Por Moara Crivelente.
Com a aprovação da nova coalizão o Parlamento israelense derrubou 12 anos consecutivos de reinado de Netanyahu, líder do Likud que tanto expôs as entranhas do regime colonialista e racista instituído em Israel. No arranjo concluído em 2 de junho por Yair Lapid, líder do partido Yesh Atid —em Israel descrito como centrista, o que aqui não é parâmetro— se unem forças aparentemente tão díspares quanto o nacionalista de extrema-direita Yamina, o Ra’am (Lista Árabe Unida) islamista conservador, o partido Trabalhista e o Meretz —os dois últimos tidos como de esquerda em Israel. São oito partidos concertados no propósito de derrubar Netanyahu, inclusive o Kahol Lavan (“Azul e Branco”) do seu antigo parceiro de ocasião, Benny Gantz, com quem Netanyahu também penou para formar uma coalizão nas últimas eleições, mas depois atropelou, levando Israel a mais uma rodada.
O partido do agora ex-premiê falhou em alcançar a maioria parlamentar e Netanyahu teve quase um mês desde a eleição de março de 2021, a quarta em cerca de dois anos, para tentar formar um governo. Depois disso, foi a vez do opositor Lapid tentar, negociando com Naftali Bennett, líder do Yamina, a rotatividade do posto de primeiro-ministro, que ocupará num segundo momento, e a composição de um governo com 27 ministros. Lapid, que passou de ministro das Finanças no governo Netanyahu em 2013-2014 a Líder da Oposição no Parlamento, em 2020-2021, começa a dança como ministro das Relações Exteriores.
Avigdor Lieberman, o líder do Yisrael Beitenu (“Israel é Nosso Lar”) de extrema-direita, que também por anos tentou destronar Netanyahu, será o ministro das Finanças; a líder do Trabalhista Merav Michaeli será a ministra dos Transportes e o líder do Meretz, Nitzan Horowitz, ministro da Saúde. Mais dois membros do Trabalhista e dois do Meretz comporão o governo, inclusive, pelo último, o árabe Issawi Frej, que será ministro de Cooperação Regional. Gideon Sa’ar, do partido Nova Esperança, será o ministro da Justiça num primeiro momento e, depois, o Chanceler, quando Lapid for premiê. O ministro da Defesa será Gantz, que foi Comandante do Exército durante a ofensiva Margem Protetora e num futuro otimista poderia se ver no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional por sua responsabilidade em crimes de guerra sob investigação. Outra dirigente do Yamina, Ayelet Shaked será ministra do Interior e, no período de Lapid, ministra da Justiça.
Como se fosse pouco, há mais. Lieberman, por exemplo, como ministro das Finanças, anuncia o cumprimento da cartilha neoliberal instituída pelo Likud em Israel desde os anos 1970. Ele é citado pelo órgão do Partido Comunista de Israel (PCI), Maki, dizendo que em julho deverá suspender o auxílio desemprego aos menores de 45 anos, 68% dos 506.000 em busca de trabalho, enquanto o auxílio-emergencial ao mesmo grupo, no âmbito da pandemia, já termina em junho. Outras das várias consequências trágicas deste arranjo precisam ser enfatizadas.
O novo primeiro-ministro, Bennett, é um parlamentar de carreira abertamente racista e ultranacionalista, da chamada ala religiosa-sionista do seu partido e antigo líder do Conselho Yesha que reúne os governos municipais das colônias israelenses capturando terras palestinas e atua como um lobby. Ele e sua colega de partido Shaked foram ministros nos governos de Netanyahu —Bennett em pastas como Educação e Defesa e Shaked, na Justiça, quando digitou no Facebook as infames palavras de incitação ao massacre durante a ofensiva de 2014, “Margem Protetora”, apelando ao exército israelense que matasse todos, inclusive mães palestinas, para que deixassem de ter filhos.
Shaked ascendeu em 2019 promovendo a implementação da Lei Básica Israel: Estado Nação do Povo Judeu, aprovada em 2018 pelo Parlamento, em que a colonização da Palestina é promovida como “valor nacional” e a autodeterminação é afirmada como prerrogativa exclusiva de judeus, assim atestando a prática já instaurada há setenta anos de discriminação e tentativa de eliminação dos palestinos. Como se tem reiterado, os palestinos que lograram permanecer são cerca de 20% da população em Israel, mas aqueles residindo em território palestino ocupado, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, inclusive Jerusalém, e até mesmo aqueles ausentes, forçados a viver em campos de refugiados porque impedidos de retornar, são também impactados pelas políticas de um governo que não puderam eleger.
Ao reagir aos rumos do processo de composição, uma das três forças da Lista Conjunta, a Hadash —Frente Democrática Pela Paz e a Igualdade, composta pelo PCI e outros partidos— afirmou em 1º de junho que não apoiaria um governo que não trará nada de diferente ao governo Netanyahu, enfatizando que o objetivo é destronar as suas políticas, não a sua pessoa; “erradicar o racismo e opor-nos à ocupação”. Dirigente do PCI, a parlamentar pela Hadash Aida Touma-Sliman comentou que Bennett liderará “um perigoso governo de direita” que poderá “remover Netanyahu, mas continuará em seu rumo”. Ademais, a depender dos próximos meses, se este governo não sobreviver à unidade forçada, com o espantalho derrubado, e se Netanyahu afinal não for condenado pelas ofensas de que está acusado —suborno e quebra de confiança, por exemplo, não crimes contra a humanidade— é possível que ele ainda retorne ao comando numa nova eleição.
Enquanto isso, no plano internacional, o presidente estadunidense Joe Biden prontamente congratulou o novo governo, ansioso que estava por ver as costas de Netanyahu, com quem o governo de Barack Obama teve desavenças notórias. Mais tranquilo com a troca de personagens, Biden expressa a garantia inculcada na política externa estadunidense: “Israel não tem amigo melhor do que os Estados Unidos” e “os laços que unem nossos povos evidenciam os nossos valores comuns e décadas de cooperação estreita”, ressaltando que os EUA “continuam firmes em apoio à segurança de Israel”. A garantia veio também pelo secretário de Estado Antony Blinken, que afirmou que os EUA “continuarão a trabalhar com Israel para promover a causa da paz e continuamos resolutos em nosso compromisso com a segurança de Israel”.
Organizações judaicas pró-Israel nos EUA foram citadas pelo diário israelense Haaretz celebrando a partida de Netanyahu e saudando o novo governo. Foi o caso da Maioria Democrática em apoio a Israel, fundada por um lobbista ligado a Yair Lapid atuando por amplificar o apoio do partido Democrata ao país e que disse que “o governo de unidade será o mais inclusivo de todos os tempos”, apontando nas identidades de árabes, mulheres e “judeus de cor” em postos de alto nível na nova composição tal “representatividade”. Enquanto uns saudaram a “diversidade ideológica” no novo governo e repudiaram a mancha que o legado de Netanyahu deixou na imagem de Israel, outros celebraram o que viram como confirmação da “vibrante democracia de Israel” enquanto também saudavam o “imenso legado” e o “serviço prestado a Israel e aos judeus do mundo” por Netanyahu.
Por outro lado, organizações de judeus progressistas e tantos outros ativistas e intelectuais têm manifestado seu repúdio às mais recentes ofensivas israelenses, como o ataque à Faixa de Gaza que matou cerca de 250 palestinos em 11 dias, inclusive mais de 60 crianças; o intento de despejar residentes de Jerusalém, com ordens contra mais de 10 famílias palestinas do bairro Sheikh Jarrah; as ameaças de anexação acompanhando a expansão de colônias em território palestino como sendo todas, sem exceção, ilegítimas; e reafirmando, como fazem há anos, a possibilidade de ser-se judeu e não ser sionista, consequentemente condenando este como um movimento racista e colonialista e apoiando a luta do povo palestino por libertação nacional.
Portanto, não parece haver suspense sobre o que um novo governo nesta composição e nestas condições trará para o quadro persistente de ocupação e colonização da Palestina por Israel. Se é que é preciso, os próximos dias trarão maior definição aos contornos desta continuidade, contra a qual seguirá havendo resistência.
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