e degradante por parte das instituições e seu direito à saúde não foi assegurado.
“Sexo ou ato sexual com menor de 14 anos é sempre crime, mesmo se for consentido. É sempre estupro”, explica a coordenadora jurídica, salientando que o estupro de vulnerável está previsto no artigo 217 do Código Penal. Desde 2009, o estupro de vulnerável é definido como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”, sendo a pena reclusão de 8 a 15 anos.
A coordenadora do Instituto Alana acrescenta que o artigo 128 do Código Penal é explícito sobre a legalidade do aborto em caso de gravidez por estupro e risco de vida – o que é preponderante na infância e adolescência – e explica que não se determina período de gestação, podendo o aborto ser feito a qualquer momento, ainda que quanto mais cedo menor o risco para a menina. “Gravidez na infância e adolescência gera risco de vida”, enfatiza.
Um levantamento feito pela Folha de S.Paulo, com dados de atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2021, mostrou que para cada aborto legal em meninas de 10 a 14 anos, o SUS faz 11 atendimentos de emergência por abortos espontâneos ou complicações decorrentes de abortos provocados iniciados fora do ambiente hospitalar – ainda que a interrupção da gravidez seja permitida por lei.
Outro levantamento, feito pelo portal G1 com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), revela o estigma do aborto, ainda que nos casos legais, previstos em lei: quase 40% das mulheres que fizeram um aborto legal entre janeiro de 2021 e fevereiro optaram por recorrer à prática em municípios afastados do local em que residem.
“A criança não pode ser revitimizada”
A Constituição Federal de 1988, explica Cifali, fez a opção de dar prioridade absoluta a crianças e adolescentes, ainda que essa não seja a realidade atual do país. “Colocamos a criança em primeiro lugar nas políticas públicas e no orçamento”, afirma a coordenadora do Instituto Alana.
Para Cifali, os casos recentes do estupro da menina de 10 anos e da atriz Klara Kastanho comprovam que a sociedade brasileira tem pouco ou nenhum conhecimento das normas legais que protegem as crianças e mulheres.
Ela cita, por exemplo, a Lei da Escuta Especializada, de abril de 2017, que acrescentou ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a necessidade de o poder público implementar procedimentos de entrevista especializados para situação de violência com criança ou adolescente, capacitando servidores públicos, do Executivo e Judiciário, para que os direitos sejam observados e as vítimas não sejam submetidas a constrangimentos e prejulgamentos.
“A criança não pode ser revitimizada. A Lei da Escuta Especializada existe para que não se somem novas violências, como perguntas sobre o ocorrido que podem gerar constrangimento, perguntas feitas por profissionais não especializados podem agravar a situação da vítima, deixando ainda mais traumas. O que a gente viu com esses casos recentes provavelmente foi só a ponta do iceberg. Temos muito a caminhar”, considera.
Há muita desinformação sobre direitos de gestantes (como a entrega do bebê para adoção, o que ocorreu no caso da atriz), das mulheres vítimas de violência sexual, e das meninas, enfatiza Cifali.
“Tudo isso mostra uma cultura arraigada de machismo, de violência autoritária contra a mulher, que entende que a mulher e a menina não têm direito a seu corpo. Mostra como ainda estamos sujeitas a esse juízo público, como a sociedade acha que mulheres podem ser julgadas em praça pública por qualquer decisão que tomem.”
Exemplo de educação sexual no Reino Unido
Mais de 100 instituições, incluindo o Instituto Alana, lançaram recentemente a Agenda 227, numa referência ao artigo da Constituição de mesmo número que prevê prioridade absoluta aos direitos das crianças e adolescentes no país.
O plano, com 148 propostas, foi montado por especialistas com base na legislação vigente e entregue aos candidatos à Presidência da República. Ele sugere a implementação urgente de medidas e políticas públicas a partir de janeiro de 2023.
Para Luciana Temer, educação é a palavra-chave, e as políticas públicas do país precisam ser feitas com base em evidências e experiências bem-sucedidas aqui e em outros lugares do mundo. Ela cita o Reino Unido, que há mais de 20 anos focou na educação sexual ao longo de todo o período escolar. O país conseguiu reduzir drasticamente as taxas de gravidez precoce na adolescência e de doenças sexualmente transmissíveis.
“Falar sobre sexualidade com as crianças nas escolas públicas e privadas não tem nenhum efeito de incentivo à sexualização precoce, como se tem dito aqui no Brasil, equivocadamente. Ao contrário. No Reino Unido as meninas começaram a ter relações sexuais mais tarde e muito mais saudáveis”, aponta.
Uma luta de décadas
Fundadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe Para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) e ex-presidente do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, da Organização das Nações Unidas (CEDAW/ONU), a professora de direito Silva Pimentel é uma referência no Brasil, desde a década de 70, na luta feminista e por direitos das mulheres e meninas.
A gravidez na infância, sentencia a ativista, “está associada a práticas sociais nocivas, estereotipadas, discriminatórias, horríveis”, e a única forma de eliminar o problema “reside na modificação de padrões de condutas de homens e mulheres para proteção dessas meninas, em especial no âmbito doméstico”.
Na visão da especialista, a visibilidade destes casos recentes, que mobilizaram as redes sociais e a imprensa brasileira, é crucial no momento em que o país vai escolher um novo presidente e os novos representantes do Legislativo nacional.
Foi graças à Pimentel que a ONU introduziu em seus documentos o termo abuso sexual incestuoso. “A gravidez infantil na região latino-americana é fruto da violência sexual e estupro exercidos por integrantes da família”, aponta.
Parafraseando a historiadora Michelle Perrot, Silvia Pimentel sustenta que “em muitas sociedades, a invisibilidade e violência de gênero contra mulheres e meninas fazem parte da ordem das coisas”. “Isso coloca em termos históricos e antropológicos o lugar das mulheres no mundo e o quanto fomos consideradas cidadãs de segunda categoria, isso quando consideradas cidadãs.”
Para a professora e ativista, as recomendações gerais da Cedaw/ONU nunca foram tão atuais e relevantes, considerando o que vem acontecendo no mundo, com destaque para os Estados Unidos (em relação aos direitos de aborto) e Brasil sob o governo do presidente Jair Bolsonaro. Em 2014, destaca ela, dois comitês da ONU, da Mulher e da Criança, aprovaram a Recomendação Geral 31, que aponta que “as causas estáticas nocivas em relação a nossas meninas são multidimensionais, e entre elas cabe o papel estereotipado, a suposta inferioridade de um sexo, a tentativa de controle sobre os nossos corpos, as desigualdades sociais e prevalência de estruturas de poder dominadas pelo sexo masculino”.
A educação das crianças, meninas e meninos, é fundamental para que, aptos, possam atuar como agentes da mudança, diz a ativista.