Lideranças Tembé são alvejadas por seguranças de empresa produtora de óleo de palma

Quatro indígenas Tembé foram alvo de ataques armados comandados por agentes de segurança da BBF; a empresa está envolvida em pelo menos cinco casos de conflitos ocorridos só no ano passado

Indígenas Tembé e Turiwara protestam em frente à sede da Polícia Civil e Batalhão da Polícia Militar. Foto: Jesus Gonçalves

Por Maiara Dourado, Assessoria de Comunicação do Cimi.

Na manhã desta segunda-feira (7), três lideranças Tembé foram baleadas pela segurança privada da empresa Brasil BioFuels (BBF), uma importante produtora de óleo de palma que possui enormes plantações da palmeira entre os municípios de Acará e Tomé-Açu, na região nordeste do Pará. O ataque armado protagonizado pela empresa, que resultou no ferimento a tiros de Daiane, Felipe e Erlane Tembé, se deu após manifestação dos indígenas em frente à sede da BBF, que na sexta-feira (4) havia atentado contra a vida de uma outra liderança da comunidade, Kauã Tembé, de 19 anos.

O conflito que ocasionou o baleamento de Kauã se deu em razão da investida de agentes de segurança da empresa contra um grupo de indígenas que retomavam uma área de ocupação tradicional invadida pelas plantações de palma da BBF. Segundo relatos de uma fonte que não será identificada nesta matéria por medidas de segurança, “a área que eles [os Tembé] estão reivindicando é uma área de retomada, que faz parte do território deles. A polícia foi acionada, foi na área, mas o baleamento do Kauã se deu depois, quando a polícia já tinha saído”, explica.

A falta de providências da empresa e dos órgãos de segurança pública quanto à responsabilização dos agentes da BBF que alvejaram Kauã causou revolta na comunidade. Em protesto, as três lideranças, junto a um grupo pequeno de indígenas, se mobilizaram em frente à sede da empresa em Tomé-Açu. A situação foi tensionada quando a equipe de segurança da empresa disparou contra os indígenas, atingindo Daiane, Erlane e Felipe.

Daiane estava filmando a ação dos agentes quando foi baleada no pescoço e no maxilar. A liderança foi conduzida no mesmo dia à Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Metropolitano de Belém. A indígena encontra-se em estado de saúde grave. Já Felipe, alvejado nas costas, e Erlane, na coxa e no ombro, foram levados ao hospital de Quatro Bocas, no município de Tomé-Açu. Os três fugiam do confronto quando foram atingidos.

Felipe Tembé ferido a tiros nas costas. Foto: comunidade Tembé

Os tiros disparados pelas costas e no rosto dos indígenas sinalizam o grau de letalidade dos seguranças da empresa. “Foi para matar mesmo”, considera uma liderança indígena que não será identificada nesta matéria em razão dos conflitos, que fragilizam sua segurança.

Segundo Lino João de Oliveira Neves, assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que estava em Tomé-Açu na ocasião acompanhando o caso, “os três foram atingidos em circunstância no mínimo muito suspeitas”, considera. Para ele, “o que fica claro, quando a gente observa a situação em que essas pessoas foram feridas, é que esses tiros vem da retaguarda, o que mostra que elas não estavam numa situação de enfrentamento ao menos no momento do tiro. Elas estavam numa situação de retirada. Os tiros foram pelas costas”, adverte o representante do Cimi.

Para ele, Daiane Tembé foi, de igual modo, alvo da conduta violenta e intimidatória dos seguranças, “que ao perceberem que estava filmando, foi atingida [na face] justamente para que não filmasse”, conclui.

A avaliação do representante do Cimi, baseado em relatos de membros da comunidade, contrapõe a acusação da empresa que, em nota pública, defende a ação de sua equipe de segurança e criminaliza os indígenas,chamando-os de invasores e imputando a eles a depredação de suas instalações e equipamentos.

A tentativa de criminalização dos indígenas e de seus protestos é estratégia já conhecida na região. A ONG Global Witness levantou até setembro de 2022 mais de 500 boletins de ocorrência registrados pela empresa contra os indígenas envolvidos nos conflitos. No entanto, há relatos que indicam um número maior, que somariam mais de 800 registros contra as comunidades.

Para o procurador do Ministério Público Federal (MPF), Felipe de Moura Palha, essa é uma prática corrente em meio a um conflito territorial. No entanto, “a empresa tem que entender que o fato de ter registrado mais de 500 ocorrências contra indígenas, quilombolas e outros moradores da região não ajuda na solução do conflito, na verdade piora a situação”,disse à reportagem do MPF.

Prisão ilegal e outras arbitrariedades

Felipe Tembé estava em atendimento médico quando foi retirado do hospital para prestar depoimento na delegacia da Polícia Civil de Tomé-Açu. O argumento era de que ele precisava fazer um boletim de ocorrência. “Mas ao chegar na delegacia da Polícia Civil, que fica ao lado do batalhão da Polícia Militar, a PM tomou o Felipe, que estava sob a guarda da Polícia Civil, com a acusação de ele havia depredado o patrimônio privado”, relata Lino João.

Recém-baleado, Felipe foi levado preso para o município de Castanhal, algumas horas de distância de Tomé-Açu. “Foi aí que começou toda a saga e revolta do pessoal [da comunidade Tembé], que durou quase o dia todo até o Felipe ser liberado já no final do dia [7/8], quase umas 5 horas da tarde”, relata um membro da missão do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), presente na ocasião para uma audiência pública com membros das comunidades indígenas Tembé e Turiwara e quilombolas da localidade. Todos esses povos têm sido duramente impactados pelos empreendimentos e ações violentas da BBF.

Felipe Tembé, retirado do hospital quando ainda estava em tratamento médico, é preso ilegalmente. Foto: comunidade Tembé

A audiência com o CNDH era uma demanda antiga dos Tembé, Turiwara e quilombolas da região, que se concretizou com a vinda do Conselho aos Diálogos Amazônicos, que ocorreu em Belém, entre os dias 4 e 6 de agosto. A ida da missão do CNDH à Tomé-Açu ocorreu três dias depois do atentado que vitimou Kauã Tembé e momentos antes de ocorrer o ataque armado que baleou Daiane, Erlane e Felipe.

Mas foi o longo histórico de violência e conflito na região que levou o CNDH a formar uma comitiva a fim de apurar as denúncias das comunidades indígenas e quilombolas constantemente ameaçadas e atacadas pelas empresas de produção de óleo de palma instaladas pelo menos desde os anos 2000 na localidade. O atentado contra as lideranças apenas agravou o estado de tensão e reforçou a necessidade das comunidades locais serem ouvidas.

Formavam a missão membros do CNDH, do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para Direitos Humanos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e representantes de várias organizações que atuam na defesa de direitos humanos.

A detenção arbitrária de Felipe Tembé, que ocorreu durante a audiência com a comitiva do CNDH, causou enorme comoção dentre os indígenas e quilombolas presentes na reunião. Foi preciso parar a audiência dado o sentimento de revolta instaurado dentre os membros presentes.

“Todos saíram do encontro e foram em caminhada em direção à delegacia da Polícia Civil e do batalhão da Polícia Militar. E lá se instalou um processo de reivindicação pela soltura de Felipe”, conta Lino João, que também compunha a comitiva do CNDH. Felipe foi solto apenas após o protesto da comunidade e a intervenção de advogados e membros do CNDH.

BBF e os conflitos

Essa não é a primeira vez que a BBF investe contra comunidades indígenas da região. São inúmeras as denúncias de ameaças, ataques armados e agressões contra os povos Tembé e Turiwara envolvendo a empresa. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022, menciona ao menos cinco casos de conflitos territoriais e violações de direitos protagonizados pela produtora de óleo de palma, só no ano passado.

Em um desses casos, ocorrido em setembro de 2022, um não indígena foi assassinado e três indígenas Turiwara foram feridos por disparos de arma de fogo. Os ataque, segundo relatos dos indígenas, são atribuídos aos conflitos conduzidos pelas empresas que produzem óleo de palma, dentre elas a BBF.

Ataque armado na zona rural de Acará (PA), no dia 24 de setembro de 2022, deixou um homem não indígena morto e três indígenas do povo Turiwara feridos. Foto: reprodução

Ataque armado na zona rural de Acará (PA), no dia 24 de setembro de 2022, deixou um homem não indígena morto e três indígenas do povo Turiwara feridos. Foto: reprodução

“A gente vem sofrendo uma série de ataques até mesmo dentro da nossa aldeia”, relata uma liderança Turiwara. “Logo após esse atentado na estrada [que feriu três indígenas Turiwara e matou um não indígena], houve um incêndio dentro da nossa aldeia causado por pistoleiros, onde nossa casa cultural foi queimada. Tudo isso em meio ao conflito com a empresa BBF”, denuncia a liderança.

Em novembro do mesmo ano, um grupo de seguranças da BBF apontou armas na direção de indígenas Tembé. De acordo com os moradores da Terra Indígena (TI) Turé-Mariquita, a empresa estaria tentando invadir o local, o que teria provocado um protesto do povo Tembé. Os moradores da TI Turé-Mariquita relatam ainda danos ambientais cometidos pela empresa, que utiliza agrotóxicos em suas plantações. Suas atividades têm causado o aparecimento de doenças na comunidade, a poluição das águas e da terra, e a morte de animais de caça.

Indígenas e quilombolas protestam contra BBF em frente ao Fórum de Tomé-Açu. Foto Karina Iliescu

A Terra Indígena Turé-Mariquita, considerada a menor terra indígena em território do Brasil, com apenas 146 hectares, encontra-se estrangulada por plantações da empresa. Segundo o MPF, não há “uma zona de amortecimento que deveria existir, de pelo menos dez quilômetros de distância, entre os cultivos e a área indígena”.

Apesar da reivindicação histórica, existem apenas três pequenas terras indígenas demarcadas na região. Dentre elas, a TI Tembé, com 1.075 hectares, e as TIs Turé/Mariquita I, de apenas 146 hectares – e Turé/Mariquita II, reservada pela Funai com 593 hectares.

A chegada do dendê: a origem dos conflitos

O histórico de violação de empresas produtoras de óleo de palma na região nordeste do Pará remonta aos anos 2000, com a chegada da empresa Biopalma, em 2007, nos municípios de Moju, Acará, Igarapé-Miri, Abaetetuba, Barcarena, São Domingos do Capim, Concórdia do Pará e Tomé-Açu. A empresa no mesmo ano comprou centenas de terras na região, muitas delas sem título ou documentos de propriedade, e em sua maioria sobrepostas a terras já reivindicadas por comunidades indígenas e quilombolas.

Mas foram nos últimos três anos que a situação se agravou e os conflitos se intensificaram nos municípios de Acará e Tomé-Açu, onde estão localizadas grande parte das plantações da empresa, cuja área faz limite com as TI Turé Mariquita I e II, do povo Tembé, e com as terras reivindicadas pelo povo Turiwara.

As áreas de plantio da empresa também se sobrepõem aos territórios em processo de demarcação de inúmeras comunidades quilombolas, que juntas formam a Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto-Acará (Amarqualta), além de invadir terras de comunidades ribeirinhas e camponesas.

Acampamento Turiwara no meio de plantações de dendê da BBF. Foto: Cícero Pedrosa Neto

Em 2020, a BBF comprou a Biopalma – antes subsidiária da Vale – tornando-se, como se autointitula, “a maior produtora de óleo de palma da América Latina”. Nesse período, segundo o MPF, os acordos de compensação, até então mantidos com a Biopalma, foram rompidos pela empresa compradora. Nesse sentido, pode-se dizer que a chegada da BBF na região agravou a situação dos conflitos.

Para o MPF, o estado do Pará falha ao não apresentar um estudo de impacto ambiental e de componente indígena específico a fim de minimizar os impactos sofridos pelas comunidades. A ausência desses estudos está, para o órgão, na origem dos conflitos. Ademais, “nunca houve consulta prévia, livre e informada e não existe diálogo de boa fé sem isso, nem sem os estudos de impactos”, afirmou Felipe de Moura Palha, procurador do MPF do estado do Pará.

Os indígenas pedem providências e medidas urgentes das autoridades diante dos últimos acontecimentos. “Eles [as empresas de óleo de palma] viram que não tem como nos expulsar do nosso território, agora estão procurando nos matar. A gente pede ajuda do poder público, pede ajuda da Funai, do Ministério dos Povos Indígenas, da Polícia Federal, porque em breve se não tivermos ajuda estaremos velando os povos Turiwara e o povo Tembé”, demanda uma liderança Turiwara.

NOTA – GRUPO BBF

O Grupo BBF (Brasil BioFuels) esclarece que no dia 07 de agosto, um grupo composto por 30 pessoas invadiu o Polo de Tomé-Açu, propriedade privada da empresa, e incendiou dezenas de tratores, maquinários e também edificações da companhia. A equipe de segurança privada do Grupo BBF conseguiu conter a ação criminosa e resguardar a vida dos trabalhadores que estavam no local (vídeos e fotos podem ser baixados no link: https://we.tl/t-588emJb1ue)

A empresa esclarece também, que desde 6 de julho grupos têm invadido sua Fazenda Rio Negro, na região de Tomé-Açu, e que tal área não se trata de terra indígena demarcada e sim de propriedade privada da empresa. Os detalhes do início desta invasão estão descritos no boletim de ocorrência número 00481/2023.101459-7, de 08 de julho, registrado na delegacia da Polícia Civil de Tomé-Açu, quando cerca de 30 invasores armados impediram a entrada de trabalhadores rurais na fazenda. Em novo boletim de ocorrência registrado na data de 18 de julho, de número 00481/2023.101576-0, após diligência realizada com duas viaturas policiais, trabalhadores foram interceptados por cerca de 100 invasores, que ameaçaram queimar a sede da Fazenda Rio Negro, após fazer fotos dos documentos pessoais dos trabalhadores que estavam no local como forma de ameaça para não voltarem mais às suas funções laborais e posteriormente perseguirem suas respectivas famílias.

No dia 26 de julho, em novo boletim de ocorrência, registrado sob o número 00481/2023.101634-6, foram relatados os detalhes dos roubos e furtos de frutos de dendê na Fazenda, onde invasores mantiveram dois funcionários reféns até a chegada de um efetivo da Polícia Militar que negociou a soltura dos trabalhadores.

Na manhã do dia 4 de agosto, um batalhão especializado da Polícia Militar se deslocou à Fazenda Rio Negro com o objetivo de retirar os invasores do local e permitir que os trabalhadores pudessem realizar suas atividades laborais. Ao chegar no local, o grupo de invasores hostilizou os oficiais do batalhão da PM/CME e ameaçou a equipe de segurança privada terceirizada da empresa, que resguardava as instalações físicas da sede da Fazenda. Ao final da tarde, após a saída do efetivo da PM, mais de 100 invasores armados com terçados, facas, armas de fogo e armas caseiras, entraram em conflito com trabalhadores, incendiando e destruindo as instalações físicas da fazenda, maquinários e equipamentos da empresa, cumprindo assim as ameaças que vinham sendo realizadas desde 6 de julho e registradas nos boletins de ocorrência relatados acima.

Desde que assumiu os ativos da antiga empresa Biopalma, subsidiária da Vale, em novembro de 2020, o Grupo BBF enfrenta um cenário complexo e violento de invasões, promovidas por um grupo que pratica diversos tipos de crimes contra o patrimônio da empresa, trabalhadores, moradores das comunidades e meio ambiente. Dentre os crimes registrados em mais de 850 boletins ocorrências nos últimos dois anos encontram-se roubos, furtos de dendê, incêndios criminosos, agressões contra trabalhadores, tentativas de estupros, tentativas de homicídios, entre outros.

A companhia segue prestando todo o apoio jurídico, de evidências e esclarecimentos necessários aos órgãos de segurança pública do Estado do Pará com o objetivo de uma rápida solução dos casos recentes. O Grupo BBF reforça que cumpre todas as legislações vigentes e realiza o cultivo sustentável da palma de óleo apenas em áreas degradadas pelo desmatamento até dezembro de 2007, seguindo o Zoneamento Agroecológico da Palma de Óleo (decreto 7.172 do Governo Federal de 2010). A companhia reforça ainda que atua em cinco estados da região Norte, gerando mais de 7 mil empregos diretos e seu modelo de negócio atua na recuperação de áreas degradadas, preservação de áreas de floresta nativa e desenvolvimento socioeconômico

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