E se o presidente da república pudesse encaminhar apenas uma medida econômica?

Medida por alimentos básicos o rendimento mensal da população caiu 33%, um terço, em oito anos.

Por José Álvaro Cardoso.

Se quisermos compreender o que acontece com a classe trabalhadora brasileira – esmagadora maioria da população – temos que olhar com atenção os dados disponíveis de salário e rendimento: o rendimento médio real mensal habitual dos trabalhadores foi de R$ 2.880,00 no primeiro trimestre de 2023, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD-IBGE). Este valor representa 43,29% do salário mínimo necessário, calculado pelo DIEESE, para uma família de quatro pessoas (R$ 6.652,09). Ou seja, o rendimento médio mensal habitual não chega à metade do que deveria ser o salário mínimo necessário para suprir os gastos com as necessidades básicas de uma família da classe trabalhadora.

Dadas essas condições, é evidente que salário e emprego estão no centro das preocupações dos trabalhadores. O DIEESE realiza uma pesquisa sobre greves no Brasil, que é a única regular do país, chamada SAG (Sistema de Acompanhamento de Greves). Segundo essa pesquisa foram registradas em 2022, 1.067 greves, um aumento de 48% em relação a 2021 (em 2021 tinha a pandemia). Do total das greves, 54% foram organizadas por servidores públicos, 40% por trabalhadores do setor privado e 5% por trabalhadores de estatais. Segundo esses dados, as motivações principais das greves no Brasil em 2022 foram:

Pagamento de Salários: 42%

Piso Salarial: 27%

Alimentação: 20,1%

Pagamento de 13º salário/férias atrasadas: 19,6%

São todas reinvindicações diretamente econômicas, como seria de se esperar. São greves realizadas pela sobrevivência do trabalhador e sua família. Creio que esses dados mostram duas coisas: 1ª) As questões centrais para os trabalhadores brasileiros neste momento (em termos de reivindicações) são as questões econômicas; 2º) revelam, ao mesmo tempo, a própria precariedade da condição dos trabalhadores no Brasil. Afinal, greve por pagamento de salários, aparece com maior frequência entre as motivações dos movimentos, o que revela a situação precária em que vive a maioria dos trabalhadores brasileiros.

É possível ilustrar com riqueza o nível de exploração dos trabalhadores no Brasil pelos números do salário-mínimo. O valor do salário-mínimo atual (R$ 1.320,00, reajustado agora em maio), é comprometido em 64,85% na aquisição de uma cesta básica para um adulto, que na cidade de São Paulo custou R$ 791,82 em maio (a mais cara no mês passado, entre as 18 cidades onde o Departamento realiza a pesquisa). O salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE está estimado em R$ 6.652,09, equivalendo a 5.04 vezes o mínimo atual. Ou seja, o salário-mínimo é uma micharia total, que não dá para nada.

Como, do total de ocupados na economia brasileira, quase 70% recebem até 2 mínimos (R$ 2.640,00), a valorização do salário-mínimo teria um impacto decisivo no Brasil. Além desses trabalhadores que recebem até 2 mínimos, dos 37 milhões de benefícios pagos mensalmente pela Previdência Social (INSS), quase 70% são de um salário-mínimo. O DIEESE calcula que 60,3 milhões de brasileiros tem o seu rendimento referenciado no salário-mínimo, incluindo empregados, trabalhadores autônomos, empregados domésticos, empregadores, aposentados e pensionistas. Ou seja, para uma população ocupada de cerca de 108 milhões, o salário-mínimo é referência para 60 milhões de brasileiros.

Com o padrão de desemprego e subemprego, e com os salários existentes no Brasil, não é por acaso que cerca de 23% da população – em torno de 50 milhões de brasileiros – depende do Bolsa Família para não morrer de fome. Esse último é um indicador inapelável, inclusive, do retrocesso econômico-social que o golpe de 2016 representou para o Brasil. Afinal de contas, em 2014, o Brasil tinha saído do Mapa da Fome da ONU, o país não tinha uma epidemia de famintos como tem hoje. Política pública, em qualquer área, que arrasta mais da metade da população à condição de insegurança alimentar, no país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, e com as riquezas que o Brasil dispõe, está errada por princípio. Não precisa de analista econômico ou social, para descobrirmos isso.

O rendimento nominal mensal domiciliar per capita da população residente no Brasil é um cálculo elaborado pelo IBGE, a partir dos rendimentos do trabalho e de outras fontes. Em dezembro de 2014 esse rendimento era de R$ 1.052 (primeiro da série histórica). Esse valor adquiria, à época, três cestas básicas (2,97), calculada pelo DIEESE, que, na cidade de São Paulo (para ficarmos no mesmo exemplo anterior), custava R$ 354,19. Em maio o valor atual deste indicador, que é de R$ 1.625,00 era suficiente para comprar apenas 2 cestas básicas. Ou seja, medida por alimentos básicos o rendimento mensal da população caiu 33%, um terço, em oito anos. Isso é perda de salário real, na veia.

No mesmo período em que ocorreu essa perda de rendimento (2015 a 2022), oito anos, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu – ainda que muito abaixo do que poderia. Ou seja, a economia ficou maior, a produção de riquezas aumentou, mas os trabalhadores diminuíram seu poder aquisitivo, sua capacidade de comprar alimentos. Cresceu a produção de riquezas, mas a população ficou mais pobre.

O arrocho de salários e renda é um mecanismo pesado de compensação da crise estrutural que atravessa o sistema capitalista mundial, há muitos anos. Um cálculo de inflação, o INPC-IBGE, por exemplo, o mais utilizado nas negociações, é uma média de variação de preços, na qual entram centenas de produtos que a maioria dos trabalhadores não consomem. Produtos da cesta básica, com 13 alimentos essenciais, praticamente todos consomem, por isso é uma boa referência.

Aquilo que muitas vezes constatamos por simples observação dos fenômenos visíveis, de que o Brasil possui imensos recursos, mas estes não servem ao povo brasileiro, e sim à burguesia nacional e estrangeira, fica evidenciado por dados simples e diretos como esses. Os dados do salário-mínimo, sozinhos, são uma espécie de Raio X da superexploração do trabalho no Brasil. Ao mesmo tempo indicam o significado econômico, social, político e cultural, que teria uma política consistente de valorização do salário mínimo.

Um aumento significativo do salário mínimo, feito através de um plano cuidadoso, visando chegar no médio prazo a um valor digno, teria um impacto verdadeiramente transformador da realidade brasileira. Penso que, em uma situação hipotética, na qual o presidente da república estivesse autorizado a tomar somente uma medida econômica, esta deveria ser a de valorização do salário-mínimo, subordinando as demais políticas à esta, que seria a balizadora, a referência, das demais. Tecnicamente, a economia brasileira consegue pagar um salário-mínimo decente a todos os cidadãos e cidadãs? A resposta é um categórico sim. Mas o problema não é técnico, e sim de correlação de forças no país.

 

José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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