Por José Rodrigo Rodriguez.
A lógica das redes parecer caracterizar este começo de século XXI. A começar pelas redes de franquia que nos vendem desde sorvetes de massa até a nossa roupa de baixo, terminando pelas redes de movimentos sociais, que caracterizam a ação dos secundaristas por exemplo, e passando pela internet, a rede das redes, que está presente na vida de cada vez mais pessoas transformando a estrutura da esfera pública, o nosso modo de vivermos e de nos comunicarmos.
Estamos assistindo à dissolução de grandes estruturas hierárquicas substituídas por formas de organização em que unidades menores, com maior grau de autonomia, captam informação e tomam decisões em favor dos objetivos gerais da rede, sejam eles econômicos, políticos ou sociais.
A verdade é que boa parte de nossa vida individual e de nossa existência comum está sendo reorganizada e regulada por essas redes, que são capazes de definir as normas que disciplinam boa parte de nossas vidas. Podemos tomar o Facebook, o Uber e o Airbnb como bons exemplos.
Diversos usuários e usuárias destas redes, em especial motoristas, locadores e locadoras de imóveis, passam a confiar nelas e a depender delas para obter o seu sustento. A exclusão sumária de um ou uma motorista ou locadora, por exemplo, sem direito a defesa, sem direito ao contraditório, pode ter consequências graves sobre sua vida.
Também a estratégia de remuneração, por exemplo, de um ou uma motorista que escolha viver exclusiva ou principalmente do Uber, e permaneça destituído de qualquer garantia social; problema enfrentado recentemente pela Justiça inglesa, que reconheceu o vínculo empregatício entre um motorista e o Uber.
O mesmo se pode dizer de um simples usuário ou usuária que, acostumado a estes serviços, veja-se excluído ou banido dele em razão de alguma falta; uma falta cuja definição e cujos critérios foram definidos unilateralmente, por alguém ou por um grupo localizado em algum lugar na rede.
O título provocativo deste texto, diga-se, não passa mesmo disso: trata-se de uma provocação e, talvez, de um alerta. Eu ainda não possuo informações suficientes para medir o grau de autoritarismo das redes a que me refiro neste texto.
Mas tenho toda a segurança afirmar duas coisas a respeito delas, as quais me parecem centrais para a reflexão sobre o que deve ser a política nos dias de hoje. Em primeiro lugar, já passou da hora de olharmos estas redes como verdadeiros regimes políticos dotados de governos e não apenas como meras estratégias de prestação de serviços.
Redes como Facebook, Airbnb e Uber estão ajudando a redefinir as normas que regulam a nossa vida, ademais, estão contribuindo para redesenhar a forma de utilizar as cidades, estão influindo e tendo efeitos reais sobre uma série de políticas públicas.
Por exemplo, há estudos que mostram como o Airbnb está fazendo subir o preço do aluguel em diversas áreas de cidades importantes, dificultando o acesso dos moradores locais a estes imóveis em favor dos turistas, o que pode levá-los a ter que morar longe de seu trabalho.
Tal fato pode produzir externalidades negativas como a sobrecarga da rede de transportes, diante de demandas por mais deslocamentos de longa distância, o que irá aumentar a emissão de poluentes e fará subir a despesa pública com metrô e ônibus.
Além disso, e esse é um ponto muito grave, são um ambiente regulado como racionalidade própria e têm o poder de dizer quem pode ou quem não pode agir em seu interior. O governo das redes tem o poder de incluir e de excluir usuários, decisão com efeitos graves sobre a vida de muitas pessoas.
Uma exclusão pode promover perda de boa parte da renda mensal ou bloquear o acesso a serviços necessários para as nossas vidas, nos quais aprendemos a confiar e a depender. Em segundo lugar, se tais redes são capazes de criar normas que regulam as nossas vidas e capazes de impor o cumprimento delas por meio de meios coercitivos, nada mais natural do que classificá-las como democráticas ou autoritárias, participativas ou autárquicas.
Ou seja, nada mais natural do que cobrar delas critérios justos, democráticos e transparentes para definir quem pode entrar e quem deve sair delas e como elas devem ser definidas, geridas e reformadas, inclusive levando em conta seus impactos no ambiente externo.
Muito recentemente o Airbnb lançou uma louvável campanha contra o preconceito. O governo do Airbnb resolveu criar um novo termo de adesão aos serviços que exige de seus usuários e usuárias o compromisso de não praticarem nenhum ato de discriminação.
A campanha é mais do que justa e certamente terá todo o apoio. Afinal, ela apenas reafirma, para este regime político específico, a validade do que costumamos chamar de direitos humanos, os quais afastam e condenam toda forma de preconceito.
A despeito disso, algumas circunstâncias em que a campanha foi criada chamam a atenção. Primeiro, quantos atos de violência foram necessários para despertar a sensibilidade do governo do Airbnb para tomar esta decisão? Quantas pessoas foram desalojadas ou ofendidas durante suas estadias, muitas vezes no meio de um país estranho? Provavelmente nunca saberemos.
Além disso, como será a fiscalização destas novas regras? Quem vai julgar as eventuais acusações de discriminação, que podem se revelar verdadeiras, mas que também podem nascer de equívocos, por exemplo, em razão do desconhecimento dos costumes, da língua e da religião do local? Como lidar com a diversidade de costumes no contexto deste aplicativo?
Mas isso realmente importa? Se os fins justificam os meios, porque ficarmos nos preocupando com os meios, certo? Errado!
Para um democrata, é impossível concordar com uma afirmação como essa. Afinal, toda a tradição democrática defende que os interessados e interessadas em determinadas normas precisam ser ouvidos no processo de definição de seu conteúdo.
Do contrário, viveremos em regime aristocrático ou abertamente autoritário em que os interessados nas regras são apenas objeto delas. Nesse caso, uma aristocracia ou ditadura parcial, que diz respeito a apenas uma parte de nossas vidas.
Seja como for, mesmo em ordens normativas especializadas e parciais a democracia precisa estar presente tanto nos meios quanto nos fins. A menos que nos conformemos em sermos tratados como meros objetos de normas, criadas por um grupo iluminado de homens e de mulheres.
A democracia é o governo das leis democraticamente elaboradas, ou seja, leis elaboradas ouvindo a voz de todos e todas as afetadas por elas.
Por todas essas razões, é cada vez urgente politizar as redes para cobrar delas mais e mais transparência e participação. Ou, se for o caso, buscar organizar contra-redes com a finalidade de aumentar a competição contra o monopólio e destruir redes fascistas, mediante a oferta de vantagens semelhantes em um regime político mais democrático.
Diante do alto custo em se criar uma rede por meio de aplicativos, talvez ações como estas tenham que partir do estado, de organismos internacionais ou da exigência crescente de usuários, inconformados com a sua condição de objeto de opressão. Neste caso, as redes monopolistas e autoritárias perderiam adesões e investidores, substituídas por outras, mais democráticas.
Afinal, é razoável imaginar que no momento em que haja mais competição e os usuários e usuárias de redes como essas tiverem, na ponta de seus dedos, a possibilidade de escolher submeter-se a redes variadas, algumas delas fascistas e outras democráticas, eles e elas irão escolher sempre as últimas em detrimento das primeiras.
Ademais, a avaliação sobre a qualidade do governo das redes poderia ser feita de forma simplificada e autogerida, talvez pelas estrelinhas resultantes da avaliação dos usuários e usuárias, visíveis na loja de aplicativos. Ou, ainda, de forma mais elaborada, por investigações empíricas em diálogo com a filosofia política, também por organizações independentes que estabeleçam padrões de democracia para esta nova forma de regime político.
Poderíamos ter uma espécie de “ISO DEMOCRACIA” que certificasse a boa qualidade do regime político das várias redes, além de ouvidorias independentes destinadas a ouvir, apurar e encaminhar abusos, violências, atos arbitrários praticados por regimes políticos em rede que se revelem autoritárias.
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José Rodrigo Rodriguez é professor da UNISINOS, Pesquisador Permanente do CEBRAP.
Fonte: JOTA.