É bom lembrar: A Bolívia proibiu o latifúndio e os transgênicos em 2012

transgênicos latifúndio bolíviaPor René Orellana Halkyer e Diego Pacheco Balanza.

Tradução: Elissandro dos Satos Santana, para Desacato.info.

No mês de setembro de 2012, foi aprovado na Assembleia Legislativa do Estado Plurinacional da Bolívia a Lei de Base da Mãe Terra e do Desenvolvimento Integral para o Viver Bem. A referida lei foi promulgada no dia 15 de outubro recente, depois de vários anos de debate no Legislativo e entre as organizações sociais no que diz respeito ao seu conteúdo.

A primeira versão completa da lei com o nome de “Lei de Base da Mãe Terra” foi acordada, em 2010, pelas organizações sociais. No final desse ano, foi aprovado na Assembleia Legislativa Plurinacional parte do Projeto de Lei com o título “Lei sobre os Direitos da Mãe Terra nº 071”, deixando a segunda parte do projeto de lei para a discussão em um período posterior.

A Lei da Mãe Terra e de Desenvolvimento Integral para o Viver Bem foi aprovada como lei base, constituindo, assim, o arranjo matriz que dará à luz as regras legais especiais a serem trabalhadas nos próximos anos.

Articulação do Viver Bem, o desenvolvimento integral e os Direitos da Mãe Terra

A Lei que define o Viver Bem como o horizonte civilizatório e cultural alternativo ao capitalismo, que significa a construção de uma nova ordem ambiental, social, cultural e econômica, baseada e emergente na visão histórica dos povos indígenas. Textualmente, esta Lei expressa que este horizonte civilizatório “nasce nas cosmovisões das nações e povos indígenas, povos originários e camponeses, nas comunidades interculturais e afro-bolivianas” (Art. 5, parágrafo 2). Agora, ao ter este projeto de vida seu fundamento nos povos indígenas e originários, o mesmo se enriquece e se desenvolve no marco da interculturalidade e no diálogo de saberes, pelo que deve construir-se em complementariedade com todos os povos e sociedades que vivem no país. Esta visão é importante porque promove a construção de uma sociedade intercultural, respeitando as diferenças e fortalecendo os povos e nações indígenas no marco da solidariedade e de sua interdependência com o conjunto do povo boliviano no que tange à realização dos povos coletivos e a erradicação da pobreza.

O desenvolvimento integral está na implementação de medidas e de ações integrais (econômicas, sociais, espirituais, ambientais, culturais, materiais, entre outras) para o fortalecimento e a criação de condições materiais e espirituais que facilitem e fortaleçam o Viver Bem dos povos e das sociedades. Então, não é um desenvolvimento sinônimo de progresso, nem de corte ocidental. Ao contrário, se estabelece que estas medidas/ações devem ser culturalmente adequadas à realidade dos povos, correspondendo às suas culturas e construindo vínculos edificantes, quer dizer, ações e atitudes construtivas que lancem as bases para uma sociedade equitativa, justa e solidária.

A Mãe Terra é o sistema vivente dinâmico formado pela comunidade indivisível de todos os sistemas de seres de vida e pelos seres vivos, inter-relacionados, interdependentes e complementares, compartilhando um destino comum. Ela é considerada sagrada; alimenta e é o lar que contém, sustenta e reproduz a todos os seres vivos, os ecossistemas, a biodiversidade, as sociedades orgânicas e os indivíduos que a compõem. Neste contexto, os direitos da Mãe Terra são reconhecidos.

Então, a Lei Marco articula três aspectos fundamentais: Viver Bem, Mãe Terra e desenvolvimento integral; pelo que na Lei se toma a decisão de não separar o “desenvolvimento integral”, que se adapta à realidade boliviana, com o bem-estar, promovendo-se a ideia de desenvolvimento integral como um estágio intermediário para se chegar ao bem-estar. Pela referida lei, desenvolvimento integral e Viver Bem não são duas vias paralelas, mas, parte de um mesmo caminho no qual as ações do primeiro ajudam a alcançar o segundo, que é o fim máximo. No entanto, é ao redor da terra que se promove este processo de articulação, já que a mesma articula a natureza e os seres humanos.

Complementariedade de direitos como base da convivência harmônica entre o povo boliviano, as nações, povos indígenas, povos originários, camponeses e a Mãe Terra

Na Lei Base, considera-se fundamental o respeito e o reconhecimento aos direitos dos povos indígenas e originários, bem como de camponeses, porém, também se reconhece que o conjunto do povo boliviano deve, igualmente, gozar dos benefícios das riquezas que provê a Mãe Terra, as mesmas que, num marco do aproveitamento sustentável e harmônico, devem ser distribuídas e redistribuídas pelo Estado Plurinacional, considerando, ademais, a construção de uma sociedade justa, equitativa e solidária, sem pobreza material, social e espiritual.

A Bolívia possui, aproximadamente, 12 milhões de habitantes, dos quais, mais de 5 milhões vivem em condições de pobreza e onde uma grande parte desta população se encontra nas áreas urbanas. A solução para a falta de acesso aos serviços de saúde, educação, energia e comunicação, bem como para o acesso aos alimentos, aos meios que permitem melhorar as oportunidades de criação de condições materiais e o fortalecimento de condições espirituais para Viver Bem, requer um esforço governamental e social para o desenvolvimento de ações e inversões que implicam o acesso e a disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado.

Na Bolívia, não se pode erradicar a pobreza, nem garantir os direitos fundamentais (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) das pessoas sem um Estado Plurinacional forte e com capacidade para empreender este desafio; pelo menos, em um cenário no qual nosso país seja soberano e não dependente. A própria Lei expressa em seu artigo 11, parágrafo 1, que é obrigação do Estado Plurinacional criar as condições para garantir seu próprio sustento.

Nesta linha de reflexão, a Lei estabeleceu que o Viver Bem será alcançado com a promoção e com o fortalecimento de outros quatro direitos:

  1. Os direitos da Mãe Terra;
  2. Os direitos das nações e dos povos e camponeses nativos, comunidades interculturais e afro-bolivianas;
  3. Os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais do povo boliviano, para atender às necessidades das sociedades e indivíduos;
  4. O direito da população urbana e rural de viver em uma sociedade justa, equitativa e inclusiva, sem pobreza material, social e espiritual.

Estes direitos não podem sobrepor-se uns sobre os outros ou priorizar-se um sobre o outro, ao contrário, devem realizar-se de maneira complementar, de forma compatível, inclusiva e interdependente. Este é o saldo máximo que propõe a Lei para a construção do Viver Bem.

Objetivos, regras e orientações para viver bem através do desenvolvimento global 

Diante do fato de que o desenvolvimento integral é uma fase intermediária para o Viver Bem, a Lei estabeleceu 10 (dez) objetivos e 11 (onze) regras e orientações para o desenvolvimento integral, no marco dos valores do Viver Bem: saber crescer, saber alimentar-se, saber dançar, saber trabalhar, saber comunicar-se, saber sonhar, saber escutar e saber pensar.

Entre alguns dos objetivos, temos o relacionado com “O saber alimentar-se para viver bem” que é a realização do direito à alimentação no marco da soberania da segurança alimentar, pelo que se estabelece a importância de fortalecer nos sistemas econômicos, produtivos e ecológicos locais, bem como o fortalecimento e valorização dos sistemas de vida dos pequenos produtores, as nações e povos indígenas originários, camponeses, comunidades interculturais e afro-bolivianas. Outro objetivo da Lei é promover a mudança nos padrões de consumo não sustentáveis, o uso racional de energia, a preservação dos recursos hídricos, a eliminação do consumismo e o aproveitamento sustentável dos componentes da Mãe Terra. Também há o objetivo da mudança dos padrões de produção contaminantes, fortalecendo os sistemas produtivos compatíveis com as áreas e sistemas de vida e com a maior qualidade ambiental. O objetivo da Lei é promover a conservação e o manejo integral e sustentável da Mãe Terra. Estabelece, igualmente, o fortalecimento das áreas protegidas.

As diretrizes da Lei também são muito importantes. Por exemplo, no que diz respeito à agricultura, é importante que se estabeleça o desenvolvimento de ações para a proteção do patrimônio genético “… proibindo a introdução, produção, uso, liberação no meio ambiente e comercialização de sementes geneticamente modificadas no território do Estado Plurinacional da Bolívia das que o país seja o centro de origem ou diversidade e aqueles que violam o património genético, a biodiversidade… os sistemas de vida e a saúde humana.” Também se estabelece ser necessário o desenvolvimento de ações “… que promovam a eliminação gradual das culturas de organismos geneticamente modificados e autorizados no país…”. (Artigo 24, parágrafo 7 e 8).

No que diz respeito às florestas, estabeleceu-se que se proíba “de forma absoluta, a conversão do uso do solo da floresta para outros usos em áreas com aptidão florestal, exceto quando se tratar de interesse nacional e de utilidade pública” (art. 25, parágrafo 4). Esta última disposição exige a emissão de uma lei especial para cada caso relacionado com a mudança do uso da terra com uma justificativa de tal interesse nacional e de utilidade pública.

Conselho Plurinacional para Viver Bem e a Autoridade Plurinacional da Mãe Terra 

Com relação ao marco institucional que cria a Lei encarregada por operacionalizar e dar sustentabilidade à gestão pública para o desenvolvimento integral é importante destacar: i) a criação de um Conselho plurinacional para Viver Bem, em harmonia e equilíbrio com a Mãe Terra, que constitui uma instância de monitoramento, consulta e desenvolvimento participativo de políticas, planos, programas e projetos; ii) a criação da Autoridade Plurinacional Mãe Terra, como uma agência estratégica e independente, que tem a responsabilidade pelo planejamento, gestão, acompanhamento e avaliação sobre as alterações climáticas, além de gestão e implementação de políticas e estratégias, planos e programas relacionados; e iii) Mecanismos dependentes desta autoridade Plurinacional para desenvolver interferências em mitigações e adaptação à mudança climática, incluindo o Fundo Plurinacional da Mãe Terra com um mecanismo financeiro que tem o papel de administrar, canalizar e alocar recursos financeiros em coordenação com o Banco Central da Bolívia.

Mecanismos de mitigação e adaptação às alterações climáticas 

A lei estabelece a criação de três mecanismos para a gestão da adaptação e a mitigação climática, de acordo com os seguintes detalhes:

Mecanismo Conjunto de Mitigação e Adaptação para a Gestão Florestal Integral da Mãe Terra. Tem o objetivo de fortalecer, conservar e proteger os sistemas de vida, suas funções ambientais e promover e fortalecer a gestão social e comunitária integral e sustentável das florestas no marco de metas conjuntas de mitigação e adaptação das florestas. Trata-se de um mecanismo não baseado nos mercados de carbono, e se constitui precisamente em um instrumento alternativo aos mercados de carbono no contexto de REDD+ que a Bolívia propôs na COP 17 na África do Sul, na conferência Mundial das Nações Unidas sobre mudanças climáticas.

Mecanismos de mitigação para Viver Bem. Voltado a fortalecer e promover ações de mitigação climática, incluindo reduções, limitações e ações que evitem as emissões de gases de efeito estufa em diferentes atividades industriais, produtivas, energéticas, entre outras.

Mecanismo de Adaptação para viver bem. Destina-se à gestão de processos de adaptação às alterações climáticas no âmbito dos projetos.

Considerações finais

Como observado, a Lei articula o Bem Estar, o desenvolvimento integral e os direitos da Mãe Terra, definindo as diretrizes para a governança pública.

Esta lei constitui uma norma de grande envergadura que gerará mudanças fundamentais para o país, onde um aspecto fundamental é o de quatro direitos compatíveis que permitam criar o palco para alcançar o bem-estar por meio do desenvolvimento integral. A complementariedade e a interdependência desses direitos são base da convivência harmônica entre o povo boliviano, os povos e nações indígenas e nações indígenas e originárias e camponesas com a natureza. Também, a lei estabelece as orientações políticas, técnicas e legais para garantir a sustentação das capacidades de recuperação da Mãe Terra no marco do desenvolvimento integral.

Esta lei estabelece as orientações filosóficas, porém, também, práticas para a construção do estado Plurinacional da Bolívia, a partir do marco de implementação dos mandatos da Constituição Política do Estado. Também, é importante destacar o papel e os fundamentos jurídicos, políticos e ideológicos dos povos e nações indígenas e originárias que deram sustentação à referida lei.

Fonte: El Ciudadano. 

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