Por Marcelo Pinheiro.
“Eu me senti vindo de um lugar tão mais cruel, tão mais violento, onde a gente sempre teve que conquistar as coisas na marra. Somos uma raça de gente que guarda dentro de nós o Menino Jesus e o Esquadrão da Morte. Somos a desproteção e somos as armas. Somos os explorados, de que até a morte foi roubada. Somos a festa, o Carnaval e a alegria. Somos também a tristeza mais triste que jamais conheci.”
A sensação de não pertencimento descrita no parágrafo acima foi relatada em abril de 1972 pelo dramaturgo José Vicente de Paula (1945- 2007).
Ao repórter Carlos Morari, Zé Vicente falou sobre como se sentiu ao desembarcar no festival britânico da Ilha de Wight, em 1970. A entrevista foi publicada na revista O Bondinho, um dos marcos da imprensa alternativa que afrontava o governo do general Emílio Garrastazu Médici naquele início de década.
Espécie de Woodstock europeu, diferentemente do clima de opressão e terror que pairava no Brasil pós-AI-5, o festival na idílica ilha ao sul da costa inglesa acolhia centenas de milhares de rapazes e garotas embalados pelo rock’n’roll, o pacifismo flower power, as viagens das drogas lisérgicas, as transas e curtições do amor livre. Muitos ali nem sequer suspeitavam ser protagonistas de um momento divisor, de triste declínio para a festiva contracultura mundial.
Capitulados o Verão do Amor, celebrado segunda metade de 1967 no Hemisfério Norte, e o Maio de 1968, um ciclo se fechava: o festival em Wight foi realizado meses depois do “decreto” de John Lennon de que o sonho havia acabado e 18 dias antes da morte trágica de Jimi Hendrix, um dos destaques dos cinco dias de apresentações. Se na América do Norte e na Europa o hedonismo da geração baby boom entrava em ressaca, por aqui o bode seria bem mais nefasto, durante a década que ali se anunciava.
O golpe de estado que em 1964 levou o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco ao poder havia, naquele desbundado ano de 1970, completado seis anos, sob o comando de outros dois militares. Em 15 de marçõ de 1967, o marechal Artur da Costa e Silva passou a governar o País. Meses depois, no dia18 de julho daquele mesmo ano, Castelo Branco morreu em um acidente aéreo mal esclarecido até hoje, e com fortes indícios de atentado.
No dia seguinte à tragédia, Castelo Branco, primeiro ex-presidente ilegítimo derivado do golpe de 1964, pretendia fazer um pronunciamento à nação, com severas críticas à gestão de seu sucessor, Costa e Silva.
O avião em que o marechal e mais seis pessoas viajavam, um bimotor Piper Aztec PA 23, foi abalroado por um caça militar. O caminho de obscurantismo e recrudescimento da repressão defendido por Costa e Silva culminaria nos anos de chumbo da Era Médici, iniciada em 30 de outubro de 1969, com a posse do general.
Por mero capricho do acaso, Zé Vicente acabou não sendo um dos milhares de artistas cassados em seu País, porque partiu para a Europa meses antes de ser decretado o AI-5, em 13 de dezembro de 1968.
Daquela sexta-feira 13 em diante, quem por aqui ficou experimentou dias de medo crescente e horror impune.
Um microcosmo da diáspora cultural provocada pelo golpe: a ida de Zé Vicente ao Festival da Ilha de Wight deu-se na companhia de duas das maiores estrelas da música popular brasileira, Gilberto Gil e Caetano Veloso (que chegaram a tocar no primeiro dia do festival, em um palco aberto, saiba mais).
Presos em São Paulo, 14 dias após o decreto do AI-5, os baianos tiveram as cabeleiras raspadas e amargaram quase dois meses de cárcere no Rio de Janeiro, antes de compulsoriamente partirem para Londres. Pouco depois, Chico Buarque se mandou para a Itália, Edu Lobo para os Estados Unidos e Nara Leão para a França.
A seguir, a reportagem de Brasileiros reúne opiniões de artistas, acadêmicos e intelectuais, além de compilar relatos de histórias que marcaram a resistência cultural aos anos de chumbo. Testemunhos expressos em entrevistas publicadas nas páginas das nossas edições anteriores, em depoimentos exclusivos e em registros, de um passado recente da história da imprensa do País, colhidos no calor da situação, como o relato que abre esta reportagem.
Helena Ignez em cena de A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla. Foto: Peter Overbec / Belair Filmes
Do sonho ao pesadelo
Quando oficialmente teve início o regime militar, em 1 de abril de 1964, visto em retrocesso pela lente da produção cultural, o Brasil vivia momento dos mais inventivos para as expressões artísticas. Fase luminar, gestada em manifestações individuais, mas também em ações coletivas como as do CPC (o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, a UNE).
Na tela grande, defendido por cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra e Leon Hirszman, o Cinema Novo herdava lições estéticas e éticas do neorrealismo italiano para registrar um olhar inédito sobre as mazelas do nosso povo.
Nos palcos, o mesmo fenômeno de “descobrimento do Brasil” era visto em espetáculos de companhias como o Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi, e o Arena, de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho.
Na ficção literária, em meio a autores consagrados como Guimarães Rosa, Érico Verissimo e Clarice Lispector, despontavam talentos como Dalton Trevisan, Carlos Heitor Cony, Lygia Fagundes Telles, José J. Veiga e José Agrippino de Paula.
Na poesia, a tríade Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos reinventavam forma e conteúdo com o movimento da Poesia Concreta, enquanto Roberto Piva e Claudio Willer reverberavam aqui os versos livres e o existencialismo hedonista dos beats norte-americanos.
Nas artes visuais, o mesmo rebuliço estético, na melhor acepção possível, era disseminado por artistas ousados como Hélio Oiticica, Amilcar de Castro, Lygia Clark e Lygia Pape com as proposições radicais do neoconcretismo, que culminou em experiências de maior afronta, como a mostra coletiva Nova Objetividade Brasileira, de 1967.
Sob a batuta dos maestros que integravam o movimento Música Nova – Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira e Julio Medaglia –, novas proposições de vanguarda da música erudita ressoavam até mesmo na produção popular, com a adoção gradual de orquestrações de forte apelo sensorial que culminaram em arranjos primorosos de canções como Tropicália (Caetano, 1967), feito por Medaglia, Saudosismo (Gal, 1968) e Construção (Chico, 1971), ambos de Duprat.
Em momento de rara popularidade, a música instrumental também conquistava ouvintes de todo o País. O primeiro álbum do Tamba Trio (epônimo, de 1962, leia mais), por exemplo, teve quase 300 mil cópias vendidas. No biênio 1963/1964, dezenas de outros LPs instrumentais foram lançados por pequenas gravadoras, como a Elenco, de Aloysio de Oliveira, e a Forma, dos jovens produtores Roberto Quartin e Wadih Gebara. A maioria dos registros trazia músicos modernos defendendo um novo gênero, derivado da bossa nova, e batizado bossa-jazz ou samba-jazz. Entre os combos despontavam formações divisoras, como o Copa 5 do maestro J.T. Meirelles, o Tamba Trio de Luiz Eça, o Sambalanço Trio de Cesar Camargo Mariano, e o Bossa Três de Luiz Carlos Vinhas.
Com a deposição do presidente João Goulart e o engavetamento de seu projeto progressista, o samba-jazz e a bossa nova – mais especificamente a chamada “segunda geração” da bossa, liderada por Edu Lobo e seu amigo Marcos Valle – sofreram ingerências imediatas do golpe.
Cientes do poder da canção como forma de propagar ideias renovadoras a milhões de brasileiros, os novos compositores deram adeus à temática idílica “do amor, do sorriso e da flor” (sintetizada no título do segundo álbum de João Gilberto, de 1960), para falar das mazelas do povo nordestino, da miséria cotidiana de favelas e morros cariocas e da necessidade de resistir às arbitrariedades dos militares. Movimentação que chegou ao ápice no show-manifesto Opinião, apresentado por Nara Leão, Zé Keti e João do Valle em dezembro de 1964, na sede carioca do Teatro de Arena, em Copacabana.
“Tudo acontecia de bonito no cinema, no teatro e na música, e eu, tipicamente bossa nova, eu só falava de coisas boas: do amor, da natureza, mas chegamos a 1964 e tudo mudou completamente. O momento exigia posicionamento. Nossa liberdade estava cerceada e tínhamos que combater aquilo tudo.”
(depoimento do cantor, compositor e arranjador Marcos Valle, em entrevista à reportagem de Brasileiros).
O depoimento de Marcos Valle, em entrevista à Brasileiros na edição 51 da revista, reverbera a urgência também percebida pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, autor de clássicos como Rio 40 Graus e Vidas Secas.
“A situação política exigia uma tomada de posturas. A pressão sobre os intelectuais para lutar pela liberdade de expressão e contra a ditadura era muito grande. Mas o Cinema Novo não tinha um pensamento homogêneo. Era um grupo de amigos que fazia cinema, cada um com suas próprias afirmações culturais, estéticas e políticas”, defendeu Nelson em entrevista publicada na edição 55 de Brasileiros.
No caso da música popular foi justamente das conquistas estéticas que a bossa nova teve de abrir mão para dar lugar a uma música politizada, de complexidade harmônica infinitamente inferior, com poucos acordes, porém incisiva nas letras, a famigerada “canção de protesto”, de artistas como Sérgio Ricardo e, maior expoente do gênero, Geraldo Vandré.
Autor do hino Para não Dizer que não Falei das Flores, Vandré foi envolto por décadas como uma das mais notórias vítimas da tortura, supostamente submetido a práticas exemplarmente mitológicas do horror daqueles dias, como lavagem cerebral e emasculação (retirada dos testículos). Fatos que o compositor, recluso há décadas, sempre negou.
Autor do icônico cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol, do baiano Glauber, o conterrâneo Rogério Duarte (leia entrevista), um dos mais importantes artistas gráficos de sua geração, foi uma das primeiras vítimas a delatar a prática de tortura. Rogério e seu irmão, Ronaldo, foram presos em 4 de abril de 1968, quando pretendiam ir à missa de Sétimo Dia do secundarista Edson Luís, morto por militares no restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro – fato que culminou na chamada Passeata dos Cem Mil, com a mobilização de artistas e cidadãos cariocas unidos contra o regime militar.
Fisgados pela repressão os irmãos Duarte enfrentaram, nas mãos dos militares, seis dias de sessões contínuas de tortura. No entanto, denunciaram à imprensa, em 11 de julho daquele ano, os excessos cometidos pelos agentes que os aprisionaram.
Os traumas decorrentes da tortura fizeram com que o artista gráfico, autor de capas memoráveis da MPB, como LeGal, de Gal Costa, e Expresso 2222, de Gilberto Gil, vivesse por dois anos na mais absoluta clandestinidade. Rogério também foi submetido a internações psiquiátricas compulsórias e, depois de experimentar essa imersão sombria, mergulhou em uma crença de redenção pelo misticismo que atravessou a década de 1970.
A barra pesada enfrentada pelo amigo Rogério, o advento do AI-5 e a perseguição ostensiva aos artistas que defendiam criações de forte teor político, como Glauber, Hirszman e Guerra, talvez tenham feito com que o grupo do Cinema Novo se desmantelasse em legítima defesa, percepção que fez com que a maioria desses grandes autores partisse para o exílio. Fato que abriu caminho para a geração do Cinema Marginal, com os abusados Rogério Sganzerla e Julio Bressane no pelotão de frente.
A “Estética da Fome”, teorizada por Glauber, deu lugar a um ciclo anárquico sintetizado no bordão niilista de um dos diálogos de O Bandido da Luz Vermelha, de Sganzerla: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba!”, resume o personagem interpretado por Paulo Villaça, inspirado na figura real e onipresente no norticiário policial popular, João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha.
A “avacalhação” proposta pelos pontas de lança do Cinema Marginal veio então caracterizada por filmes de baixíssimo orçamento, rodados em bitolas de 8 ou 16 mm, tramas herméticas e linguagem transgressora, com uso frequente de narrativas elípticas para driblar a estupidez contumaz de muitos dos censores.
Para o historiador Sérgio Cabral, o golpe civil-militar de 1964 foi um momento divisor na história cultural do País, intervenção que demandou da classe artística a adoção imediata de procedimentos sagazes para driblar a censura em nome de um senso de sobrevivência que ia além da conotação de resistência artística, mas, em útlima instância, de preservação da própria vida.
“Depois dos militares, a preocupação dos artistas ganhou base política. Não posso garantir que tenha havido um desvio definitivo, que a partir de então a música e a cultura brasileira poderiam ter sido diferentes sem os militares, mas muitos artistas brincaram com a burrice da censura. A censura tinha a tradição de cortar coisas sem importância e deixar passar outras que, aparentemente, jamais deixaria. Omissões que até hoje não entendo, mas que felizmente houve, como a frase ‘Você me corta um verso e eu faço outro / Que medo você tem de nós?’ (da canção Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo Sérgio Pinheiro, gravada pelo MPB-4 no álbum Cicatrizes, de 1972)”
(depoimento do jornalista e escritor Sergio Cabral, em entrevista à reportagem de Brasileiros).
Cabral, no entanto, pondera e acrescenta que Pesadelo foi espécie de exceção. Segundo ele, o expediente comum era provocar o regime com mensagens bem mais cifradas, exercício compulsório que, no seu entendimento, acelerou o processo de maturação de nossos artistas, especialmente no que tange ao lirismo e à criatividade de nossos letristas. “Nasceu daí a arte de fazer música engajada de maneira tão disfarçada que a censura não percebia”, defende.
Em entrevista publicada na edição 46 da Brasileiros, o maestro Arthur Verocai exemplificou, na prática, essa mesma percepção do historiador ao falar do trabalho de Vitor Martins, que escreveu as letras de seu primeiro álbum, epônimo, de 1972.
“Como a censura estava no auge e a barra pesadíssima, Vitor escreveu letras bem metafóricas como Presente Grego, exatamente o que significava a ditadura para o povo brasileiro, um presente de grego. A letra dizia coisas como ‘… Por trás das barbas de molho / O olho por olho / Pedra por pedra / Conta por conta…’. Ninguém entendia nada do que Vitor queria dizer – nem mesmo a censura, que liberou tudo.”
Estúpidos ou não, os censores impuseram sua mordaça até mesmo a artistas de grande repercussão internacional, como Milton Nascimento que, em 1968, havia sido convidado a lançar o álbum Courage nos Estados Unidos e, por duas décadas, amortizou uma profunda depressão com o alcoolismo, conforme ele relatou à Brasileiros em outubro de 2013:
“Bastava aparecer o nome Milton Nascimento que a censura vinha e cortava tudo. Nos 20 anos em que não pude falar e fazer quase nada, a única coisa que me restou foi beber muito. Como é que eu ia viver?!”
Sorte maior tiveram artistas que receberam apoio de corporações multinacionais como a holandesa Philips, tratada com certa vista grossa pelos militares por evidentes razões econômicas, como lembrou o executivo da indústria fonográfica André Midani na autobiografia Música, Ídolos e Poder: do Vinil ao Download (Nova Fronteira).
“O governo ameaçava cancelar o registro da companhia no Departamento de Censura, se não cooperássemos com os ‘princípios patrióticos da revolução’. Desconsideramos, por razões simplistas: se havíamos convencido um artista a trabalhar conosco, estávamos ao lado dele e de suas posições políticas. Por outro lado, o fato de sermos filiais de importantes conglomerados estrangeiros certamente nos ajudou a seguir com essa postura”, afirmou Midani no livro.
Se a barra pesava menos para os protegidos das grandes gravadoras, sorte menor tiveram artistas menos conhecidos, como o pianista Dom Salvador, que, não por acaso, mora em Nova York desde 1973.
“A fase era pesadíssima, não havia nenhum interesse político entre nós, mas eu nem desconfiava que estava brincando com fogo.”
Em entrevista à Brasileiros, publicada no especial Negritude, em novembro de 2011, Salvador também lembrou o ambiente hostil do FIC – Festival Internacional da Canção de 1970, quando se apresentou com seu grupo Abolição, composto por nove negros. Vencido por Tony Tornado, com BR-3, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, o festival despertou a ira e um novo alerta nos militares, porque, além de Tony, que partiu para uma temporada clandestina de três anos nos Estados Unidos, o maestro Erlon Chaves, também negro e então namorado da atriz Vera Fischer, foi outro que “causou” no palco do FIC.
Pouco depois de defender Eu Também Quero Mocotó, de Jorge Ben Jor, Erlon e vários integrantes de sua Banda Veneno foram presos porque, durante o número, o maestro ousou dançar de forma lasciva com suas backing vocals, todas loiras. Uma afronta, denunciada pela indignada mulher de um general, acomodada nas primeiras filas da plateia. Desse episódio em diante, a carreira de Erlon definhou até sua morte precoce, aos 40 anos, em 1974.
Do milagre à redemocratização
Uma apuração do jornalista e escritor Zuenir Ventura para a produção de seu livro 1968: o Ano que não Terminou revelou: somente no período de vigência do decreto (1968-1978), o AI-5 cassou, suspendeu os direitos e puniu mais de mil cidadãos brasileiros. Para a cultura do País, o saldo foi também desprezível: cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros e 200 letras de canções foram completamente censurados.
Operação executada com um efetivo de mais de uma centena de agentes espalhados em diversos estados do País pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão instituído com o AI-5, que existiu até 1988, quando foi extinto pela nova Constituição.
A mordaça imposta pela ditadura ganhou reforço significativo em 26 de janeiro de 1970, quando foi sancionado, pelo então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, o decreto 1.077, imediatamente apelidado pelo jornal O Globo de Decreto Leila Diniz – uma alusão ao fato de a nova lei, que submeteu editoras de livros, jornais e revistas à censura prévia, ter sido criada logo após a atriz conceder uma entrevista bombástica ao tabloide O Pasquim repleta de palavrões, na qual Leila também defendeu o livre arbítrio e o direito feminino ao sexo livre.
Segundo declaração pública de Buzaid, o decreto fez-se necessário para “preservar a integridade da família brasileira, que guarda tradição e moralidade, combatendo o processo insidioso do comunismo internacional que insinua o amor livre para desfibrar as resistências morais da sociedade”.
Mesmo com a ciência de que havia uma guerra entre a classe artística e um inimigo comum, a ditadura, rachas ideológicos patéticos minaram forças de resistência, como lembrou o escritor Milton Hatoum à Brasileiros, na edição 65.
“Muita gente morreu, outros foram para a guerrilha. Entre 1969 e 1973, o regime aniquilou quase tudo. Ou você ia para a total clandestinidade ou entrava para a luta armada. Nosso grupo era um pouco desbundado e criticado pela esquerda dogmática.”
Se ações coletivas eram muitas vezes mediadas por questões ortodoxas – como interpretar empatia à contracultura como uma prova de submissão ao imperialismo norte-americano –, a resistência individual era prática mais que necessária, como relatou a escritora Lygia Fagundes Telles em entrevista ao repórter Alex Solnik para a capa da edição 22 da Brasileiros.
“Quando estava escrevendo o livro As Meninas recebi um panfleto de um sujeito que eu não conhecia. Era um panfleto contando a tortura sofrida por ele no DOI-CODI. Eu morava com o Paulo Emílio (o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, namorado de Lygia por dez anos) na Rua Sabará, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, bem perto da Polícia Federal, onde, diziam os vizinhos, ouviam-se gemidos e gritos vindos dos porões. Recebi esse panfleto e disse: ‘Paulo, quero aproveitá-lo no livro que estou escrevendo’. Paulo disse: ‘Aproveita, mas cuidado porque o livro pode ser censurado’.”
Dias depois, Paulo Emílio reencontrou Lygia. Trazia boas novas e uma garrafa de vinho. “Vamos beber em homenagem ao romance. Soube que um censor começou a ler seu livro, chegou até a página 20, achou muito chato e não foi adiante. Você escapou. O panfleto está na página 200.”
Para o historiador Flamarion Maués, autor do recém-lançado Livros Contra a Ditadura (Editora Publisher), as consequências culturais do regime militar evidenciam o quanto são complexas as relações entre sociedade, política e literatura.
“Todo ímpeto de debater o País por meio da cultura foi decapitado com o golpe. As perseguições que ele desencadeou e o clima de receio que o acompanhou tiveram reflexos na literatura, mas é certo também que houve obras que se inspiraram na nova situação criada com o golpe, e isso pouco tempo depois de ele ocorrer, como foi o caso, citando apenas dois exemplos, de Pessach: a Travessia, de Carlos Heitor Cony, e Quarup, de Antônio Callado, ambos publicados pela Civilização Brasileira em 1967.”
Maués também enfatiza aspecto paradoxal, que serviu ao contexto fantasioso do milagre econômico, utilizado pelos militares para levar ao cidadão comum a ideia de que o Brasil vivia um momento de ordem e prosperidade.
“O regime percebeu a importância de ter atuação efetiva na área cultural. Não por acaso, nesse período foram criados, por iniciativa governamental, o Conselho Nacional de Cultura, o Instituto Nacional do Cinema, a Embrafilme, a Funarte, o Pró-Memória, entre outros.”
Se as farsas do milagre econômico e o bloco ufanista do Pra Frente Brasil anestesiavam as consciências de milhões, na linha de combate, grupos paramilitares como o Comando de Caça aos Comunistas, da famigerada sigla CCC, ajudavam a difundir o terror do regime, como no episódio da invasão ao espetáculo Roda Viva, no Teatro Oficina, em 1968, quando nem as mulheres que integravam o elenco da peça foram poupadas, como a atriz Marília Pêra. Segundo relatos de quem testemunhou o episódiso, Marília foi agredida com chutes, socos, golpes de soco inglês no rosto e arrastada, nua, do lado de fora do teatro.
Foi nesse contexto de guerra que milhares de oponentes ousaram enfrentar a truculência do Estado e mantiveram-se atentos, fortes e sem temer a morte, como recomendavam Caetano e Gi, em Divino Maravilhoso. Postura combativa sintetizada nas palavras do dramaturgo Chico de Assis, autor de Missa Leiga, em depoimento de 1971 ao psicanalista Roberto Freire para a revista O Bondinho.
“Nós já nos acostumamos tanto com a violência que a violência e o amor ficaram em pé de igualdade. Você acredita da mesma forma. Mas depois que você descobre que você é livre, mesmo na sua limitação angustiosa, ninguém pode contigo. Podem te esquartejar, jogar um pedaço em cada canto, mas você é livre do mesmo jeito. E esse sentimento, de liberdade real, incomoda bastante”
(depoimento do dramaturgo Chico de Assis, em entrevista ao psicanalista Roberto Freire publicada na revista “O Bondinho” em 1971).
Tal “liberdade” insolente foi a tônica de boa parte da produção artística do País na segunda metade dos anos 1970.
Um norte estético de confronto, também perseguido nas artes visuais com o trabalho de artistas como Flávio Império, Sérgio Sister, Hélio Oiticica, Antonio Dias e Cildo Meireles – este último, logo após o assassinato covarde do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, fez circular cédulas de um cruzeiro, a moeda da época, submetidas a um carimbo com a frase “Quem matou Herzog?”.
Até mesmo a dança moderna aderiu a esse espírito combativo, em espetáculos pautados por coreografias de forte simbolismo político, como os do Ballet Stagium, do Balé da Cidade de São Paulo e do GED, Grupo Experimental de Dança, surgido em Salvador, na Universidade Federal da Bahia.
No romance autobiográfico Milagre no Brasil lançado em 1979, ano do Decreto da Anistia, que libertou presos políticos, mas isentou os militares de pagar por seus crimes, o dramaturgo Augusto Boal fez um relato de enaltecimento à bravura de sua geração, que não mediu esforços para tornar novamente o Brasil um país de cidadãos livres:
“Fui dormir pensando contente que não eram apenas os operários e camponeses que resistiam: pensei também que, entre nós, os intelectuais, havia muitos que não se dobravam. E não era apenas um ou outro compositor: eram também romancistas, jornalistas, dramaturgos, poetas, historiadores, sociólogos, professores, pintores… Pensei em toda essa gente que a ditadura não havia conseguido comprar nem calar. Pensando neles, senti um orgulho enorme de ser intelectual e de ser brasileiro”, afirma Boal nas páginas finais do romance.
Que a memória da coragem desses homens e mulheres não nos deixe esquecer jamais os dias de trevas que o Brasil enfrentou nesses obtusos 21 anos. Afinal, como advertia o título da peça teatral montada nos porões do extinto DOPS em 1999, na ocasião dos 20 anos da Anistia, espetáculo baseado em texto de Analy Alvarez e Izaías Almada e direção de Silnei Siqueira, três vítimas da tortura: “Lembrar é resistir!”.
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Fonte: Página B.