Lula volta a chutar a canela do imperialismo. Por Jair de Souza.

Muito embora as opiniões de Lula expressem uma compreensão que deveria ser considerada como natural e lógica, nas atuais circunstâncias, elas equivalem a um violento chute na canela de um jogador que se considerava o dono da bola.

Imagem: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Por Jair de Souza.

No passado dia 06/12/2023, o presidente Lula voltou a proferir certas palavras que desagradaram profundamente aos pesos-pesados da economia estadunidense e, ainda mais, aos associados deles em nosso país.

Os “impropérios” de Lula foram externados no Rio de Janeiro durante o ato de cerimônia para marcar a assinatura de contratos entre o BNDES e o Novo Banco de Desenvolvimento (o Banco do BRICS), diante da ex-presidenta do Brasil e atual número um do NBS, Dilma Rousseff, e do presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, entre outras autoridades.

Mas, o que poderia Lula ter dito que incomodasse tanto aos grandes expoentes dos endinheirados nos Estados Unidos, nos outros grandes centros do capitalismo e no Brasil? Bem, simplesmente, Lula voltou a questionar a conveniência de insistir em manter o dólar estadunidense como moeda universal para o comércio exterior.

Há pouco menos de um ano, no ato de posse de Dilma Rousseff na presidência do NBD, Lula já havia se atrevido a expressar opiniões nesse sentido e, em consequência, recebeu condenações demolidoras provenientes dos meios de comunicação dos países capitalistas hegemônicos e, como não podia deixar de ser, mais ainda dos meios corporativos tupiniquins.

Portanto, como Lula parece não ter aprendido a lição que lhe fora dada com as acérrimas críticas midiáticas daquele instante, estas voltaram a se fazer sentir com mais intensidade. De nossa parte, como também gostamos da teimosia, vamos reapresentar a base da argumentação que usáramos para abordar o tema naquela ocasião.

Porém, antes de avançar com a argumentação técnica sobre as características do sistema financeiro internacional, vamos tentar fazer uma reflexão a partir de um hipotético caso pessoal.

Imagine que você recebe um talão de cheque (ou um cartão magnético, para estarmos mais atualizados com o presente) do principal banco do país. Com este talão de cheques (ou cartão), você pode realizar as compras que desejar, sem necessidade de contar com uma contrapartida em fundos depositados. Ou seja, você pode comprar o que quiser, sem se preocupar com o valor de sua reserva no banco. No final, na hora de fazer os acertos de contas, os valores de suas compras que excederem os fundos que você tinha não serão cobrados de você, e sim transferidos para o conjunto de clientes do banco.

Você gostaria de receber um talão de cheques (ou um cartão magnético) de algum banco nessas condições? Responda com sinceridade e sem se envergonhar. Depois de responder, creio que lhe vai ser mais fácil entender as explicações que vamos procurar transmitir à continuação.

Após ter refletido sobre o hipotético caso recém mencionado, cabe-nos perguntar: O que significa ter o dólar estadunidense como a moeda internacional e o que poderia representar o fim desta norma?

Na atualidade, quando dois países, Brasil e Argentina, por exemplo, decidem negociar entre si, importando e exportando seus próprios produtos, a questão não fica limitada a estas duas nações. Há um terceiro país (os Estados Unidos) que, mesmo sem ter tido nenhuma participação na negociação, na produção ou no transporte desses bens, vai receber ganhos com a realização dessas operações. Como isso se dá e por quê?

Ao concluir a Segunda Guerra Mundial, o cenário internacional adquiriu uma nova faceta. Os Estados Unidos emergiram daquela guerra como a nação mais poderosa do planeta, tanto do ponto de vista militar como no econômico. Em 1944, na cidade de Bretton Woods, em New Hampshire, EUA, pouco antes de que se consumasse a derrota da Alemanha nazista, as nações que haviam se aliado em seu enfrentamento com as potências do Eixo firmaram um tratado que visava normatizar as bases para o funcionamento da economia mundial após a conclusão do conflito.

Os termos do tratado firmado em Bretton Woods foram muito vantajosos para os Estados Unidos. A partir de então, uma parte substancial do comércio internacional e das movimentações financeiras passaria a ser gerida sob o controle efetivo dessa nação norte-americana. O dólar estadunidense assumia o papel de meio de pagamento de referência para as trocas internacionais e ficava estabelecida sua convertibilidade em base a uma paridade com o ouro. O sistema de compensações financeiras internacionais passou a funcionar com base nessa moeda.

Porém, em 1971, os dirigentes dos Estados Unidos decidiram pôr fim à convertibilidade do dólar. Com esta medida, efetivou-se também em teoria aquilo que já era uma verdade na prática: o dólar havia se transformado em uma moeda fiduciária, cuja aceitação ao redor do mundo dependia fundamentalmente da grande capacidade política e militar ostentada pelos Estados Unidos.

Sem precisar dispor de reservas em ouro para garantir a validade internacional de sua moeda, os Estados Unidos passaram a se despreocupar com a questão de seu déficit orçamentário. No final das contas, os desequilíbrios que viessem a surgir seriam compartilhados (na verdade, transferidos) ao restante do mundo. Bastaria emitir mais dólares para que as pendências fossem ajustadas. E isso os Estados Unidos poderiam continuar fazendo sem maiores problemas. Em outras palavras, caberia aos demais países da comunidade internacional arcar com o rombo orçamentário estadunidense, o qual ia se agigantando a cada ano.

Em consequência, ao sugerir que deveríamos buscar meios de pagamento alternativos à moeda estadunidense para que não tivéssemos de nos sujeitar aos desígnios das autoridades monetárias dos Estados Unidos, aqueles que vêm se beneficiando amplamente do funcionamento do sistema parasitário implantado em Bretton Woods não gostaram nem um pouco da sugestão.

Muito embora as opiniões de Lula expressem uma compreensão que deveria ser considerada como natural e lógica, nas atuais circunstâncias, elas equivalem a um violento chute na canela de um jogador que se considerava o dono da bola e da partida, pois representam uma séria ameaça às pretensões estadunidenses de seguir exercendo sua hegemonia mundial apesar de sua notável decadência em termos de produção e liderança tecnológica.

É mais do que sabido que a economia da República Popular da China é atualmente muitíssimo mais dinâmica do que sua contraparte estadunidense. Como a produtividade da indústria chinesa é incomparavelmente superior, em termos de competição estritamente econômicos, os Estados Unidos já não têm nenhuma perspectiva de disputar com eficácia mercados com a China.

Para tentar manter sua posição de líder no cenário internacional do momento, os Estados Unidos vão se aferrando cada dia mais a seu poderio militar e ao controle que exercem do sistema financeiro. Assim que, ao propor que o dólar deixe de ser a moeda de uso generalizado para as relações comerciais entre as diferentes nações, Lula levanta uma tese que ameaça fortemente os interesses hegemônicos do imperialismo estadunidense e, como seria de esperar, de seus associados locais.

Agora, podemos retomar o exemplo inicial hipotético de quem recebe um talão de cheques (ou cartão magnético) com liberdade irrestrita de gastos. Se não puderem mais dispor da capacidade de manipular com sua moeda, os Estados Unidos vão depender muito mais de sua própria produção e de seus próprios recursos para ter êxito em suas interações com as demais nações. Há muito tempo eles vêm se beneficiando de modo parasitário do sacrifício de todos os outros países da comunidade internacional, ao transferir os custos de sua ineficiência para o restante do mundo.

É por isso que ao manifestar suas preocupações a este respeito, Lula parece ter desfechado um chute na canela dos representantes dos interesses do imperialismo.

Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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